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terça-feira, 30 de abril de 2013

Notas de Roda-pé



Letreiro
Na estrada de Manhuncelos para o Castelinho há uma tabuleta. É uma tábua envelhecida pelos invernos a que ficou cravada num pinheiro. A tábua está escrita a letras azuis. E diz assim: «Deite o lixo no que é seu ou comam-no». Claro que a frase carece de concordância mas cumpre o que se lhe pede: faz passar a mensagem.
Como o local é semi-desértico proporciona-se para os atentados ecológicos (chamemos-lhe assim...). Passa-se por ali, e como ninguém vê, deixa-se ficar o que quer que seja.
Tal como estamos não estamos bem. O lixo que não serve ou que não se quer reciclar despeja-se num quintal ou num terreno bem longe de nós. Quem leva com ele em cima é que não fica bem, daí o tom ameaçador da mensagem: se não sabe destruir o seu lixo coma-o!
Infelizmente não posso estar mais de acordo. Reconheço que nem todos se podem responsabilizar pelo ‘desaparecimento’ do seu lixo, mas todos podemos ser mais responsáveis com o lixo. E como ninguém se atreve a comer o seu lixo também ninguém devia atrever-se a dá-lo a comer a outros, que amor com amor se paga!

Lixo
De algo parecido me lembrei eu quando vi as notícias da poluição ali para os lados de Várzea de Ovelha. A notícia veio publicada duas vezes. Mesmo assim (e apesar de terem sido publicadas com pouco tempo de intervalo) as denúncias parecem-me poucas.
Eu já lá tinha passado e sou testemunha. Se não de tudo do muito que as palavras e as fotos documentam.
Não sou publicitário. Mas passando a ironia sugeriria das notícias de Várzea algo parecido à receita da tabuleta de Manhuncelos. Seria assim: «Você deseja, você merece. E nós pensamos em si. Venha passear pelas nossas encostas, apreciar as nossas paisagens! Não pense, disfrute!
«Oferecemos destroços de carros e pneus, frigoríficos, televisões, latas de tinta e roupa velha, tralha variada e restos de materiais de construção. E brindes-surpresa.
«Por vezes o cenário é polvilhado de vísceras de animais (e se for o seu dia de sorte até poderá assistir ao espectáculo de vários e diferentes anatomias de animais mortos!).
«Como bónus extra programa e sem onerar o preço poderá ainda contemplar em acção a fauna local: insectos, ratos, ratazanas, cobras...
«Ao terminar o espectáculo oferecemos um copo de água recolhida no local.»
Eu sei que é exagero. E daí talvez até nem seja. A verdade é que se nós somos os agredidos pela paisagem violada alguém há que, mais abaixo de nós, bebe da água que conspurcamos.

Traição
Falemos de escândalo. Talvez até exista uma razão obscura, ou talvez até seja simples coincidência. Mas quase não há dia em que não se relatem escândalos com padres. O modelo do escândalo português passa sobretudo pela incompatibilidade de diálogo entre o sacerdote e os fiéis; o escândalo anglosaxónico é mais violento e repugnante, a pedofilia.
Àcerca do segundo existem algumas reflexões que se podem construir. A primeira é sobre a eleição. Jesus quando escolheu os seus primeiros apóstolos rezou muito e foi em diálogo com o Pai que os elegeu. Depois ensinou-os, falou-lhes intimamente, deu-lhes poder, enviou-os a anunciar e curar, lavou-lhes os pés, matou-lhes a fome. E no fim de tudo foi traído por um dos seus. Traído com um beijo...
Contemplando a morte de Jesus vemos que, nada menos nada mais, foi um eleito quem O atraiçoou! Contudo, a Igreja não se centrou na traição, mas na força transformante da vida da Comunidade Apostólica. Infelizmente o escândalo não é algo novo para a Igreja!

Lupa
Segunda reflexão. A Igreja Católica dos EUA reconhece a gravíssima gravidade das acusações de abuso sexual de menores. Mas também reconhece (como o afirmam testemunhos exteriores à Igreja) que as acusações são exageradas e exageradamente empoladas o que configura a ideia de perseguição. E nem sequer se chama a atenção para a imensa maioria de sacerdotes que permanecem fiéis e serenos, de conduta exemplar ao serviço dos fiéis.
É verdade que existe pedofilia na Igreja dos EUA. São cerca de 30 casos nos últimos vinte anos. Não escusa, mas são uma pequena porção comparados com os mais de cem mil (103.660) acontecidos na sociedade estadounidense só em 1998! Não é a Igreja que está doente, é toda a sociedade norteamericana! O crime é sem desculpa, mas de que lupa se servem os meios de comunicação para transtrocar os dados, para hiperinflacionar uns valores e encobrir outros? Melhor seria não ter de se falar do tema — por não existir assunto, claro. —, mas já que se fala deve dizer-se que 30 casos de pedofilia ou cem mil são sempre crime independentemente de quem os cometa.

Validade
Terceira reflexão. Quer seja o Papa João Paulo II a celebrar a eucaristia quer seja um sacerdote condenado à morte a eucaristia é sempre eucaristia porque o actor principal é Cristo que nos dá o seu Corpo e Sangue. Na verdade, nunca a eucaristia depende da santidade dos sacerdotes. Eles, como qualquer humano caiem em pecado. Isso o sabia já quem os escolheu... e, contudo, escolheu-os.
Porém, tal não invalida nem desculpa a má conduta e escândalo de alguns sacerdotes.  Nos tempos difíceis que se avizinham mais que nunca se exige a opção pela santidade. Sim, esta deveria ser a opção radical e permanente dos cristãos, ordenados ou não.

Napoleão
Conta-se que quando Napoleão e os seus exércitos engoliam a Europa o Imperador declarou a um cardeal: «-- Vou destruir a vossa Igreja!». O cardeal respondeu: «-- Não, não poderá!». Napoleão repetiu: «--Vou destruir a vossa Igreja!». Confiante o cardeal respondeu: «-- Não conseguirá. Nem sequer, alguma vez, nós o conseguimos fazer»!
Uma coisa é verdade: é cada vez mais difícil ser-se padre. Mas Jesus continua connosco e connosco quer reescrever os novos Actos dos Apóstolos do século XXI! Que resposta alcançará?

