...

sábado, 4 de maio de 2013

Notas de Roda-pé



Auschwitz
Auschwitz é o outro nome do mal. Ou melhor é o mesmo nome. São a mesma coisa. De tal modo o nome remete para o campo onde o mal cultiva o horror que se pode falar de um tempo antes de Auschwitz e um tempo depois de Auschwitz. Foi o maior dos campos de concentração da Alemanha Nazi (na verdade eram três campos de concentração!). Em cinco anos, de 1940 a 1945, ali morreram mais de 2,5 milhões de pessoas! Antes de morrer, porém, eram obrigados a trabalhar intensamente como mão de obra escrava até ao último esgotamento («O trabalho liberta», afirmavam os Nazis!). E os que dele não morriam foram exterminados nos duches em que eram gaseados e depois eliminados nos fornos crematórios. Assim expiaram as culpas de serem diferentes, ou adversários políticos ou simplesmente judeus ou cristãos.
No complexo de extermínio de Auschwitz a dignidade humana morreu às mãos do mal. O desrespeito pela pessoa humana chegou a tal ponto que se negou que valesse algo. Em memória do Holocausto o estado polaco criou em Auschwitz um museu. Quem o visitou diz que, à saída, o silêncio diz: «Nunca mais!».
Há alguns anos o Vaticano sugeriu que naquele lugar em que o mal imperou se fizesse memória dos que ali pereceram. O silêncio e a oração seriam a forma da memória. Uma comunidade de freiras católicas, carmelitas, chegou mesmo a viver e a rezar ali. Mas os judeus de todo o mundo e outras cabeças bem-pensantes levantaram a voz e forçaram a saída das freiras que levaram com elas a cruz de Jesus que se via num pátio. Contudo, diga-se, os judeus não tiveram o monopólio das mortes em Auschwitz...
Um destes dias a imprensa noticiou, num minúsculo quadradinho, que em Auschwitz se construiu um centro comercial que inclui uma discoteca. Contradições, ou talvez não..., pensei. Como não se ergueram vozes (e ainda bem, porque se se erguessem teriam dito que eram católicos saudosistas com sede de retaliação...) quero entender que a morte ignominiosa de tantas pessoas é hoje melhor honrada com o riso, o divertimento e o consumo que com o silêncio e a oração! O futuro julgará a insensatez!

Café quente
Sábado à noite. Um sábado como outro qualquer. No tabuleiro da ponte 25 de Abril ficou parado um ligeiro de mercadorias. Pouco depois informam o 112 que o condutor se apeara e ameaçava suicidar-se. A noite está fria e ele está ali há muito tempo, desiludido de si e dos outros... Cortado o trânsito sobre a ponte acorrem a PSP, GNR, Polícia Marítima e Bombeiros. A primeira leitura confirma que a tragédia está iminente. Arrojado um jovem bombeiro adianta-se sobre o abismo e pela noite dentro ao encontro do suicida. E oferece um pouco de conversa e um café quente. O suicida aceita, e depois de dois dedos de conversa e o café quente desiste dos seus nefastos intentos.
Sobre o gelado abismo encontraram-se duas pessoas, um desesperado e um salvador. Era noite. Um ofereceu uma ponte de regresso. Era uma ponte cheia de calor. O outro precisava tão só que lhe aquecessem as desilusões da vida. E regressou pela ponte que lhe estenderam. Enfim, tanto frio e tantas vidas que se perdem porque não há calor bastante que dilate as pontes e possibilite encontros salvadores como este!

Hino
Passados cinco séculos da chegada dos primeiros missionários portugueses Timor tornou-se independente. É o oitavo estado de língua portuguesa e o primeiro estado independente a nascer neste século.
Não assisti a toda a cerimónia da independência e transferência de poderes, mas o que vi comoveu-me. Tinha curiosidade em confirmar se o presidente Xanana Gusmão cantaria ou não o hino do novo país, o país de que é presidente. Porém, não me foi possível tal confirmação. Compreendo que Xanana se sinta desajustado na tarefa e no lugar para que foi eleito. Compreendo e aceito que seja mais fácil pintar para a história o quadro de herói que realmente é. Já não compreendo bem que um presidente não cante o hino do seu país. Terá cantado, não terá cantado? Não sei. Consta que o hino de Timor Lorosae contém referências ao colonialismo de Portugal. Talvez isso desagrade a Xanana; e talvez desagrade pelo muito que Timor ainda precisa de Portugal.
À hora em que escrevo a selecção ainda não jogou com os EUA. Ouço, entretanto, dizer que Timor está a fazer tudo para arranjar um satélite que faça chegar ali as emoções do jogo. É preocupação pelos portugueses que lá vivem, mas não será só por eles.
Quando se falava da lesão de Figo este terá dito que não queria que ela se tornasse questão de estado. Claro que queria falar de Portugal. Mas agora já não tenho bem a certeza. Ou melhor, penso que também Timor puxa por Figo e pelos outros dez da selecção lusa. É claro que Figo também não quererá desiludir os adeptos timorenses. Quer dizer, o que a História separa une a emoção do futebol!

Crianças
No passado dia 1, nos diferentes jornais da noite vou vendo formas diversas de festejar o Dia Mundial da Criança. Nunca são demasiados os festejos, diga-se. Salto de uns para outros, dum canal para o outro e outro. E além dos festejos também deparo com denúncias, entre elas a de que há muito trabalho infantil em Portugal. E há.
A seguir ao noticiário seguem as novelas. Como não as sigo não arrisco um número mas sei que são muitas as crianças nelas intervenientes. Durante um telejornal uma criança-a-fazer-que-era-jornalista entrevista uma criança-actriz. Esta revela com algum embaraço que os últimos trabalhos em televisão a obrigaram a chumbar o ano. Pois, penso eu, e nem admira...
No écran segue a novela e nela vão desfiando-se presenças várias de diferentes crianças. E eu que não sou mais inteligente que ninguém pergunto-me: E quem se lembra (e protege) das crianças intervenientes em actividades como filmes, telenovelas, desporto, moda? Não é de certeza errado afirmar que nestas actividades, pretensamente lúdicas, as crianças são exploradas como, de resto, o são noutras actividades cujas denúncias são frequentes. Mas porque o serão numas situações e noutras não?

1’ de sabedoria
-- Qual é a acção mais nobre que uma pessoa pode realizar?
O Mestre respondeu: -- Parar e dedicar tempo à meditação.
O Mestre, porém, raramente era visto sentado a meditar. Vivia continuamente envolvido pelos trabalhos da casa e do campo. Atendia as pessoas, escrevia livros e, acima de tudo, ainda arranjava tempo para fazer a contabilidade do mosteiro. Ao testemunhar a azáfama alguém lhe perguntou:
--Parar e meditar?, mas o senhor passa o tempo a trabalhar!
-- Ora, respondeu o mestre, quem disse que alguém, enquanto trabalha, precisa parar de meditar?

 [3 de Junho de 2002]

Sem comentários: