Sexta-feira Santa
Ainda estamos em Páscoa, porque a Páscoa não é um dia mas
cinquenta. Ao menos liturgicamente. Na realidade (e o domingo é disso imagem)
todo o ano é Páscoa-passagem|memória-da-Paixão-Morte-e-Ressurreição-de-Jesus.
Desde Quinta-feira Santa à tarde a Igreja já começa a celebrar o domingo de
Páscoa. E não chegaremos a partilhar da alegria do Ressuscitado sem O
contemplarmos morto. Sexta-feira Santa é isso: é alimentar a alma com o olhar
olhando o Redentor na cruz. Está lá: morto. Morto porque morreu. Morreu por
nós, e por isso está morto, mas parece majestoso na cruz. Inevitavelmente na
Sexta-feira Santa com os olhos de Jesus olhamos a morte de frente! E vencemos
porque, mesmo morrendo, Ele venceu a morte!
Parece que para muitos
portugueses o ritual da Páscoa mudou. Como comunidade já não nos sentamos com
Ele à mesa; já não O contemplamos morto; já não nos silenciamos diante da sua
morte; já não celebramos a vitória da vida. O ritual é outro: ouvi dizer que,
na Páscoa, um milhão foi a banhos! Talvez não tenham sido tantos, mas o certo é
que viramos as costas ao Morto, abrimos o peito ao sol. Os poucos que restamos
(a verdade é que não fiz as contas...) viveram, também à sua maneira, a Páscoa.
Pessoalmente, vou fazendo a minha
no compasso da vida. E vou ouvindo, e vão comentando: «esta Páscoa é mais
sangrenta que a do ano passado»! Quando escrevo isto é domingo de Páscoa —
domingo da alegria pela vitória de Jesus! —, e o alcatrão das estradas
portuguesas cobre-se de luto, veste-se com o vermelho do sangue. E eu penso:
«Não pode ser». Nem acredito. Afinal é domingo, dia da vida, dia da vitória, e
não Sexta-feira santa, dia da morte, dia da derrota! Como pode dar-se a
inversão laica?
Os novos rituais do marketing e
da gestão do stress transformaram a sexta em domingo, deram-lhe o tom de
feriado laico; e o domingo da alegria tornou-se em sexta-feira de morte e de
dor. É absurdo, mas é verdade.
ETA
Na terça-feira de Páscoa ‘almoço fora’. A televisão está
ligada e nem damos conta. Quando começam as notícias afinamos o ouvido ao ouvir
falar da explosão de fogo de artifício numa freguesia de Ponte do Lima.
Seguem-se as imagens: não há pedra sobre pedra; uns quantos carros destruídos;
um deles tem um enorme pedregulho que abateu parte do tejadilho e do porta-bagagens...
Há destruição... Há mortos... Desprevenido o meu anfitrião comenta: «Nem a
ETA»!
Desta não me lembraria nem eu...
Admira-me que não se verifiquem
mais tragédias! E admiro-me olhando ao pouco que sei: ousa-se de mais,
protege-se de menos; desafiam-se os limites (que há muito ultrapassaram as
normas segurança...), comparam-se ‘foguetórios’. Há, parece, uma ousadia tola,
uma inconsciência infantil!
As imagens de dor e destruição
vão passando, e pergunto-me se já não nos basta ouvir os foguetes a rebentar ou
precisamos de telever as tragédias? Quem brinca com o fogo queima-se, diz o
povo. Mas ano após ano mostram-nos nova tragédia, nova devastação. E
assustam-nos porque é assustadora a atracção do português pelo fogo de
artifício! Tão assustadora como de intimidade tem com o perigo a vertigem que a
sagrada tradição impôs, que o desafio exigiu, que o parecer bem faz estoirar
nos ares.
É macabro perguntar: mas será que
precisamos de continuar a assistir a essas tragédias? Ou ainda é mais que isso?
Damasco
O caminhante mais famoso de
Damasco foi Saulo, S. Paulo. A
caminhada até ficou mais conhecida pelo facto de Saulo ter caído do cavalo,
quer dizer por ter radicalmente mudado de vida e de perseguidor de cristãos ter
passado a cristão perseguido. Dois mil anos depois outro caminhante, João Paulo
II, fez-se pelos caminhos de S. Paulo: Grécia, Siria e Malta.
Existem alguns pormenores interessantes nesta viagem. Na
Grécia tudo foi calculado ao mais infímo pormenor. Tanto pormenorizaram os
dirigentes da Igreja ortodoxa que queriam fazer do Papa um turista mais.
Querem-no distante e afastado. Não conseguiram; impedido de se apresentar como
sucessor de Pedro, e de rezar no Areópago, e de falar em ecumenismo, e de
beijar a terra grega o Papa simplesmente pediu perdão. Esperavam-no orgulhoso e
saiu-lhes humilde; queriam-no turista e foi de copo de sumo de laranja na mão,
que, surpreendentemente, interpela os dirigentes da Igreja Ortodoxa: «E se
rezássemos um Pai Nosso em língua grega?»!
Já na Síria, os mesmos dirigentes
tocados pelo gesto de João Paulo escrevem-lhe apelando ao aprofundamento do
conhecimento mútuo. Foi também na Síria, em Damasco, que pela primeira vez na
história um Papa entra numa mesquita e é convidado a rezar! E mais uma vez pede
perdão!
E lá continua o velho Papa como
caminhante extenuando que parece ir cair a cada passo que ousa dar. Que mais
surpresas nos reserva a sua alma de crente?
Silencioso e fiel
Morreu o meu Pároco, que por
sinal era natural de S. Isidoro, Marco de Canavezes. Tinha quase 85 anos, 57
como sacerdote. Poucos me falaram tanto de Deus como ele. Há cerca de dez anos
perdera a fala. E mesmo assim, à falta de sacerdotes continuou a celebrar a
eucaristia.
Um dia levei um amigo comum a
visitá-lo, e como nos aproximássemos da igreja paroquial e ouvíssemos um
estranho monólogo sentimo-nos atraídos e entramos silenciosamente na igreja. E
o espectáculo era este: celebrava-se a eucaristia! E o povo respondia ao
celebrante, o P. João Marques, como se este falasse a sua parte do diálogo!
Impressionante! Impressionante a forma como Deus se fazia ali presente e falava
naquele diálogo a meias!
Viveu como Pároco de Gatão e Chapa durante 56 anos! E dali
não quis sair nem mesmo quando ficou inválido, sem voz. Isso foi o que o Bispo
disse, e disse que nunca pedira para dali sair! Era o nosso pastor e aquele era
o rebanho que Deus lhe dera. E durante mais de meio século foi ele que nos
levou para Deus. Agora que vive glorificado em Deus só lhe peço que continue a
falar com Deus rezando por nós.
[21 de maio de 2001]
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