1’ de sabedoria
-- De que serve ter um mestre?, perguntou um visitante a um dos discípulos.
-- Para ferver a água você precisa de um caldeirão que seja intermediário entre a água e o fogo..., respondeu o discípulo.

[23 de Abril de 2002]

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Notas de Roda-pé



Letreiro
Na estrada de Manhuncelos para o Castelinho há uma tabuleta. É uma tábua envelhecida pelos invernos a que ficou cravada num pinheiro. A tábua está escrita a letras azuis. E diz assim: «Deite o lixo no que é seu ou comam-no». Claro que a frase carece de concordância mas cumpre o que se lhe pede: faz passar a mensagem.
Como o local é semi-desértico proporciona-se para os atentados ecológicos (chamemos-lhe assim...). Passa-se por ali, e como ninguém vê, deixa-se ficar o que quer que seja.
Tal como estamos não estamos bem. O lixo que não serve ou que não se quer reciclar despeja-se num quintal ou num terreno bem longe de nós. Quem leva com ele em cima é que não fica bem, daí o tom ameaçador da mensagem: se não sabe destruir o seu lixo coma-o!
Infelizmente não posso estar mais de acordo. Reconheço que nem todos se podem responsabilizar pelo ‘desaparecimento’ do seu lixo, mas todos podemos ser mais responsáveis com o lixo. E como ninguém se atreve a comer o seu lixo também ninguém devia atrever-se a dá-lo a comer a outros, que amor com amor se paga!

Lixo
De algo parecido me lembrei eu quando vi as notícias da poluição ali para os lados de Várzea de Ovelha. A notícia veio publicada duas vezes. Mesmo assim (e apesar de terem sido publicadas com pouco tempo de intervalo) as denúncias parecem-me poucas.
Eu já lá tinha passado e sou testemunha. Se não de tudo do muito que as palavras e as fotos documentam.
Não sou publicitário. Mas passando a ironia sugeriria das notícias de Várzea algo parecido à receita da tabuleta de Manhuncelos. Seria assim: «Você deseja, você merece. E nós pensamos em si. Venha passear pelas nossas encostas, apreciar as nossas paisagens! Não pense, disfrute!
«Oferecemos destroços de carros e pneus, frigoríficos, televisões, latas de tinta e roupa velha, tralha variada e restos de materiais de construção. E brindes-surpresa.
«Por vezes o cenário é polvilhado de vísceras de animais (e se for o seu dia de sorte até poderá assistir ao espectáculo de vários e diferentes anatomias de animais mortos!).
«Como bónus extra programa e sem onerar o preço poderá ainda contemplar em acção a fauna local: insectos, ratos, ratazanas, cobras...
«Ao terminar o espectáculo oferecemos um copo de água recolhida no local.»
Eu sei que é exagero. E daí talvez até nem seja. A verdade é que se nós somos os agredidos pela paisagem violada alguém há que, mais abaixo de nós, bebe da água que conspurcamos.

Traição
Falemos de escândalo. Talvez até exista uma razão obscura, ou talvez até seja simples coincidência. Mas quase não há dia em que não se relatem escândalos com padres. O modelo do escândalo português passa sobretudo pela incompatibilidade de diálogo entre o sacerdote e os fiéis; o escândalo anglosaxónico é mais violento e repugnante, a pedofilia.
Àcerca do segundo existem algumas reflexões que se podem construir. A primeira é sobre a eleição. Jesus quando escolheu os seus primeiros apóstolos rezou muito e foi em diálogo com o Pai que os elegeu. Depois ensinou-os, falou-lhes intimamente, deu-lhes poder, enviou-os a anunciar e curar, lavou-lhes os pés, matou-lhes a fome. E no fim de tudo foi traído por um dos seus. Traído com um beijo...
Contemplando a morte de Jesus vemos que, nada menos nada mais, foi um eleito quem O atraiçoou! Contudo, a Igreja não se centrou na traição, mas na força transformante da vida da Comunidade Apostólica. Infelizmente o escândalo não é algo novo para a Igreja!

Lupa
Segunda reflexão. A Igreja Católica dos EUA reconhece a gravíssima gravidade das acusações de abuso sexual de menores. Mas também reconhece (como o afirmam testemunhos exteriores à Igreja) que as acusações são exageradas e exageradamente empoladas o que configura a ideia de perseguição. E nem sequer se chama a atenção para a imensa maioria de sacerdotes que permanecem fiéis e serenos, de conduta exemplar ao serviço dos fiéis.
É verdade que existe pedofilia na Igreja dos EUA. São cerca de 30 casos nos últimos vinte anos. Não escusa, mas são uma pequena porção comparados com os mais de cem mil (103.660) acontecidos na sociedade estadounidense só em 1998! Não é a Igreja que está doente, é toda a sociedade norteamericana! O crime é sem desculpa, mas de que lupa se servem os meios de comunicação para transtrocar os dados, para hiperinflacionar uns valores e encobrir outros? Melhor seria não ter de se falar do tema — por não existir assunto, claro. —, mas já que se fala deve dizer-se que 30 casos de pedofilia ou cem mil são sempre crime independentemente de quem os cometa.

Validade
Terceira reflexão. Quer seja o Papa João Paulo II a celebrar a eucaristia quer seja um sacerdote condenado à morte a eucaristia é sempre eucaristia porque o actor principal é Cristo que nos dá o seu Corpo e Sangue. Na verdade, nunca a eucaristia depende da santidade dos sacerdotes. Eles, como qualquer humano caiem em pecado. Isso o sabia já quem os escolheu... e, contudo, escolheu-os.
Porém, tal não invalida nem desculpa a má conduta e escândalo de alguns sacerdotes.  Nos tempos difíceis que se avizinham mais que nunca se exige a opção pela santidade. Sim, esta deveria ser a opção radical e permanente dos cristãos, ordenados ou não.

