...

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Notas de Roda-pé



Poesia
Em Vila do Conde seis poetas bateram um recorde mundial: leram poesia durante 54 horas e 19 minutos. O responsável pela organização era barbeiro e eu vi-o na televisão a cortar o cabelo a um poeta que lia poesia em voz alta.
Dizem que Portugal é país de poetas, embora não seja muito dado a recordes. Por isso segui com interesse o desenrolar da tentativa de recorde. Somos também um país de extremos: por uma causa propomo-nos e batemos um recorde. E batido o recorde – quando o conseguimos, claro! – olvidamos a causa, voltamos ao rame-rame quotidiano e jamais nos passa pela ideia que além, e além de além, existe sempre um outro recorde a abater, a ultrapassar, por que isto de recordes e fronteiras devem colocar-se sempre ao nível do utópico. Enfim, somos assim. Porém, como é curioso verificar que a poesia possa entrar pelas nossas cidades e chegar às nossas vidas para nos deixar mais bonitos, mais abertos ao utópico e também mais humanos! O poeta-barbeiro que o diga!


Santos
Há dias o Delfim perguntou-me como se faz um santo. Andei a investigar e a resposta foi por mail. Mas cometi um erro. Esqueci-me de dizer-lhe – embora fosse implícito – que não se faz um santo se ele antes não for santo. Quero dizer, a Igreja não canoniza alguém que em vida não tenha vivido reconhecidamente como tal.
Lembrei-me da história quando há poucos dias celebrávamos o Centenário da Profissão Religiosa de Frei David da Virgem do Carmo, Mártir Carmelita Português. Depois da celebração ficou no ar a mais que possibilidade de fazermos um santo. Em vida parece tê-lo sido. Alguém perguntava: a Igreja Portuguesa ver-se-á enriquecida com a proclamação e o reconhecimento da santidade do Frei David da Virgem do Carmo? Concerteza que sim. Sê-lo-á se quem de direito assumir com a urgência e inteligência devidas as suas responsabilidades, porque o povo simples e humilde de Semide, os romeiros do Senhor da Serra e a o Carmo sabem que o seu sangue não foi derramado em vão e por isso já lhe chamam Santo Frei David da Virgem do Carmo!

Jornal
De Miranda do Corvo telefonaram-me para falar do Mártir. Miranda do Corvo é o concelho natal de Frei David. E sabe, nós já noticiamos as celebrações em torno ao frei David (60 anos do seu martírio)! Eu tinha uma vaga ideia. Mandaram-me o Mirante e leio que o Presidente das celebrações declarou à Rádio Renascença «que a canonização é um processo longo e moroso e que se torna necessário encontrar gente determinada e decidida que lute por uma causa até ao fim». Afinal cometi dois erros, e aqui vão as minhas desculpas ao Delfim. Não basta que o santo o tenha sido, é necessário que alguém lute pela causa e mantenha a chama acesa até ao fim.

Pés
Um santo não se faz, deixa-se fazer. Antes de lhe pormos velas aos pés há-de ele por pés ao caminho e subir a encosta da santidade, da renúncia do dia a dia; há-de abrir-se à Palavra, manter-se fiel ao Evangelho, deixar-se guiar pela voz do Espírito Santo. Parece fácil, demasiado passivo até. Pode parecer, mas não o é concerteza. Exige muita abnegação, dedicação constante, uma fidelidade atenta, um cuidado extremo.
No Verão cruzei-me com um dos maiores génios que conheço. Sempre que vejo o homem me questiono como pode caber tanta sabedoria num corpo tão pequenino. Por isso, ao saudá-lo atirei a matar: «Ó Salvador, estás cada vez mais pequeno!»; «Sim filho, respondeu-me, mas Cristo está cada vez maior em mim!». É isto um santo, mais importante que as (im)perfeições é a presença de Cristo na vida dele; mais importante que a pequenez humana é a nele sempre crescente grandeza divina. Assim são os santos e os a caminho de sê-lo.

1’ de sabedoria
Certo pregador costumava dizer: «Nós temos de pôr Deus em nossas vidas!»
No fim da pregação o Mestre foi ter com ele, e em resposta disse-lhe: «Deus já está em nossas vidas. O nosso trabalho é só reconhecê-lo.»

[1 de Novembro de 2002]

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Notas de Roda-pé



Amo-te
Ao passar pelo país profundo dei de caras com uma mensagem que me pareceu deslocada para o local. Um ano depois volto a passar pelo mesmo local e o cartaz continuava lá. Julguei nunca mais passar por aquele local, mas passei. Já tinha esquecido a mensagem mas, um ano depois, depois da mesma volta do caminho lá estava ela. A mensagem diz: «Amo-te carpe diem». Assim mesmo, sem mais. Há na frase um erro, senão erro. Creio que entre o predicado e o complemento directo deveria haver uma vírgula. Mas não há, o que deve ser, concerteza, um erro.
Da primeira vez pareceu-me desajustada a mensagem em relação ao local (totalmente desértico, totalmente montanhoso). Da segunda vez não pude evitar pensar que para além do erro deve existir ali uma contradição. E se existir uma contradição, decididamente a mensagem não diz o que quereria dizer.
Vejamos. Um apaixonado aproveitou para se declarar. E fá-lo publicamente. Alguém ama alguém e não quer que isso fique apenas entre os dois. Até aí tudo certo. O erro (para além da falta da vírgula) vem depois. A expressão latina – carpe diem – é contraditória com a declaração de amor. Só o amor tem expressão de eternidade. Nada mais existe com tal força declarativa. Dizer a alguém ‘amo-te’ é dizer-lhe que ‘para mim tu nunca morrerás’. É certo que existem muitos morreres, mas nenhum mata o amor. E se matar é porque a declaração era falsa. Estamos, pois, em que a declaração de amor tem algo e tudo de definitividade, é para sempre. Como e só o amor é.
Já dizer (ou aconselhar, ou pedir, ou convidar) a alguém ‘carpe diem’ é dizer-lhe ‘goza o momento’, ‘gozemos agora porque logo é tarde’, ‘Aproveitemos o instante’.
Sem querer, creio que sem querer, a declaração contradiz-se e anula-se. Declara o definitivo, o absoluto, o único que não morre, e, simultaneamente, afirma que tudo morre, que tudo acaba, que é preciso aproveitar antes que tudo termine... porque a vida é só um momento. No fim de contas, quem ama só pode amar para sempre nunca a prazo!
Pensando bem, talvez a mensagem nem queira dizer nada disto. Talvez queira dizer uma terceira coisa. Pode querer dizer algo que os passantes não alcançam. E eu talvez não tenha alcança, e talvez a mensagem nem seja para mim (embora também seja para mim por que é pública). Eu que lá passei e a li tenho direito a interpretá-la como eu quiser, e ao interpretá-la ela não fez sentido.
Lá diz o poeta brasileiro que tudo é eterno enquanto dura. O que vem dar ao mesmo. Como não abrangemos a ideia de eternidade  – sem princípio e sem fim – encarcerá-mo-la em prisões temporais demasiado pequenas, em instantes e momentos que se possa gozar e consumir já, no imediato.
Eis, pois, o nosso tempo. A eternidade termina hoje, nada se constrói para além de amanhã. Tudo fica aquém, nada vai para além. Já não há universo, há apenas o horizonte onde se encerra o jardim da minha casa – se tenho casa e se a minha casa tiver jardim! Já não há amor, há gozar. Porque tudo passa e nada é eterno! Ou só é eterno enquanto dure.

Nada
Só a simplicidade faz caminho, só a simplicidade perdura. Há um poema que diz:
Nada te perturbe
Nada te espante.
Quem a Deus tem
Nada lhe falta
Nada te perturbe
Nada te espante
Só Deus basta.
O poema é de Santa Teresa de Jesus. Quando eu li a mensagem do carpe diem ia a caminho dum encontro com ela. Inevitavelmente tive de me recordar dela enquanto lia a tal mensagem. E inevitavelmente fiz comparações.
Por um lado, nada dura para além do horizonte que enxergamos – e como enxergamos pouco!; por outro lado só Deus basta. Por um lado, devemos procurar gozar tudo quanto antes; por outro lado nada falta a quem tem a Deus. Por um lado nega-se a eternidade; por outro lado, S. Teresa de Jesus ensina que nada nos deve perturbar – mesmo que a eternidade não exista. Embora exista!

Albertina
Na rádio há Um Lugar ao Sul. Não sei onde fica Um Lugar ao Sul, mas sei que fica algures entre o Alentejo e o Algarve embora entre bem no Algarve. Rafael Correia anda com um microfone às costas e com ele faz um programa simples. Dá voz ao outro lado da cultura, daquela que habitualmente tem audiências, subsídios, palmas, palcos, exposições. É aos sábados, pela manhã. Rafael surpreende o povo ora num estendal de roupa ora numa carpintaria, ora a cavar terra ora a pastorear o gado, e o povo fala. E de que fala o povo quando lhe põem o microfone diante – que, no final de contas é como se lá não estivesse? O povo fala de dores e maleitas, de alegrias e surpresas, de fé e de Deus, de trabalhos e sonhos, de tradições e mudanças. Mas Rafael Correia põe o povo a dizer isso em verso e a cantar. Cantam fados e modinhas, declamam poemas quase sempre deles e do Aleixo também. Enfim, o povo fala do que lhe vai na alma. E tanta coisa habita a alma do povo que vive em Um Lugar ao Sul!
Um destes dias Um Lugar ao Sul era algures em Alportel. Rafael Correia estava com uma poetisa popular. O nome da poetisa era Albertina. Ela tem passarinhos que a visitam, um cão Fiel, e uma filha na Universidade. De resto vive só, num monte. O povo – digo, a poetisa Albertina – daquele dia não se queria calar. E ele que só tem uma hora para deixar a poesia falar queria terminar o programa (que é pré-gravado). «Mas como é que o senhor me descobriu aqui?», prolongava ela a conversa. «Foram os poemas contesta ele. Diga só um, diga o último dos últimos». E ela disse. Eu ia de carro para um qualquer lugar ao norte e logo me senti num outro qualquer lugar, Um Lugar ao Sul, junto duma velhinha que mata a solidão com poemas. Deviam deixar o povo falar mais. Num qualquer lugar...

Dinis
Conheci Dinis Faísca em Roma, em Agosto de 2000. O P. Dinis Faísca é magrinho, muito moreno, muito calado. Calado não, sereno. Eram os dias do jubileu dos jovens em Roma e Dinis tinha peregrinado a Roma em cima duma bicicleta com mais nove cicloperegrinos. Eu fora de autocarro e estava todo partido. Ele não. Não falamos muito, o suficiente para saber que tudo correra bem, que não fizera turismo mas peregrinação, que viera em oração e não em galhofa. Aliás, como nós, como os três milhões de jovens que ali nos encontrávamos.
No dia 10 leio num jornal que o P. Dinis Faísca, pároco de Alcantarilha, em Albufeira, preside a nova peregrinação de cicloperegrinos. Agora são 400 e vão a Fátima. São 424 quilómetros em quatro etapas percorridos por crianças e adultos, amadores das bicicletas e até federados. Numa fotografia lá estão eles em frente da matriz de Albufeira onde receberam a bênção dos peregrinos. Vêem-se bicicletas e ciclistas aperaltados a preceito, violas, sorrisos e fé qb. É a fé em movimento, a caminho.

Por estes dias cumpriram-se quarenta anos do Vaticano II. Foi oportunidade para fazer balanços e comparações. Há comunidades e pastores a inovar, a cativar, a convocar. Falta saber se chega fazê-lo à força de pedais.


1’ de sabedoria
Disse o Mestre a um certo grupo de discípulos dispostos a fazer uma peregrinação:
– Levem esta erva amarga convosco e mergulhem-na em todos os rios sagrados que encontrarem no caminho; levem-na também a todos os santuários que pretendem visitar.
Quando os peregrinos voltaram, a erva foi cozida e servida como alimento sacramental.
– É estranho, comentou o Mestre depois de ter provado a verdura, é estranho... As águas sagradas e os santuários todos não conseguiram tirar o amargor desta erva.

