Notas de roda-pé
A primeira vez que escrevi as Notas de roda-pé foi
precisamente para o Jornalinho de que hoje sou director. Na altura
convidaram-me a escrever. Porque não sabia sobre que escrever, e como tinha
carta branca rascunhei sobre coisas insignificantes que ficam lá para os lados
do pé da página da vida. Não são coisas importantes, nem daquelas sobre que
incidem todas as luzes; são antes das que só repara nelas quem anda cá por
baixo, nem perto nem longe da correnteza da vida, talvez, quem sabe, um pouco à
margem até. De há uns tempos a esta parte repetiram-me o convite. Agora para A
Verdade. Seja, escreverei outras Notas de roda-pé sobre outras coisas
insignificantes, mas que me dizem respeito, que me espantam, que ficam ou não
do lado da corrente em que me encontro, e me fazem pensar e retomar a escrita
destas pequenas notas.
Jubileu
Terminou o jubileu, já ninguém fala do jubileu. Será que
o Jubileu é passado? Creio sinceramente que nos caberá a tarefa de manter viva
a contínua recordação de Jesus, Jubileu-connosco e Jubileu-para nós. Creio
sinceramente que somos chamados e nos cabe a tarefa de arautos do futuro a quem
entregaremos o desejo que Ele tem de continuar a comer a Páscoa connosco. Creio
sinceramente que nos foi confiado o cuidado de levar no alforge as sementes de
louvor e gratidão pelas maravilhas que o Senhor vai fazendo na história. De
facto, olho para trás e o Jubileu parece ter sido pouco, sabido a pouco. E
talvez tenha sido. E daí talvez eu esteja errado no meu olhar, pois o trabalho
da Graça em nós é como a chuva da Primavera (a do Inverno foi demasiada e
mortífera): fecundante!
Desde a minha janela olho o verde dos campos e medito:
como são formosos os pés daqueles que demandaram o Santuário do Menino Jesus
durante o Ano Jubilar da Incarnação de Jesus! E assim como ao chegar o tempo
das colheitas se enche de fartura o avental da mulher que vai à horta, assim se
encheram da abundância de Deus muitas das vidas que subiram até aos pés do
Menino Jesus. Quem poderá contar? Quem poderá dizer? Talvez ninguém, porque são
contas de Deus. Talvez ninguém porque estas são contabilidades que se escapam à
contagem e estatística com que alguns de nós na Igreja nos gostamos de ungir!
Mas, será passado o Jubileu? Jesus é o Alfa e o Ómega, o
Princípio e o Fim, o Senhor do tempo e de todas as coisas. É sempre o mesmo:
ontem, hoje e sempre! Ele é Jubileu-connosco, até ao fim dos tempos. Ele estará
onde dois ou três estiverem em seu nome, reunidos em memória sua! Enquanto
houver memória haverá Jubileu, e segui-l’O-emos até ao fim! O Amor continuará
entre nós pronto a fazer inteiro um mundo de espartilhos e fronteiras.
Vê-l’O-emos nas nossas taças cheias, abençoará as nossas sementes, baloiçará
nos caracóis das crianças, nos beijos dos enamorados, nos caminhos do
Evangelho. Continuaremos a ser chamados a testemunhar a alegria a fé o amor a
esperança; a intervir nas reuniões cívicas, nas pequenas associações, nos
grupos, bairros, escolas, empresas, comunidades; a trabalhar pelos que sofrem
aqui ou além. Porque um dia, ao entardecer da vida, na presença do Jubileu,
seremos examinados no amor. Terminou o Jubileu, e agora? Agora continuemos
Jesus!
João Malheiro.
Na entrevista a
A. T. Teles de 10 de Março (TSF, 16H00) o director de informação do SL Benfica,
João Malheiro, que é benfiquista e jornalista, e gosta dos dois amores, contou
a seguinte história: em certo dia, tendo chegado à Sala da Direcção onde se
assinaria um contrato deparou-se com um jornalista de boné. Como tal não lhe
pareceu de boa educação convidou o jornalista a tirar o chapéu. Como este
repetidamente se recusou convidou-o a sair e este saiu.
No dia seguinte
passei pela sede de um concelho e ao querer atravessar a ponte não pude: uma
multidão de gente, parada, aguardava qualquer coisa. Parei o carro, saí e vi. À
entrada da ponte estava um cortejo litúrgico. Não percebi logo; em tempos ouvi
dizer que no arco da ponte faltava um cunho e ainda cheguei a pensar que tinham
vindo rezar para que a ponte não caísse. Nos tempos que correm era possível, mas
não muito crível. Dei dois passos e perguntei; afinal, era a corporação de
bombeiros local que cumpria mais um aniversário. Esperamos um par de minutos e
chegaram os bombeiros: majoretes, pendão, fanfarra, desfile de bombeiros,
desfile de viaturas novas. Completou-se de seguida toda a procissão com a
reorganização do cortejo litúrgico: incenso, cruz processional, uma boa dezena
de acólitos, o sacerdote, as individualidades e restante assembleia. Fui
olhando procurando conhecer alguém, e reconheci. E em quem reconheci vi algo
que não devia ter feito. Seja por educação, seja pelo lugar de eleição que na
comunidade ocupa, seja pelas funções que representava, seja pelo momento que se vivia não devia ter feito o que fez:
num gesto que tem tanto de mecânico como de irreflectido meteu a mão ao bolso,
tirou o isqueiro e os cigarros e acendeu um, e lá foi fumando. Adiante, lá ao
fundo, num jardim, o grupo coral dava início ao cântico de entrada da
Eucaristia de acção de graças pela acção de solidariedade daquela corporação de
bombeiros. Terminado o cortejo meti-me no carro e arranquei. E fiquei-me a
pensar: que falta fazem outros João Malheiro, também a nível litúrgico, que
convidem a respeitar quando se está em terra
sagrada ou a sair quando não se percebe nem se quer perceber nada da terra
que pisa!
Sabonete
Esta história não
é minha. Contaram-me que numa escola de S. João da Madeira havia um cão com o
seu brio. Alguém com sentido de humor, dizem que talvez um aluno, baptizou o
bicho com o original e higiénico nome de Sabonete. Sabonete viveu por ali uns
anos; defendia o seu território de outros cães, respeitava os garotos,
correspondia aos cumprimentos, obedecia às autoridades. Enfim, tornou-se um cão
social e sociável. Ora, um dia o cão desapareceu. Desconsolo de todos, alunos,
professores, administrativos... Meses mais tarde alguém da Escola passou pela
Universidade de Coimbra e viu um cão. Chamou-o e ele veio. Era o Sabonete que
para ali fora levado por uma turma de saudosos caloiros vindos da tal escola de
S. João da Madeira!
E quem me contou
a história resumia assim a moral: já nem só os burros vão para a universidade,
também os cães! Salvo seja...
Nem eu
Estamos na
Quaresma. A Igreja Católica marca-a com as marcas do jejum, da caridade e da
oração. Potenciam-se assim realidades perfeitamente humanas que nos elevam para
o divino e nos aproximam ainda mais dos nossos iguais.
A propósito da
caridade transcrevo uma história dura como um punhal e que li já nem sei onde
nem quando. Foi na Índia, naquela Índia que atraía ocidentais por muitas razões
e ainda porque ali viver uma mulher ocidental de nascimento e indiana por
vocação e fraternidade. Chamava-se Madre Teresa. Ali fora um jornalista para a
entrevistar e seguir os seus passos de dia – a – dia. Quando a Madre saiu à rua
ele seguiu-a; quando ela parou junto a um corpo de um escanzelado moribundo ele
parou. Quando ela se ajoelhou e o amparou em seus braços ele apertou o nariz. E
como a Madre ali ficava, ali ficava ele. Olhando, tirando notas, fotografando
talvez. E como lhe parecia tempo demasiado perdido com alguém sem futuro, e
como tudo aquilo fugia de todas as lógicas e critérios humanos o jornalista
aproximou-se da Madre e disse baixinho: — Madre, eu não faria isso nem por todo
o dinheiro do mundo!
Ao que ela
respondeu: — nem eu!
[9 de Abril de 2001]
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