Napoleão
Conta-se que quando Napoleão e os seus exércitos engoliam a Europa o Imperador declarou a um cardeal: «-- Vou destruir a vossa Igreja!». O cardeal respondeu: «-- Não, não poderá!». Napoleão repetiu: «--Vou destruir a vossa Igreja!». Confiante o cardeal respondeu: «-- Não conseguirá. Nem sequer, alguma vez, nós o conseguimos fazer»!
Uma coisa é verdade: é cada vez mais difícil ser-se padre. Mas Jesus continua connosco e connosco quer reescrever os novos Actos dos Apóstolos do século XXI! Que resposta alcançará?

1’ de sabedoria
-- De que serve ter um mestre?, perguntou um visitante a um dos discípulos.
-- Para ferver a água você precisa de um caldeirão que seja intermediário entre a água e o fogo..., respondeu o discípulo.

[23 de Abril de 2002]

terça-feira, 23 de abril de 2013

Notas de Roda-pé



Ivan­
Ivan é pedreiro. Ivan é ucraniano. O pedreiro e o ucraniano são o mesmo Ivan Babchuk. Como muitos dos homens do seu país aventurou-se, largou velas e zarpou. A aventura trouxe-o até nós. Algures em Lamas, lá para os lados de Satão, Viseu, é o seu porto de acolhimento.
Ivan, o pedreiro ucraniano, é também sacerdote. Só que ninguém sabia. Agora que toda a gente sabe o pedreiro continua a ser sacerdote e a exercer como tal. E continua a ser pedreiro. À semana trabalha como pedreiro, ao domingo reza a eucaristia na igreja local. O padre Ivan não é sacerdote católico, mas o abraço do Pároco local foi inevitável. Aceitou as portas abertas e entrou. Celebra missa para os compatriotas. Diz quem nunca viu outras missas que a missa do padre Ivan, sacerdote cristão ortodoxo, é diferente.
Nas missas do padre Ivan católicos e ortodoxos dão-se as mãos, abraçam-se no mesmo abraço, rezam ao mesmo Deus, comem o mesmo Jesus, honram o mesmo Cristo. Isto é, celebram no domingo o que vivem à semana. Se à semana dão as mãos para amaciar a pedra porque não haveriam de, ao domingo, celebrar o Senhor de todas as coisas?
O contacto com o diferente é por vezes trágico. Aqui, pelo menos, por enquanto, mãos diferentes — à semana ou ao domingo — dão-se, comungam-se, constroem fraternidade como quem, pedra a pedra, vai erguendo em sua vida uma casa para Deus!

Belém
Foi em Belém que Jesus nasceu. Sabemos que foi num buraco, rodeado por animais e pelo espantado de Maria e José. O buraco onde Jesus nasceu é hoje uma basílica, um lugar sagrado para os cristãos. Este lugar sagrado tem um nome: Basílica da Natividade.
Há dois anos, na praça que envolve a basílica — a Praça da Manjedoira — o papa João Paulo II celebrou missa e proclamou que «a mensagem de Belém é a boa notícia de reconciliação entre os homens, de paz a todos os níveis de relações entre pessoas e as nações».
Passados dois anos não são palavras de paz e reconciliação que se ouvem na Praça da Manjedoira. Ali ouvem-se tiros de metralhadora e os potentes motores dos tanques israelitas. Lá dentro, no templo cristão, estão duzentos refugiados árabes (há quem lhes chame «bandidos e terroristas palestinos»); também lá estão uma comunidade de frades franciscanos. Cá fora, à volta, em permanente vigilância estão os tanques e soldados judaicos. Um templo cristão é albergue de árabes cercados por judeus!
As religiões são o melhor caminho para a paz, mas no local onde nasceu o Príncipe da paz elas estão em guerra. Naquele local sagrado os anjos proclamaram a paz aos homens de boa vontade, mas ali já não se respira nem paz, nem cânticos de anjos e as corajosas vozes dos frades andam assustadas.

Tiros
As notícias não são todas certas. As certas dizem que recentemente os tanques bombardearam uma porta da Basílica e provocaram um incêndio. O incêndio chegou a assustar, a porta foi arrebentada e o templo violado. Outro tanque disparou contra a Virgem da fachada e estropiou o rosto da Virgem e mutilou-lhe um braço. Alguém, a propósito escrevia: «A Virgem perdeu um braço e o seu belo rosto está mutilado. Tornou-se uma das centenas de mulheres palestinianas abatidas pelos judeus no decurso do presente conflito». Não é exagero nenhum.
Outras notícias são mais incertas. Entre os refugiados (alguns armados) já há mortos. Ao que parece um quereria render-se, mas os soldados judeus jogaram pelo seguro: um palestiniano morto é de facto um palestiniano rendido, e mataram-no. Mas há notícias de mais mortos abatidos nos claustros da igreja. Decididamente as armas nunca falam de paz, nem podem nunca honrar quem nasceu para a semear em todos os corações independentemente da cor.

Armas
Angola parece ser o reverso de Israel e Palestina. Parece que vai vestir o fato da paz. Um alto dirigente da UNITA questionado sobre o assunto disse que a paz com o governo angolano tem um preço muito alto (afinal combateram-se durante pelo menos vinte anos!). Mas esse preço alto é sempre mais baixo que o preço da guerra!
Não ouvi palavras tão sábias do outro lado.
E que vão fazer às armas, perguntaram ao mesmo dirigente. E ele respondeu: «armas? armas para quê? Quem precisa de armas?». Ninguém precisa claro, mas eu sugiro que se faça com as armas o que o profeta Isaías sonhou: sonhou que as armas eram transformadas em relhas de arado, enchadas e pás, em ferramentas que matem a fome e tragam o progresso.