[19 de Outubro de 2002]

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Notas de Roda-pé


Memória
São demasiadas as cenas de horror que nos habitam depois do 11 de Setembro de 2001. Na memória guardo, porém, alguns ícones de esperança.
Guardo a fotografia dos colegas do Padre Mychal Judge trazendo-o morto (a mim parece-me ressuscitado!). Trazem-no do túmulo para nos mostrar que a morte por oblação é vida!
Guardo a fotografia duma pomba negra olhando incrédula do alto de um prédio para o local onde restavam os sinais do ódio dos humanos. Dizem que em tempo de guerra as pombas não voam. Deve ser verdade. Acredito mesmo que não consigam. Ficam parvas só de olhar para a estupidez humana!
Guardo a fotografia das Torres de luz elevando-se dos escombros para iluminar as noites do horror e do ódio, da estupidez e do fanatismo, do desprezo e do orgulho. Vós sois o sal da terra, vós sois a luz do mundo, disse o Mestre. Quando o sal não é sal e a luz não é luz cai a noite. Felizmente alguém tem ainda forças para acender uma luz e colocá-la sobre o candelabro que a loucura não consumiu!
Guardo a fotografia dum frade benzendo uma cruz gigante no Ground Zero. A Cruz é feita de duas enormes colunas de ferro saído da estrutura das Torres. E recordo-me que alguém perguntou um dia a Gaudí: «porque coloca aí esse empecilho?» E o arquitecto respondeu: «Não é um empecilho é uma cruz, minha senhora.». Ali, onde morreram homens de todas as raças e cores, de todas as religiões e sem ela, não é empecilho nenhum que se eleve o sinal da vitória do Ressuscitado. Quem olhar para Ele será salvo e viverá!
Guardo a memória do som que não ouvi. Sabendo que ia morrer num dos aviões transformados em bomba, um homem ligou para uma operadora dos telemóveis e perguntou: «Sabe rezar? Reze comigo por que vou morrer.» E rezaram em nome de Jesus e Jesus com eles, porque onde dois ou três se reunirem em meu Nome eu estou no meio deles!
Guardo a história do menino Amin. Porque os abismos se atraem, depois que caíram as Torres caíram bombas sobre o Afeganistão. Aqui a miséria multiplicou-se por mais miséria, por ódios, por fome, por vinganças, por guerra... Depois dos bombardeamentos Amin ficou sem aldeia, sem pais, irmãos, familiares, amigos. Errou sozinho durante doze dias até à fronteira. Foi ali, num campo de refugiados, que Hussana ouviu um vozita trazida pelo vento carregado de pó da tempestade implorando: «Khali [tia] pode aceitar-me como filho?». E Hussana que já tinha muitos filhos respondeu: «E por que não? Tu és afinal criatura de Deus!»
Enquanto houver quem reconheça a presença do amanhecer de Deus nos dias humanos a esperança brilhará na noite.

Carmo
Uma das últimas noites de Agosto reservou uma singular surpresa para quem andava atento em Faro. Na igreja de Nossa Senhora do Carmo cantaram-se salmos e suras. A Bíblia e o Corão deram as mãos e cantaram-se a uma só voz os louvores do Criador, porque o que foi sonhado pelo Seu coração e, saiu das suas mãos, é belo e irmão.
Em Faro, numa quente noite de Agosto, as vozes cantaram a fé. E a fé mostrou que as fronteiras podem ser ultrapassadas (que se o não forem podem esganar-nos). Como um jardim o Carmo mostrou que é local de encontro e de fé, de comunhão de diferenças e celebração de bênção até com (para com) aqueles que estão ausentes.
Eu não ouvi nem os cânticos cristãos nem os hinos muçulmanos, mas rejubilei quando soube que, em Faro, a fé cantou a abundância do coração. Era noite e na noite rebrilhou a luz da fé cantada.
Não sei como, não sei quando. Não sei se no intervalo ou se no fim. Sei que os presentes foram convidados a abrir as carteiras e a fazer partilha de bens em favor dos famintos, dos deserdados da fortuna. (A entrada era livre, e o meter e tirar a mão da carteira também.)
Dizem que as religiões por onde passam criam fronteiras. Talvez seja verdade. Mas quem teve os ouvidos abertos em Faro, pôde ver de noite que as fés também sabem (convidar a) dar as mãos. É que a fome não tem fé nem fronteiras, mas mãos abertas.

Lixo
Quiseram maquilhar o maltrapilho, mas ele não quis. Quiseram dar-lhe um fato de fino recorte italiano, e ele não aceitou. Que ia entrar em directo num programa de prime time, mas nem isso o demoveu. Era assim e pronto, porque haveria de mudar? Entraria como estava vestido, como sempre se vestia, ou não entraria. Foi assim que reagiu Abbé Pierre — personalidade quase desconhecida em Portugal, quase idolatrado em França — quando um dia o quiseram ‘retocar’ minutos antes de entrar em directo num programa de grande audiência da televisão francesa. O maltrapilho recusou sempre porque, embora tivesse chegado a ser deputado da Republica Francesa, a única obra de que se orgulha é a de ter fundado os Farrapeiros de Emaús (e por isso vivia e vestia como tal). Foi em 1949 que se deu o «encontro entre um homem desesperado (que se queria suicidar, creio eu) e um homem inspirado (ele próprio). Do encontro nasceram as comunidades dos Trapeiros de Emaús. Hoje são mais de quatrocentas em 58 países. Vivem como comunidades de espírito e vida, de abertura e acolhimento, de trabalho e partilha, de compromisso social e político.
O homem que veio do lixo chama-se Abbé Pierre e no dia 5 de Agosto cumpriu noventa anos. Aos noventa anos ainda recolhe e recicla lixo para provar «que andamos a desbaratar os recursos do mundo». Quem disser que já não há profetas engana-se, por que há um. Pelo menos um. Vive a fraternidade como profecia no meio do lixo!

1’ de sabedoria
Ele era um escritor religioso, interessado nas opiniões do Mestre. Por isso, perguntou-lhe certo dia: «Como se faz a descoberta de Deus?».
O Mestre respondeu: «Tornando o coração branco por dentro, através do silêncio e da meditação; em vez de escurecer o papel com dissertações religiosas.»
Depois, voltando-se para os seus discípulos, acrescentou com certa ponta de ironia: «... ou em vez de tornar pesado o ar com conversas eruditas.»

[27 de Setembro de 2002]

terça-feira, 14 de maio de 2013

Notas de Roda-pé



Vallerini
Estava Itália posta em sossego e rebentou uma bomba nos jornais. Há coisas que não lembram ao Diabo. E desta também ele se não lembrou, claro. Um jovem italiano de 19 anos foi para o Noviciado, queria ser frade! Até aqui nada que mereça ser notícia ou ser comentado... Se dissermos que se chamava Victor Claudio Vallerini também não vemos porque se haveria de noticiar, pois o nome é como muitíssimos outros: de tão comum e banal não diz nada a ninguém. Mas o certo é que o anúncio de que o jovem Victor Claudio ia para o convento escandalizou meia Itália e alguns jornais até o insultaram. Chamaram-lhe louco a ele e a Deus! Mas que terá feito o jovem para merecer tratamento tão cruel? Simplesmente decidiu abandonar a vida que levava e trocá-la por outra. Uma tarde (isto só poderia passar-se de tarde) aproximou-se do seu treinador e disse-lhe: «vou deixar o futebol (jogava na Lázio de Roma) e vou para o convento porque quero ser frade».
Eu nem assim compreendo o escândalo!
Não consigo compreender porque há-de ser notícia (e notícia escandalosa!) a ida de um futebolista para o seminário e não ser notícia a interrupção duma carreira em arquitectura, engenharia ou jornalismo para se consagrar a Deus! Deve dizer-se que a história de Vallerini até é bastante comum. E também é certo que há no mundo juvenil muita bondade e generosidade, muita radicalidade e entrega, e muitos (cada vez a maior maioria) optam pelo serviço a Deus e aos irmãos por gosto, pela positiva, em liberdade, por encantamento por Jesus...
É triste que a sociedade italiana se tenha escandalizado com o chamamento de Deus a Vallerini. Tanto mais triste quanto o jovem continuará a jogar o jogo da vida feliz no convento! E é um jogo que não é para si, mas para os outros...

Oração
Senhor, eu quero ser como a bola de futebol, disponível para todos e para cada um, que alegra e diverte todos os que a usam, sobretudo as crianças.
Eu não quero causar nenhum mal a ninguém.
Gostava de jogar não só porque me dá gozo, mas também para fazer felizes os outros. Gostava de jogar não só no campo mas na vida toda com espírito de equipa. Gostava de entrar em campo cheio do teu bom espírito, de jogar para ganhar mas sem fazer rasteiras a ninguém, de aceitar perder com dignidade e de ganhar com humildade. Gostava de ser um jogador feliz.
Ajuda-me a dar o melhor que tenho, o melhor que sou. Ajuda-me a jogar a vida como Tu, pelos outros. Ajuda-me a encontrar a melhor estratégia para pôr todos os outros a jogar também.
Sê o meu modelo no jogo da vida. Faz comigo o que quiseres. Estou disponível para jogar na Tua selecção. Se Tu quiseres. Faz de mim um instrumento de felicidade.

Chesin
Chesin é coreana, sul-coreana. Encontrei-a recentemente em Segóvia, cidade castelhana, junto à fonte de S. João da Cruz. Nasceu há vinte e oito anos no seio duma família ecuménica. Aos oito anos o pai, católico, deu-lhe a escolher a religião que queria seguir (costumes bem diferentes dos nossos, claro...). Não escolheu nenhuma das tradicionais nem dominantes da Coreia (Budismo, Xintoismo, Hinduismo). Escolheu ser cristã. Poderia ter sido protestante, mas preferiu ser baptizada católica. (O nome católico — Silvia — foi escolhido pela mãe por evocar um bosque típico coreano onde existem umas árvores que crescem muito, crescem muito para Deus). Mas o pai precisava duma justificação. Católica, porquê?, perguntou. Por causa do sorriso de Nossa Senhora, respondeu. É uma resposta válida, disse o pai. E ele mesmo lhe ensinou a catequese e a apresentou ao sacerdote para que a baptizasse.
Durante muitos anos andou perdida. Tão perdida que se aborrecia de andar perdida! Um dia encontrou de novo aquele antigo sorriso que a cativara. Não hesitou: fez-se peregrina do sorriso. Estava em Segóvia, sentada à sombra dos ciprestes do convento, junto ao túmulo de S. João da Cruz onde aportara recentemente.
Lá diz o fado: tudo isto existe, tudo isto faz sorrir, tudo isto é fácil! Ou parece.

Coração
Do coração jovem ao coração indígena, assim titula uma revista espanhola a recente viagem papal que passou pelas jornadas mundiais da juventude, em Toronto, e depois pelo México e Guatmala. Entretanto, já se deslocou à sua amada Polónia natal para ouvir os seus concidadãos dizer-lhe: «fica aqui, fica connosco»! Definitivamente este velho papa tem um coração novo!
Um jovem dizia-me recentemente: «olhe como o Papa gosta de nós. Repare como ele andava velho em Roma, e ganhou vitalidade quando nos viu!» (E em Toronto ao descer do avião o Papa surpreendentemente prescindiu da elegante escada rolante que lhe apresentaram e desceu a pé a escada normal!...). É verdade. O Papa está no coração dos jovens e ali faz estragos porque amor com amor se paga!
No México canonizou o primeiro indígena americano, S. João Diego Cuauhtlatoatzin («a águia que fala»), e disse: «a nobre tarefa de construir um México melhor, mais justo e solidário implica a colaboração de todos. É necessário apoiar os indígenas nas suas legítimas aspirações. O México precisas dos seus indígenas e os indígenas precisam do México».
Em Toronto, antes de se despedir dos jovens disse-lhes: «Se amais a Jesus, amai a Igreja. Não vos desalenteis por causa dos erros e carências de alguns dos seus filhos». O Papa gosta dos jovens. Os jovens gostam do Papa, deste Papa com coração que diz as verdades mesmo que duras como pedras. «Sou um velho Papa carregado de anos mas com um coração novo», disse-lhes também. Ainda bem que é um Papa de coração que nos fala essas palavras que nos custam ouvir. Ainda bem que as diz com o coração. Não por que fiquem menos duras, mas mais imperativas.


