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terça-feira, 19 de março de 2013

Notas de Roda-pé



Cardeais
João Paulo II convocou pela sexta vez o consistório de cardeais. Deve ser um record. Além de record, foi ainda inesperado quer pelo número de cardeais participantes quer por se realizar passados apenas três meses sobre o último que decorreu em Fevereiro.
Por isso lhe colaram o rótulo da sucessão. Andarão, depois da convocatória, os cardeais à procura do sucessor de João Paulo II? Se sim se não não sei... Mas deve ter ajudado. Claro que se falou de muitas coisas (e falou quem quis). Apenas referencio em português, isto é, sem recurso a chavões teológico-pastorais os temas em debate:
  1. A crise de identidade dos católicos;
  2. falta de radicalidade da Igreja;
  3. O confronto com as novas formas de religiosidade;
  4. Universalidade da Igreja e relações entre as bases e a cúpula;
  5. O testemunho cristão perante os pobres;
  6. A moral sexual e familiar;
  7. A Igreja e os meios de comunicação.
Dizem que o Papa ouviu calado e, contra o costume, no fim fez publicar uma mensagem onde questiona os católicos ( eu atrevo-me a dizer que questiona todos os cristãos e não-cristãos, os que se dizem de fé ou sem ela). Falava a mensagem sobre a paz na Terra Santa (onde não conseguiu, como era seu desejo, reunir durante o Jubileu todas as igrejas cristãs...), e sobre a ajuda de toda a Igreja ao continente africano. Ainda temos Papa. E quem disse que não?

Veja
A revista brasileira Veja decidiu escrever sobre a Europa. E escrevendo sobre a Europa decidiu escrever sobre o (quase) crepúsculo da Igreja Católica. A palavra crepúsculo, ao que parece, não está na reportagem, mas...
A Veja, ao que dizem, é conceituada. Em consequência não houve em Portugal cabecinha pensadora que não tivesse falado do que opinara A Veja. O tema não é fácil. E o pouco que se sabe do Recenseamento da prática dominical também não ajuda muito. Mas quase me atreveria a dizer que até parece que A Veja já teve acesso à compilação dos dados...
De facto, parece-me exagero — e não é só por uma questão de fé — falar-se em crepúsculo ou até numa redução próxima do residual, mesmo que a questão não seja de números. Creio que estamos em mudança, o que é muito diferente de sermos espécie em vias de extinção! E mudança é mudança.
Por estes dias, alguém dizia que em Lisboa quando se decidiu, depois de muitas décadas, recomeçar com a procissão de S. António, ela se re-iniciou e as pessoas reocuparam os seus lugares e os lugares das suas memórias ou das memórias dos avós, como se a procissão estivesse suspensa apenas um ano!
É verdade que existem mudanças que o são, e outras como se o não fossem.
O cardeal de Fortaleza, Brasil, Aloíso Lorcheider respondeu a um jornal português dizendo que não se deve olhar a questão pelo lado dos números, se grandes se pequenos; mas pelo lado da caridade. Será a fé dos cristãos uma fé que se pode avaliar pelas obras (ou só pelas rezas)? A resposta dará a tonalidade da mudança.

Schiu!
Lembram-se da tragédia de Timor de há ano e meio? Eu lembro-me. E a imagem que guardarei sempre é a do escuro de uma noite (que piada poderia ter o escuro da noite?, perguntei-me quando via as imagens.), lá nas montanhas onde se haviam refugiado os cidadãos de Dili. Na mira da câmara surgiu um menino (três anos?), caminhando. Deu alguns passos (três? quatro? cinco?), tropeça e cai. E como qualquer menino que sofre as consequências do desamparo e da queda chora. E ainda antes de vermos que umas mãos socorrem o menino ouve-se um schiu firme e suave. E o menino calou-se. Os maus não andariam longe...
Estas e outras imagens devemo-las a alguns jornalistas (corajosos? loucos?) que ficaram em Dili quando todos os outros fugiram permitindo a matança. Passado ano e meio António Veladas, um dos jornalistas (ou dos loucos?) escreveu um livro. Chama-se Timor: Terra Sentida. Não morrerei sem ler o livro.
Não sei se o louco (ou seria jornalista?) foi condecorado, mas deveria ser. Eu assinaria a petição.
Recordo-me de o A. Veladas ter dito uma vez que, enquanto esteve naquela terra enfeitiçada e tão sobressaltadamente perigosa, sempre trouxera um pin com a nossa bandeira. E aquele pin naquele Agosto Negro era uma ousadia que o candidatava a ser comido pelas feras no coliseu dos integracionistas. Mas também abria corações. Contou ele como um timorense sabendo-o português o conduziu ao segredo dum quintal e desenterrou a arca do tesouro. E o tesouro era uma bandeira portuguesa do tempo em que Portugal ia até Timor. Desembrulhou a bandeira beijo-a e disse: “nesta eles não tocaram”! Eles, os indonésios.
Eu só espero poder ler esta história no livro do A. Veladas.

O outro
Não conheço o A. Veladas. Mas lembro-me das crónicas dele na Antena Um naquele Verão Negro de 1999. Eram crónicas com balas e com sangue e com ódio e com esperança e com ansiedade e com medo e com angústia e com noite e com sonho e com valor e com coragem e com...
Nunca tinha ouvido falar dele antes, logo pouco e nada sei dizer dele que não seja pela sua boca. Ouvi-o dizer: “Em Timor aprendi que viver não é só respirar”. E também o ouvi dizer: “Ali aprendi uma virtude: o respeito pelo outro. E só o aprenderia em Timor”.
Todos deveríamos ter direito a um Timor na vida ou merecer tê-lo, mesmo que o preço fosse, na sequência, escrever um livro sobre ‘Como em minha vida dobrei o cabo Timor’! Se for o caso avise-me, mas não deixe de ler o de A. Veladas.

1’
O Mestre disse a um homem de negócios:
  • Assim como o peixe, fora de água, perece; também você, embaraçado nas coisas deste mundo. Deve o peixe voltar às suas águas e você regressar à solidão.
Espantado, o homem de negócios perguntou:
  • Devo abandonar os meus negócios todos, a fim de me enterrar em algum mosteiro?
  • Não! Não! Conserve os seus negócios e entre no seu próprio coração!
[ 8 de Maio de 2001]

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