Bölöni
O senhor Lazlo Bölöni é treinador do Sporting e provavelmente será campeão. Simão Saborosa é jogador do Benfica que este ano já não conseguirá ser campeão. Simão é provavelmente o melhor jogador do actual Benfica. Ultimamente Sporting e Benfica anda de candeias às avessas, mas isso não são contas do senhor Bölöni e, vai daí, visitou o azarado Simão que tinha sido operado a uma grave lesão. O homem que está a ganhar visitou o que está a perder. Há muita gente que não compreenderá este estreitar de mãos.
Em metáfora de jornalismo desportivo poderia dizer-se que o leão foi ao ninho da águia visitar uma das suas estrelas. Em tempos de tanta inflamação é bonito saber-se deste gesto de solidariedade entre dois adversários, não necessariamente inimigos. O futebol também pode ser uma escola de virtudes, e pelo reflexo amplificado que tem na sociedade deve ser, no mínimo, espaço de sã (con)vivência!

Feliz
O professor Moniz Pereira é um senhor. Levou uma vida a escolher e a fazer campeões de atletismo. Parece que escreve e faz canções e também as canta. É uma vida cheia que vale uma entrevista. Ou muitas.
Numa entrevista perguntaram-lhe se era feliz. Claro que sim, respondeu. E acrescentou: «Os que se dizem infelizes não sabem viver». Com a idade que tem; com a experiência que tem; e com os frutos que tem a carimbar-lhe a idade e a experiência não serei eu a contradizê-lo.

1’ de sabedoria
-- Eu desejo aprender, pode ensinar-me?, perguntou alguém ao Mestre.
-- Não creio, respondeu o Mestre, que você saiba aprender.
-- Então, ensine-me!
-- E você pode aprender a deixar-me ensinar?
Ao perceber que os seus discípulos estranhavam as suas palavras o Mestre disse:
-- Todo o ensino só começa a acontecer quando se começa a aprender. Mas a aprendizagem só acontece quando se ensina alguma coisa a si mesmo.

[9 de Abril de 2002]

domingo, 21 de abril de 2013

Notas de Roda-pé




Moscovo
O Papa foi a Moscovo. Mas não chegou a sair do Vaticano onde estava reunido com oito mil jovens universitários. São as maravilhas da sociedade da informação. Quando o seu rosto e a sua voz apareceram no écran da catedral católica de Moscovo os mil jovens moscovitas acolheram-no com uma salva de palmas. De cinco minutos, nada menos. Nesta visita virtual o Papa falou. Falou que:
«É necessário construir uma nova Europa.
«Só os homens e mulheres novos poderão renovar a história.
«É necessário promover o diálogo entre a fé e a cultura nas universidades para que a levedura do Evangelho estimule e sustente espiritual e moralmente a investigação.»
Antes do Papa falara um académico. Anatoly Fiodorovic Jotov, professor de Filosofia, participara no Vaticano no Jubileu dos professores Universitários. Então compreendeu «o quão perigoso é que a ciência não tenha ética, pois produz monstros!», e por isso «pediu à Igreja para ser baptizado». Depois do Papa falou outro académico, Yuri Antonovich Simonov, professor de Física teórica e director do Laboratório de Física nuclear do Instituto ITEP de Moscovo. E conclui: «o laboratório e o oratório complementam-se!». Felizmente há técnica e ciência. E ali há também fé. Felizmente.

Cherne
Quem ainda puder leia Joaquim Fidalgo, Público, dia 20, página 14; e Ana Sá Lopes, Público, dia 21, página 6. Leia e reconhecerá ali os sinais dos tempos para os de tempos e olhares curtos.
E a contrabalançar fique-nos uma frase da Narração da Paixão segundo S. Mateus (26, 56): «Então todos os discípulos O abandonaram e fugiram». Pudera! Estava preso... Não mostrara ser o Messias desejado... Já não se lembravam dos milagres... Frustrara todas as expectativas.... Não tinha nada para dar. É isso, não tinha nada para dar. (Aparentemente, claro...).

Semente
Isaías Duarte era arcebispo de Cali, Colômbia. Era, digo bem. Depois de presidir a um casamento na igreja do Bom Pastor retirou-se para a sacristia, depôs os paramentos e à saída ainda sorriu para os 140 católicos com quem celebrara em fé o amor. Ao entrar no carro aproximaram-se dele dois jovens pistoleiros que o atingiram com seis balas. E mataram-no. Não foi nada a que não se esteja habituado por aqueles lados...
D. Isaías prometera revelar a influência do dinheiro da droga na política colombiana. Ao avisar o que iria revelar o bispo sentenciou-se. Mas quem o matou não sabe (ou não quer saber) o seguinte: Não sabem ou não querem saber que era verdade o que o bispo tinha para dizer. E a prova é que assinaram as palavras do bispo com balas e com sangue. Se fosse mentira por que o matariam?... 2. Não sabem ou não querem saber que o sangue dos mártires é semente de novos cristãos (foi o teólogo Tertuliano quem o disse, e a história prova-o). Por isso aquilo que o bispo não disse (mas que outros deixaram que fossem balas e sangue a dizê-lo) di-lo-ão as sementes do seu martírio.

Notícias
No último Sporting-Salgueiros, quase no final do jogo, liguei o rádio. Para saber o resultado e ter som-de-fundo enquanto trabalhava. Faltava pouco para terminar. Numa pausa do jogo ouço este comentário do relatador «— ...E o senhor que estava a ler o jornal já está quase a terminar! Já vai nas últimas páginas! (E em jeito de desabafo e desaprovação) Vir ao futebol para ler o jornal...».
Pois é, pá... Nem sei como foi o jogo. Mas vou ajudar-te a entender o homem. Certamente não era espião (ou então disfarçava bem); talvez fosse portista; talvez nem gostasse de futebol; ler é melhor que ver futebol; era o Nelson do Masterplan; era...
Pois é. O pior é que assim como aquele respeitável cidadão insultou o futebol, assim outros e outras respeitáveis insultam o Estado, a Pátria, o Outro, a Igreja, a Moral. Valha-nos quem nestes campos ainda se indigna com a distracção e desleixo de tantos.