Foto
O JN e Público de hoje (19.VIII.2002) trazem na capa a mesma fotografia. Num fundo avermelhado aparece, de perfil, o rosto do papa. Vê-se o rosto e a mitra apenas, tudo o mais à frente, atrás e acima é pano de fundo. Olhei-a num jornal e chamou-me a atenção, vi-a no outro e não resisti. Que quererá dizer uma fotografia assim? Sim, que quererá dizer?
Talvez nos diga que o Papa se vai. Vai desaparecendo da fotografia, vai saindo da história (mas não do nosso coração), desta história de fins do século XX e inícios do XXI que ele ajudou a tornar mais humana e mais de acordo com as exigências do progresso humano.
O Papa João Paulo II vai saindo da história, mas deixa-a fecunda e incendiada de amor, como nos pediu no final do Jubileu dos jovens, em Agosto de 2000. O Papa vai saindo da história mas deixa os jovens como pano de fundo donde ressalta a sua imagem. Ali brilha o Papa, mas, incendiados por ele, sobra um imenso pano de fundo de fogo. São jovens incendiados pela eficácia da sua palavra e pela corajosa tenacidade com que enfrenta a vida.
Dentro em breve far-se-ão muitas tentativas de síntese do seu pontificado. Eu arrisco uma: olhando o rosto do velho Papa vemos inevitavelmente os jovens como pano de fundo. (Incendiados por ele) eles são já o sal da terra, a luz do mundo e  as sentinelas do amanhã.
Há fotografias assim, têm tanto de profético como de síntese duma vida.

1’ de sabedoria
Quando o mestre ficou velho e doente, os discípulos pediram-lhe que não morresse. O mestre respondeu:
    Se eu não morrer, como conseguireis ver?
    Mas, há ainda alguma coisa que não vemos enquanto você ainda está no meio de nós?, perguntaram os discípulos.
A esta pergunta o mestre não respondeu. Por fim chegou a hora da sua morte e eles insistiram na pergunta:
    Mestre, que veremos depois de você morrer?
Com um sorriso nos olhos ele respondeu:
— Enquanto estava vivo tudo o que fiz foi ficar sentado junto à fonte, passando para vocês a água que dela nascia... Agora, depois da minha morte, espero que, finalmente, vós consigais ver a fonte!

[26 de Agosto de 2002]

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Notas de Roda-pé



Elo
Foi Ele que propôs a Aliança. É Ele que sustenta a Aliança. É Ele quem renova a Aliança. É Ele quem restaura a Aliança. Ele é o elo mais forte. Ele é concerteza o elo mais forte, mas necessita de nós... O elo mais forte não derrota ninguém, espera por nós, necessita de nós, joga connosco. O elo mais forte precisa do elo mais fraco. Não joga ao «bota fora». Fora ou dentro joga sempre o jogo da vida connosco. Vida em aliança. Ele é o elo mais forte, mas não fica mais fraco se lhe ganharmos o jogo. Aliás, o elo mais forte joga para perder. E ganha se ganharmos. E nós ganhamos se Ele perder. Foi Ele quem o disse. Na cruz Ele perdeu para ganhar e ganhou-nos de vez, mesmo que antes tenhamos perdido ao romper a aliança. O elo mais forte ganhou perdendo, e na sua derrota ganhamos nós, o elo mais fraco.
Ó feliz culpa!

Oxalá
Alguém chamou «mística do oxalá» àquela tendência demasiadamente humana de frequentemente enchermos a boca e o coração com adiamentos: «Oxalá eu fosse rico!»; «Oxalá a minha mulher tivesse carácter»; «Oxalá a saúde dos meus filhos fosse melhor»; Oxalá o meu patrão fosse honesto»; «Oxalá o meu sócio fosse pontual»; «Oxalá eu tivesse mais tempo»; «Rezarei quando tiver mais tempo, oxalá..»; «Quando me reformar começo a ler a Bíblia».
Pois sim, na era da vertigem vivemos para o «oxalá» quando se esperaria a capacidade de viver para o «hoje», o «já». Lamentamos, arrastamo-nos.
A vertigem é provavelmente virtual, muito pouco real. Ou talvez nos tenhamos convertido em virtuais e já não nos lembremos que nada é para amanhã. É hoje, aqui e agora, nas circunstâncias concretas da vida que o encontro se dá. Sim, o encontro. Com que volúpia vivemos o adiamento do encontro! Julgamos necessário criar condições ideais de aconchego, e ele dá-se na valeta dos caminhos. Julgamos necessário convocar toda a imprensa, e ele dá-se no anonimato. Julgamos necessário esperar pelo descanso merecido, e ele acontece quando as mãos estão atadas às redes (e também no fim de uma campanha fracassada...). Julgamos necessário cursar todos os conceitos, e ele dá-se no pré-conceito! Julgamos, estruturamos, adiamos. E afinal é onde me encontro, e como me encontro, que Deus se quer encontrar comigo.