Pedras
Gosto muito quando as bocas cantam a fé. Gosto de entrar em procissão e de ouvir (e cantar com quem canta) aquele cântico que todos sabem: «Nós somos as pedras vivas do templo do Senhor»...
No dia 10 de Março eu não estive na bênção da igreja paroquial de S. Ovídio, em Vila Nova de Gaia. Mas deve ter sido esse o cântico de entrada que aquela comunidade cantou. O templo ainda não está concluído, mas também nenhum de nós o está. E assim como o templo já serve para abrigar a glória de Deus e a comunidade reunida, assim, nós, as pedras vivas, vamos aperfeiçoando o altar do coração onde vive e celebra a Santíssima Trindade.
A igreja paroquial de S. Ovídio ainda não está concluída. Fique-nos ainda o testemunho do Pároco àcerca da colaboração das pedras vivas de S. Ovídeo: «ao longo de 40 anos muitos colaboraram. Lembro um operário que ofereceu um mês de trabalho (mas a Comissão não aceitou tão grande sacrifício); lembro um novo casal que não comprou um novo móvel para sua casa para que a Casa de Deus fosse mais bela. Lembro muitas migalhas, muitas areiazinhas...».
É assim mesmo, nós somos pedras vivas!

Páscoa
Há poetas clarividentes. Um poeta declarou estarmos ameaçados de vida. E estamos. São os frutos da Páscoa de Jesus. Morreu para viver. Morreu para que vivêssemos. Morreu para nos ameaçar com a vida. Ó feliz culpa! Páscoa feliz!


1’ de sabedoria
-- Ajude-nos, Mestre, a encontrar a Deus!
-- Nisso ninguém os pode ajudar.
-- Por que não?
-- Pela mesma razão pela qual ninguém pode ajudar peixe algum a encontrar  o oceano.

[24 de Março de 2002]

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Notas de Roda-pé



Solnado
O senhor Raul Solnado cumpriu cinquenta anos de vida artística. Houve o foguetório do costume, mas talvez não tanto como mereceria. Registo apenas um breve declaração sua «em cinquenta anos aprendi a dizer “não” e foi isso que me fez chegar até aqui». Também o ouvi dizer não ser rico, que escolhera o outro caminho, e que era isso que o fizera chegar às bodas de ouro com uma imagem inatacável. Lá terá razão. Se o diz é porque tem razão.
Não posso deixar de destacar a humildade da afirmação: aprendi a dizer “não”, e em consequência sou pobre... Mas está no coração de todos nós, concluo eu!
Por estes dias lia algo parecido. Era uma reflexão sobre o saber dizer “não” quando deve dizer-se não, ou dizer “sim” quando é de se dizer. Sobretudo, espelhando-me na reflexão de R. Solnado, penso ser nosso dever reflectir (e dizê-lo urgentemente aos nossos jovens) sobre o drama da nossa sociedade que nos prepara para a aquisição e não se atreve a falar e a propor o despojo; que nos amestra para a acumulação e a posse de coisas e mais coisas (e de pessoas e ideias), mas nunca nos ensina o desprendimento! É verdadeiramente espantosa a simplicidade da resposta à pergunta por que não temos mais Solnados em todas as áreas da nossa vida colectiva!...

Martínez
Ainda é jovem e tem duas filhas que vivem longe. Actualmente vive em Espanha, mas já residiu nos EUA «onde tinha tudo»... É calmo, tranquilo, comedido. Durante cinco anos e meio esteve preso, três dos quais no «Corredor da morte» à espera duma injecção letal que nunca chegou porque se descobriu o erro judicial e foi ilibado. Na prisão estudou Ciência Política e Teologia.
Como é que, na prisão, se vive e se resiste à espera da morte? Joaquín José Martínez resistiu confiando. Sempre confiou e confessou corajosamente a sua inocência. Confiou em si, e sobretudo em Deus. Veja-se:
«Deus é tudo para mim. Ele é a vida. É fácil de dizer isso, mas a verdade é mesmo essa. Se não acreditasse em Deus, se não confiasse que Ele me ajudaria, que sempre estaria a meu lado eu teria ficado louco»!
«Com tantas horas para pensar como as que tive alcancei um contacto pleno comigo mesmo e com Deus».
«Acreditar é a única maneira que existe para se continuar a viver quando a linha do horizonte é a cela da frente e se tem data marcada para morrer».
«Hoje estou vivo [na terceira parte da minha vida] e é apenas isso que conta»!
Hoje vive em Espanha. Livre. Vive a terceira parte da sua vida com a consciência de que é pequenino, mas vive calmo, sereno, comedido e sem raiva. Porque existe só Um que pode preencher a nossa necessidade de posse.

Divinus
Apareceu aí nos escaparates um disco com «sucessos portugueses». O autor é o grupo Divinus. O disco está no top por uma de duas razões e até talvez pelas duas, e quem sabe, até talvez por outras... A primeira tem a ver com o nome que remete para o além, para o sublime, para o diferente, o inusual e o sagrado. A segunda porque os sucessos são interpretados segundo o modelo do canto gregoriano. Depois, claro, a palavra «sucesso» é em si apelativa, logo também ajuda a subir no top. Dizem os entendidos que os sucessos foram bem escolhidos e bem interpretados. Só que aquilo não é canto gregoriano, é outra coisa.
Mas a coisa resultou.
Estes «sucessos» têm duas virtudes. Uma é a de chamar a atenção para essa grande música que é o canto gregoriano. Outra é que é sempre preferível ouvir interpretações originais do gregoriano, aliás disponíveis nas discotecas, porque, essas sim, revelam toda a espiritualidade e transcendentalidade que vai falhando aos nossos dias. Valerá a pena ouvir os Divinus?, talvez. Mas melhor que a água do cântaro é a da fonte!

Votar
Domingo há eleições. A democracia não é possível sem exercermos a nossa obrigação cívica depondo o nosso voto na urna. Por isso, domingo vá votar. Não votar é votar no partido da abstenção. E a abstenção é a negação da democracia. Exerça o seu direito, cumpra o seu dever. Não nos deixe governados por alguém que não venceu o partido dos que se negam a construir a democracia, a abstenção.