Bíblia
Ana Maria Alves nasceu no dia 4 de Julho de 1902, em Pico de Regalados, Vila Verde. Nasceu na Casa onde mora. Tem cinco filhos, dezasseis netos e vinte e nove bisnetos. Não fora a descendência e a rotina da sua vida pouco teria mudado: trabalho e fé em Deus.
Agora tem mais tempo, e já que o tem emprega-o no que sempre gostou: ler! Acabou de ler as memórias da Irmã Lúcia (sem recurso a lentes!) e não passa dia que não leia a Bíblia! Custa-lhe, isso sim, ler letra miudinha como a das Cartas de S. Paulo, mas não lhe custa nada ler o Evangelho de S. Marcos.
Não creio que exista receita para a longevidade. Mas viver cem anos empapado em Palavra de Deus deve ser caso raro. Ao nível da fé costumamos chamar pão à Palavra. Não me admiraria que tal ementa favorecesse o optimismo e o gosto de viver de Dª Ana Maria Alves. Quanto caberia aprender dela!

Todo
Há homens que nos marcam. Às vezes nem sabemos por quê. Mas o certo é que nos marcam. O dr. Raimundo C. Meireles marcou-me. Não sei porquê mas marcou-me. Penso que foi a sua simplicidade e o facto de ser velho e lúcido. Após 42 anos de trabalho académico jubilou-se em 1999; brevemente celebrará o seu jubileu sacerdotal.
Recentemente um jornal entrevistou-o e perguntou-lhe que diria às gerações mais novas que as iluminasse na complexidade da vida actual. A resposta não podia ser mais inesperadamente iluminadora: «contradigo-te para que possuas a totalidade» (S. Agostinho! Nem mais. O todo não a parte é o que nos sacia. Não apenas o acelarador mas também o travão. Não apenas a tradição mas também o progresso. Não apenas a inovação mas também a conservação. Não apenas a velocidade mas também a contemplação. Oferecer a outra parte a quem só se abre à contrária. Oferecer a totalidade a quem se confina a uma fracção. Ó que programa mais exigente! Mais exigente para o mestre que para o discípulo. Não basta contradizer, é necessário oferecer a parte em falta oferecendo a visão global que promove o progresso de que necessitamos.

Filhos
Li uma notícia curiosa num daqueles rodapés que os telejornais inventaram como se fossem talhos a debitar os produtos à disposição do cliente. O recurso é curioso, passa informação menor sem implicações de maior. Num destes dias li que o governo passara a promover o aumento do número de filhos por casal. Não garanto que o texto fosse este, mas a mensagem era. Fiquei perplexo e duvidoso, mas a mensagem passou de novo. Não havia dúvida. Não garanto a fundamentação que possa ter, não li nem ouvi mais nada sobre o assunto.
Como não vão longe os tempos em que o ideal era ter um ou dois filhos! Só um ou dois! Quem não se lembra do esforço que se fez em promover o aumento da qualidade de vida e educação dos filhos (e para tal se propunha a diminuição dos mesmos...)? Então, como é? Já é necessário inverter o discurso? Bastará apenas apostar num filho? Porquê agora a necessidade de aumentar a natalidade? Porque é que em tão pouco tempo variam tanto as opiniões e a legislação e em assuntos tão importantes?
Mais uma vez o discurso da Igreja Católica se vê confirmado. O que antes era contestado e ridicularizado por arcaico («não havia televisão», lembram-se?) agora é actual e imperioso. Não se sugere, apoia-se. Não se aconselha-se, sustenta-se com subsídios. Em poucos dias mais um discurso nosso sai reconhecido..., embora apenas numa nota de rodapé!


1’ de sabedoria
Estavam todos os discípulos seriamente envolvidos numa discussão a respeito da dor e do sofrimento humano.
Segundo uns, a causa da dor é o egoísmo; segundo outros é a ilusão; outros ainda afirmavam que se devia à incapacidade de distinguir o real do irreal. Por fim consultaram o Mestre, que disse:
-- Todo o sofrimento que existe vem da incapacidade que as pessoas têm de ficar paradas e a sós consigo mesmas.

 [16 de Julho de 2002]

domingo, 5 de maio de 2013

Notas de Roda-pé


Figo
Os coreanos eram nossos amigos até nos ganharem. Simpatizavam connosco e idolatravam o Figo. Como não sabiam dizer f-i-g-o diziam algo parecido, ou seja, o possível já que não têm o fonema <>. Não sabiam dizer o nome do ídolo, mas gostavam do Figo à mesma. Quando os ouvi tentar dizer o nome de Figo deu-me quase vontade de rir.  Soava estranho.
Como deve soar estranho aos ouvidos dos coreanos o nome António! Como é que dirão António? No passado dia de S. António dei comigo a pensar isso mesmo. Como é que ao rezarem os coreanos dizem António? Quero dizer, como é que ao rezarem a Deus através da intercessão do Santo português lhe vocalizam o nome? (Se é que vocalizar bem interesse para o sucesso da prece!...)
E como soaria aos ouvidos dos coreanos o nome dos seus santos mártires ditos por portugueses? Como diríamos a um coreano os nomes de S. Agostinho Yi Kwang-Hon, S. Madalena Kim Obim, S. Lucia Park Hui-sun, S. Damião Nam, ou S. Damião Nam Myong-hiog? Entender-nos-ia?
E a verdade é que ao longo do ano nós portugueses invocamos os santos mártires coreanos e os católicos coreanos invocam o nosso Santo. Há nisto uma comunhão e um cruzamento de fé e culturas que em tempos só a religião possibilitou e potenciou. E está bem de ver que o fez antes do futebol. Hoje, porém, o veículo desta comunhão cultural já não é mais (pelo menos em grande escala) a religião. As fintas do Figo substituiram o arrojo, audácia e valentia dos missionários. Mudaram os tempos, mudaram os heróis. Só não mudou a necessidade que temos deles e a representatividade que eles significam. Mesmo que não consigamos dizer bem os seus nomes.