Vitória
Em Nova Iorque onde antes estavam as Torres Gémeas estão agora dois enormes fachos de luz. Excelente ideia. Já muitos haviam referido que a vitória fora derrota. Os EUA não se amedrontaram e ultrapassaram por cima aquele drama enorme.
Mas resistir à tentação da reconstrução das Torres foi uma vitória maior ainda. Nem construir umas torres ainda maiores seria vitória tão grande. Onde uns semearam escuridão outros fizeram renascer luz; onde reinou a morte impera agora a luz. Honraram-se os mortos com dignidade e ilumina-se a memória dos vivos. Olhando aqueles dois enormes fachos de luz todos seremos impelidos a dizer «Nunca mais»! Parece-me uma excelente ideia. Quem poderá agora derrubar a luz? Que aviões ou que armas, que idologias ou fanatismos poderão derrubar a luz? Quem poderá apagar a memória de tal horror?

1’ de sabedoria
O Mestre tinha um discípulo obcecado pela ideia da vida após a morte; um dia disse-lhe o Mestre:
-- Porque vives perdendo o teu tempo pensando no que vem depois da vida?
-- Mas, é impossível não pensar.
-- É claro que é possível não pensar.
-- Mostre-me então, desafiou o discípulo, como se pode viver não pensando no que vem depois da morte?
-- Simplesmente vivendo o céu na terra!
-- E onde está o «céu na terra»?
-- está á sua volta, aqui e agora!

[12 de Março 2012]

domingo, 14 de abril de 2013

Notas de Roda-pé



Montanhas
O ano de 2002 foi consagrado como o ano das Montanhas e do Ecoturismo. É intenção primeira promover o contacto com a natureza. E defendê-la também. Penso que é uma excelente ideia. Uns promoverão, estou certo disso, o contacto com a montanha; outros chamarão a atenção para as agressões de que ela é vítima. Creio que as duas acções são legítimas e necessárias. Pela minha parte devo dizer que da minha janela vêem-se montanhas. Mas as montanhas que vejo já não são as mesmas que eu via antes. Estão a mudar muito as montanhas. Agora rebentam lá bombas e pouco a pouco vão aparecendo feridas. Grandes feridas. É o que vejo. Onde antes via verdura e água transluzindo como prata sob o sol de Inverno hoje vejo restos escuros de pedra. E só podem ser grandes esses restos, por que a distância a que os vejo também é grande...
É a febre do ouro em Marco de Canaveses! Não é bem a do ouro, mas a da pedra. Claro que compreendo que se tenha de trabalhar para “ganhar a vida”. E também compreendo que também aqui deve existir a oportunidade de se ser rico. Mas o que já não compreendo bem é que a nós, cá debaixo, só nos reste a possibilidade de contemplar os restos das entranhas da montanha de Rosém...

Oração
Canta um poeta que quando a terra quis rezar surgiram as montanhas. E tem razão. Só as montanhas sentiriam o apelo de se elevar (e nos elevar) para o alto. São as montanhas como braços que a natureza elevou para louvar o Autor da criação. Digno de todo o louvor é quem criou a criação! E não podendo cantar com hinos nem com trinos a natureza inventou as montanhas que se elevam para Deus. É o seu jeito de louvar, elevando-se...
Sensível à beleza da criação S. João da Cruz canta assim: «Ó bosques e espessuras, / plantados pela mão do meu Amado, / dizei-me se por vós terá passado»... Há na natureza algo da beleza de Deus. E quem passa pela natureza como que passa a caminho dAquele que por ela primeiro passou vestindo-a de formosura, Deus! A natureza é assim espelho da Sua beleza e possibilidade de bem nos caminharmos para Ele. Daí que menos se percebam as agressões de que ela é vítima...

Retiro
O primeiro domingo da Quaresma fala do retiro de Jesus antes da sua vida pública. Foram quarenta dias e quarenta noites de deserto, de solidão! É extraordinário como o retiro está de novo na moda! Novos e velhos não resistem ao apelo e retiram-se do bulício do dia a dia, e às vezes do de fim de semana que não é menor. Os retiros dos velhos não são como os dos novos. Os primeiros são mais certinhos, mais calmos, mais ponderados, mais atentos, mais sintonizados. Os segundos são também interessantes, levantam mais interrogações, explodem em energia, convicções e generosidade. Não prefiro uns ou outros, ambos têm a sua beleza.
Porém, outro tipo de retiros começa a ganhar terreno. São os retiros de silêncio. Durante um fim de semana desligam-se os telemóveis, os televisores e telefonias, a internet e os jornais... Não se fala, ouve-se. Não se comenta, silencia-se. Não se aprende, abre-se o coração.
A Laurinda Alves, na última Xis fala disso. Diz que são retiros que roçam a poesia e que curam! Ajudam a ouvir-nos e a entender-nos; separam o principal do acessório e são de uma força tremenda! Afinal de contas, é nos retiros de silêncio que ela tem encontrado as respostas para os maiores mistérios da vida!

Quaresma
Há quem não goste da Quaresma. Lá têm as suas razões. Acabamos de celebrar o segundo domingo quaresmal, o da Transfiguração. A Trindade Santíssima revelou-se como o Deus fiel que cumpre a sua palavra. Ficamos a saber que o futuro do homem fiel não é nem a ruína nem a cruz, mas a glória. Que não estamos ameaçados de morte, mas de transfiguração. E embora isto não elimine a sombra e a tentação, dá, contudo, sentido ao nosso caminho ainda que caminhemos (quase só) de noite.

Domitília
É portuguesa, de Faro. Tem 46 anos, é solteira e vive há 33 anos nos EUA. Primeiro lavou a roupa de emigrantes e deu explicações de matemática, e à noite estudou com os pés metidos numa bacia de água fria porque era preciso tirar vintes. Hoje gere fortunas, vive num apartamento pequeno e as horas vagas oferece-as como voluntária. O mundo de Wall Street,  do Carnegie Hall e do Metropolitan, e os sub-mundos da fome e do horror da Etiópia, Haiti, Angola, Guiné não lhe são estranhos.
Chama-se Domitília dos Santos, deu uma entrevista a Adelino Gomes publicada na Pública e diz coisas assim:
«[Quando fui trabalhar como voluntária para a Etiópia] entrava no meu quarto às nove da noite e só podia sair dele às cinco da manhã. Pedi uma tábua para dormir no chão, tinha ratos na cama»;
«Para se ter sorte é preciso trabalhar muito e bem»;
«Um homem ou uma mulher só vencem com trabalho, trabalho, trabalho»;
«Há pessoas cuja vocação é dar aulas a crianças. A minha é ajudar crianças e velhos a morrerem com dignidade»;
«[Quando olho para o mundo ocidental, penso:] Você está a discutir por cinco dólares, a discutir porque não lhe deram não sei quê? É irrelevante. Na Etiópia as pessoas não têm nada, pão, açucar, nada para comer»;
«Desejo ir à missa todos os dias. Fico mal disposta quando não vou»;
«A pessoa rica é aquela que consegue ser feliz gerindo o seu dinheiro»;
«O meu ídolo é Jesus Cristo. E depois a Madre Teresa de Calcutá, Nelson Mandela, Martin Luther King, Gandi»;
«O meu lema é ‘faz o teu melhor, e não te preocupes com o resto»;
«Actualmente quero aumentar o negócio e ganhar menos. Para distribuir mais pelas pessoas à minha volta»;
«Rezo e conto em português».
Felizmente ainda existem pessoas interessantes! Alguma destas coisas poderá ser afirmada logo à noite por algum dos candidatos a Primeiro Ministro?

1’ de sabedoria
O Mestre parecia que frequentemente desencorajava os seus discípulos a viver dependendo sempre dele. É que o Mestre sabia que caso isso acontecesse eles jamais conseguiriam entrar em contacto com a Fonte interior.
Por isso, um dia, disse-lhes o Mestre:
-- Existem três coisas que, estando perto de mais são nocivas; e estando longe de mais são inúteis. Devem, portanto, ser mantidas a uma distância média. São elas o fogo, o governo e o director espiritual.

[26 de Fevereiro de 2002]

terça-feira, 9 de abril de 2013

Notas de Roda-pé



Arley
Arley era jovem e tinha sonhos. Mas trucidaram-lhe os sonhos de jovem. Tinha 30 anos e de nome completo Arley Arias García. Era sacerdote, colombiano, e foi assassinado numa emboscada. Em Maio de 1999 a guerrilha queimou-lhe a igreja paroquial e Arley voltou a construí-la. No dia 22 de Novembro do ano passado uns desconhecidos assassinaram-lhe um irmão. Mas nem assim Arley, o P. Arley, abandonou o sonho de ver o seu país pacificado, e por isso se preocupava em ser ponte de paz. Várias vezes, com sucesso, junto da guerrilha, tinha solucionado vários sequestros. Até que chegou a sua hora de ser mártir. E foi. Testemunhou com a vida o amor ao seu povo, à Igreja e a Deus.
Na Alocução do Angelus de 3 de Fevereiro, como se falasse do P. Arley, dizia o Papa: «Os mártires não desprezam a vida. Permanecem, isso sim, fiéis ao Deus da vida e aos seus mandamentos e aceitam o martírio».

Eleições
Saídos de umas aí vamos nós para outras eleições. É interessante verificar como alguns dos nossos políticos usam carimbos que não autenticam nada. À luz da doutrina social da Igreja Católica aí vão dez princípios que o Papa tem proclamado no sentido de orientar os políticos (sobretudo, os cristãos):
1. Servir a sociedade procurando o bem comum e promovendo a participação solidária de todos.
2. Viver e trabalhar em coerência com os princípios cristãos que o inspiram.
3. Fundamentar a sua actuação na inalienável dignidade da pessoa humana.
4. Interpretar a justiça de acordo com a doutrina social da Igreja, conforme o seu leal entendimento.
5. Promover a justiça e a igualdade de oportunidades para todos, em especial para os mais necessitados ou desfavorecidos.
6. Cuidar que a lei positiva se enraíze na lei natural.
7. Defender a cultura e a vida, de modo especial, em relação aos mais indefesos: os não nascidos, crianças, idosos e doentes terminais.
8. Defender a família como célula básica da sociedade e como escola de valores.
9. Promover o diálogo, longe dos afrontamentos.
10. Submeteras leis do mercado à justiça e à solidariedade.

Assis
Em Assis o Papa reuniu as religiões do mundo. Fê-lo mais uma vez num tempo em que já ninguém esconde o enorme esforço para remeter a religião para trás da cortina. No palco vê-se de tudo menos religião. Porém, quanto mais se remete para trás do cenário mais a religião vem para boca de cena. Assis é sinal disso. O 11 de Setembro também. O que antes remeteram para o oculto e o privado veio para a rua e para a luz do dia! Existem dois trabalhos muito comuns na sociedade actual. O primeiro, como fica dito, trata de ocultar a religião. O segundo é lançar poeira aos olhos. E já que vamos para eleições aí vai o desafio do esclarecimento. Porque não nos dizem os senhores políticos o que pensam fazer à Lei da Liberdade Religiosa? E à Concordata? E às Instituições de Solidariedade Social? E à presença das Igrejas nas escolas e nos meios de comunicação social? E já agora, as religiões são espinhos na sociedade ou parceiros de diálogo?
Que o Estado seja laico e não se deixe manipular. Mas que quem nos governe reconheça a nossa matriz cultural, a nossa história, as nossas referências religiosas. Não defendam a (nossa) fé, clarifiquem as vossas opções. Digam o que entendem por direitos, deveres e privilégios. E nem importa que coloquem o assunto religião na gaveta, mas depois não se aproveitem dos nossos recursos e potencialidades sociais renunciando às responsabilidades próprias.