Dúvidas
Às terças-feiras costumo ouvir o professor Máximo Ferreira. É um astrónomo. Da última vez perguntaram-lhe em directo como nasceu o universo. Terá sido por intervenção divina ou foi o Big Bang (a última e mais credível explicação científica: a matéria primordial terá explodido num enorme Big Bang que deu origem ao que conhecemos e ao muito que desconhecemos. A explosão foi tal que o universo após milhões de milhões de anos ainda continua em extensão, em crescimento!)? O professor Máximo Ferreira professa a teoria do Big Bang, porque é científica. E porque não precisa nada de Deus. Não me preocupa que Máximo Ferreira não precise de Deus. É livre de explicar o que quiser como quiser. Aliás, apressou-se a dizer que é melhor nem nos preocuparmos com Deus. (Eu sei que o que quer dizer é que Deus não conta nada para explicar a origem do universo...)
Antes de continuarmos é necessário dizer que a ciência não tem todas as certezas e tem muitas dúvidas. (E o professor sabe-o melhor que eu.) E agora cabe perguntar: Tudo bem, professor; o mundo começou com o Big Bang, e quem provocou o Big Bang? E porque é que a teoria científica há-de necessariamente excluir a existência de Deus e a sua responsabilidade (e também desejo, vontade e amor) na origem do universo através do Big Bang? Se foi mesmo pelo Big Bang que tudo começou a começar a quem se deve a criação das condições para tudo pudesse começar a acontecer?
O professor Máximo Ferreira vai continuar com dúvidas.

Mortos
Na Nova Aldeia da Luz os mortos vão à frente. Melhor, chegam à frente! A aldeia da Luz vai ser afogada pela albufeira do Alqueva e como resultado toda a aldeia se deslocará para a Nova Luz. Depois de tudo negociado lá chegará o dia da mudança. Inevitavelmente.
Parece que o que mais custa a mudar são os mortos (aqueles que já não têm nem vontade nem querer...)! Ninguém gosta de perturbar o sono dos mortos, esta é uma crença poderosa. Mas o certo é que as negociações envolveram a mudança do cemitério pelo que também os mortos se mudarão. E serão os primeiros a habitar a nova aldeia! Interessante: mesmo depois de morrermos continuamos a viver e a habitar. Habitamos os sonhos e os corações dos nossos amigos e familiares; habitamos a última herança que nos é permitida: o cemitério. Talvez a morte não seja um fim tão fim assim!
Na Nova Luz os mortos irão à frente como à frente da colheita vai a semente lançada à terra. Serão os mortos os primeiros a habitá-la, serão eles quem primeiro rasgará os caminhos. Só depois chegarão os vivos. É como se não fosse possível habitar algo que ainda o não tivesse sido. E talvez não pudesse ser de outra maneira. Afinal de contas são os mortos quem verdadeiramente vive. E se a morte é a porta de entrada para a vida, então quem ainda não morreu também não vive. E como é que quem não vive poderia ser luz e guia para quem não vive (mesmo que esteja vivo)?

Clix
A Internet é talvez o mais poderoso meio de comunicação. É por isso mesmo um desafio, não uma ameaça. Coloca qualquer pessoa em qualquer lugar que se encontre como companheiro de alguém no lugar mais remoto que imaginar se possa. Claro que também liga pessoas da mesma rua, ou vizinhos do mesmo prédio. É um meio tão interactivo e tão participativo, tão directo e imediato que a Igreja não quer deixar de dizer sobre os telhados (na Internet) aquilo que pensa e vive por baixo deles. Foi nesse sentido que para a celebração do dia mundial das Comunicações Sociais o Papa desafiou os cristãos a estar criativamente presentes na Internet para que ali manifestem os seus pontos de vista, assumam as suas responsabilidades e realizem a obra da Igreja.
A Rede é uma porta para a evangelização! O maior fórum para a proclamação do Evangelho! E o Papa sabe disso.
Para celebrar esse dia as paróquias de Travassô e Pessegueiro do Vouga (Diocese de Aveiro) celebraram missas pela Net! A novidade chamou a atenção e surpreendeu alguns desatentos. Apenas os desatentos.
Dias depois dois jovens casaram-se. Ele era de Vizela, ela da região de Aveiro (mais uma vez!). Conheceram-se pela Net. Namoraram-se ali. Decidiram casar. No dia do casamento eram noivos tão felizes como os noivos normais (não me admiraria que num futuro próximo os normais fossem os que se conhecessem na Rede!). E o portal Clix esteve presente na celebração do casamento, afinal de contas apadrinhara o namoro! Ainda que involuntariamente.
Ora aí está. Não há espaço que escape ao âmbito de acção da Igreja. Porque haveria a Net de ficar de fora? Que ali nasça amor sincero, que ali os jovens possam começar a construir a sua casa sobre a rocha é uma grande e feliz esperança!. É verdade que talvez seja um minúsculo caso e nada representativo. É possível. Talvez seja semente rara, perdida e calcada pelos caminhos da Rede. Talvez. Mas é desejável e necessário que também ali se possam construir histórias de amor com futuro, com frutos.

1’ de sabedoria
Todo o mundo ficou admirado quando ouviram o mestre dizer a seguinte metáfora que é tão moderna como actual: «A vida é como um automóvel».
Todos aguardaram em silêncio esperando uma explicação.
-- Sim, disse por fim o mestre. Sim, um automóvel pode ser usado para levar-nos longe e a grandes alturas.
Novo silêncio...
-- Mas há pessoas que preferem atirar-se para a frente dele deixando-o passar por cima delas. E depois dizem (e há quem diga com elas...) que a culpa é do automóvel.

[19 de Junho de 2002]

sábado, 4 de maio de 2013

Notas de Roda-pé



Auschwitz
Auschwitz é o outro nome do mal. Ou melhor é o mesmo nome. São a mesma coisa. De tal modo o nome remete para o campo onde o mal cultiva o horror que se pode falar de um tempo antes de Auschwitz e um tempo depois de Auschwitz. Foi o maior dos campos de concentração da Alemanha Nazi (na verdade eram três campos de concentração!). Em cinco anos, de 1940 a 1945, ali morreram mais de 2,5 milhões de pessoas! Antes de morrer, porém, eram obrigados a trabalhar intensamente como mão de obra escrava até ao último esgotamento («O trabalho liberta», afirmavam os Nazis!). E os que dele não morriam foram exterminados nos duches em que eram gaseados e depois eliminados nos fornos crematórios. Assim expiaram as culpas de serem diferentes, ou adversários políticos ou simplesmente judeus ou cristãos.
No complexo de extermínio de Auschwitz a dignidade humana morreu às mãos do mal. O desrespeito pela pessoa humana chegou a tal ponto que se negou que valesse algo. Em memória do Holocausto o estado polaco criou em Auschwitz um museu. Quem o visitou diz que, à saída, o silêncio diz: «Nunca mais!».
Há alguns anos o Vaticano sugeriu que naquele lugar em que o mal imperou se fizesse memória dos que ali pereceram. O silêncio e a oração seriam a forma da memória. Uma comunidade de freiras católicas, carmelitas, chegou mesmo a viver e a rezar ali. Mas os judeus de todo o mundo e outras cabeças bem-pensantes levantaram a voz e forçaram a saída das freiras que levaram com elas a cruz de Jesus que se via num pátio. Contudo, diga-se, os judeus não tiveram o monopólio das mortes em Auschwitz...
Um destes dias a imprensa noticiou, num minúsculo quadradinho, que em Auschwitz se construiu um centro comercial que inclui uma discoteca. Contradições, ou talvez não..., pensei. Como não se ergueram vozes (e ainda bem, porque se se erguessem teriam dito que eram católicos saudosistas com sede de retaliação...) quero entender que a morte ignominiosa de tantas pessoas é hoje melhor honrada com o riso, o divertimento e o consumo que com o silêncio e a oração! O futuro julgará a insensatez!

Café quente
Sábado à noite. Um sábado como outro qualquer. No tabuleiro da ponte 25 de Abril ficou parado um ligeiro de mercadorias. Pouco depois informam o 112 que o condutor se apeara e ameaçava suicidar-se. A noite está fria e ele está ali há muito tempo, desiludido de si e dos outros... Cortado o trânsito sobre a ponte acorrem a PSP, GNR, Polícia Marítima e Bombeiros. A primeira leitura confirma que a tragédia está iminente. Arrojado um jovem bombeiro adianta-se sobre o abismo e pela noite dentro ao encontro do suicida. E oferece um pouco de conversa e um café quente. O suicida aceita, e depois de dois dedos de conversa e o café quente desiste dos seus nefastos intentos.
Sobre o gelado abismo encontraram-se duas pessoas, um desesperado e um salvador. Era noite. Um ofereceu uma ponte de regresso. Era uma ponte cheia de calor. O outro precisava tão só que lhe aquecessem as desilusões da vida. E regressou pela ponte que lhe estenderam. Enfim, tanto frio e tantas vidas que se perdem porque não há calor bastante que dilate as pontes e possibilite encontros salvadores como este!

Hino
Passados cinco séculos da chegada dos primeiros missionários portugueses Timor tornou-se independente. É o oitavo estado de língua portuguesa e o primeiro estado independente a nascer neste século.
Não assisti a toda a cerimónia da independência e transferência de poderes, mas o que vi comoveu-me. Tinha curiosidade em confirmar se o presidente Xanana Gusmão cantaria ou não o hino do novo país, o país de que é presidente. Porém, não me foi possível tal confirmação. Compreendo que Xanana se sinta desajustado na tarefa e no lugar para que foi eleito. Compreendo e aceito que seja mais fácil pintar para a história o quadro de herói que realmente é. Já não compreendo bem que um presidente não cante o hino do seu país. Terá cantado, não terá cantado? Não sei. Consta que o hino de Timor Lorosae contém referências ao colonialismo de Portugal. Talvez isso desagrade a Xanana; e talvez desagrade pelo muito que Timor ainda precisa de Portugal.
À hora em que escrevo a selecção ainda não jogou com os EUA. Ouço, entretanto, dizer que Timor está a fazer tudo para arranjar um satélite que faça chegar ali as emoções do jogo. É preocupação pelos portugueses que lá vivem, mas não será só por eles.
Quando se falava da lesão de Figo este terá dito que não queria que ela se tornasse questão de estado. Claro que queria falar de Portugal. Mas agora já não tenho bem a certeza. Ou melhor, penso que também Timor puxa por Figo e pelos outros dez da selecção lusa. É claro que Figo também não quererá desiludir os adeptos timorenses. Quer dizer, o que a História separa une a emoção do futebol!

Crianças
No passado dia 1, nos diferentes jornais da noite vou vendo formas diversas de festejar o Dia Mundial da Criança. Nunca são demasiados os festejos, diga-se. Salto de uns para outros, dum canal para o outro e outro. E além dos festejos também deparo com denúncias, entre elas a de que há muito trabalho infantil em Portugal. E há.
A seguir ao noticiário seguem as novelas. Como não as sigo não arrisco um número mas sei que são muitas as crianças nelas intervenientes. Durante um telejornal uma criança-a-fazer-que-era-jornalista entrevista uma criança-actriz. Esta revela com algum embaraço que os últimos trabalhos em televisão a obrigaram a chumbar o ano. Pois, penso eu, e nem admira...
No écran segue a novela e nela vão desfiando-se presenças várias de diferentes crianças. E eu que não sou mais inteligente que ninguém pergunto-me: E quem se lembra (e protege) das crianças intervenientes em actividades como filmes, telenovelas, desporto, moda? Não é de certeza errado afirmar que nestas actividades, pretensamente lúdicas, as crianças são exploradas como, de resto, o são noutras actividades cujas denúncias são frequentes. Mas porque o serão numas situações e noutras não?

1’ de sabedoria
-- Qual é a acção mais nobre que uma pessoa pode realizar?
O Mestre respondeu: -- Parar e dedicar tempo à meditação.
O Mestre, porém, raramente era visto sentado a meditar. Vivia continuamente envolvido pelos trabalhos da casa e do campo. Atendia as pessoas, escrevia livros e, acima de tudo, ainda arranjava tempo para fazer a contabilidade do mosteiro. Ao testemunhar a azáfama alguém lhe perguntou:
--Parar e meditar?, mas o senhor passa o tempo a trabalhar!
-- Ora, respondeu o mestre, quem disse que alguém, enquanto trabalha, precisa parar de meditar?

 [3 de Junho de 2002]