Milagres
D. Fernando Mascarenhas, marquês de Fronteira, desafiou a Comunidade de Leitores a ler e debater um livro policial. Começaram a falar de detectives e personagens suspeitas e acabaram a falar da Bíblia. Alguém disse: «à parte os milagres, a Bíblia podia passar-se hoje».
Devo esclarecer que tanto quanto percebo a Bíblia passa-se ainda hoje, até nos milagres. A verdade é que aquilo que se passa na Bíblia é o grande diálogo de salvação entre Deus e Humanidade. E aí está o milagre: Deus faz-se entender e amar pelo coração humano! Inclinou-se sobre a Humanidade para a elevar até junto do seu coração! Querem maior milagre? Que Deus me desafie todos os dias a saltar para os seus braços não é isso um grande milagre? Serão precisos mais milagres?

Quaresma
Começou a Quaresma. Repete-se à comunidade cristã o convite oficial para renovar a sua cordial adesão ao projecto de Jesus. O Povo  de Israel nasceu na quaresma do deserto. Por isso, todos os anos peregrinamos ao deserto onde nada há — ou melhor onde só há Deus! — para renovarmos as raízes. Foi no deserto que Deus educou o seu povo, ali lhe provou o seu amor de pai e lhe falou ao coração. «Desejo convidar todos os crentes, diz o Papa, a uma ardente e confiada oração ao Senhor, para que conceda fazer a cada um uma renovada experiência do seu amor». Boa Quaresma...


1’ de sabedoria
O mestre perguntou aos seus discípulos:
-- o que é mais importante, a sabedoria ou a acção?
Os discípulos responderam todos juntos:
-- A acção, naturalmente! De que vale a sabedoria que não se concretiza em acção?
E o mestre retorquiu:
-- E de que vale a acção que não nasce dum coração iluminado?

[12 Fevereiro de 2002]

sábado, 6 de abril de 2013

Notas de Roda-pé



€urros
Chegou o Euro. Finalmente. Chegou o euro, chegaram os €urros. Inevitavelmente. Um bar duma área de serviço das auto-estradas francesas recebeu um pagamento em euros de brincar: eram do jogo do Monopólio!; em Lisboa um restaurante pagou-se 600 contos duma refeição de 4.000$00; e no Funchal um outro pagou-se 3000 contos!; Lionel Jospin, primeiro ministro francês, pagou dois ramos de flores a preços exorbitantes... Aparentemente sem fazer contas!; o nosso ministro das finanças sabia a que correspondiam 50 euros, mas já não sabia quanto eram 100!; e o balcão duma instituição bancária austríaca entregou euros aos clientes a preços 25 vezes menos o seu valor! Dizem que a SIC saiu por aqueles dias à caça dos €urros. Andou a filmar e a interrogar velhinhas a contar euros. Parecia o Minas e Armadilhas! Filmou muito, mas não muitos erros. Chegou o euro, chegaram os €urros. E em boa verdade os €urros vieram de quem menos a SIC esperava.

Geração
O Vicente Jorge Silva inventou a Geração Rasca. Outros responderam dizendo que afinal era à rasca! O Carlos Cruz acaba de inventar a Geração Fantástica. São meninos e meninas de dez/doze anos. Algo há neles, na óptica de quem e de como os apresenta, que faz deles fantásticos. Talvez estejamos mesmo contemplando uma geração fantástica que, a sê-lo, será sempre devedora da actual. É fantástica até nos tiques que inevitavelmente copia. Afinal é filha do nosso tempo, não haja dúvida.
Parece que o futuro está garantido. Há matéria prima, faltará trabalhá-la.
Vi quase todos os testemunhos fantásticos e parece-me que nem tudo vai mal. Temos um compromisso com o futuro e existem as condições que impedirão de o falharmos. Mas como ninguém é fantástico antes de tempo faltará sê-lo convicta e persistentemente. A ver vamos.

Mestre
Como se abraça um mestre? Um destes dias passava pelo Porto e já era quase noite. Numa rua com um jardim minúsculo mas bem iluminado vi um velhote todo embrulhado no seu surrão escuro. Vi-o e tive a tentação de lhe dizer que se animasse porque, afinal de contas a vida é bela e o ano só tinha começado ontem... Pensei e ia a dizê-lo quando reparei que o velho era o meu velho mestre R. Castro Meireles (um dos poucos a quem me atrevo a chamar assim.). O diálogo foi assim:
-- (surpreso) Ó senhor doutor...
-- (surpreso também) Ó carmelitano!
-- O senhor está bom, sente-se bem?
-- E tu onde estás agora?
-- Estou em Avessadas. Sente-se bem? Quer que o leve a casa?
-- Não. Não. Subi agora da ponte D. Luis por aí acima. Parei aqui e estava a rezar. (Atrás havia uma trupe de outros velhos a jogar às cartas.) E tu como estás?
-- Mas sente-se bem?...
-- Sim, sim... Parei só p’ra rezar. Estava a rezar... Cuidado com os quarenta anos, cuidados com os quarenta anos... Podes ir-te embora, fico aqui a acabar de rezar e já vou embora.
Ainda me ofereci outra vez para o levar a casa. Mas não deixou. Só queria ficar ali a rezar por nós que andamos nos quarenta anos. Despedi-me saudando-o mas sem o abraçar, afinal estava a rezar por mim. Por mim que não sei como se abraça um mestre que está a rezar.

Xis
Há uma revista feita ao contrário das outras. Ao menos é o que eu acho. É feita com fé, com amor e com muita esperança. É feita pela positiva, a pensar em ajudar. E ajuda, ajuda muito. Sai ao sábado juntamente com o jornal Público e chama-se XIS. A revista é interessantíssima e como é feita ao contrário das outras serve, ajuda, sugere, voluntaria-se, anima, encoraja, acalenta, arrisca, aponta caminhos e soluções.
Eu gosto da XIS, e não sou só eu. Quem a faz também. Costuma dizer-se que as boas notícias não são notícia. A Laurinda Alves acredita que a boa notícia é duplamente uma notícia. Ainda bem que assim pensa. Porque do seu esforço e do esforço da sua equipa sai uma revista diferente porque é capaz de anunciar boas notícias.
Vivemos um tempo anestesiado pelas más notícias e pelos comentários que no dia seguinte elas provocam. Basta ouver os telejornais e confrontar-nos com as tais conversas. E basta verificar o choque que as más notícias já não nos provocam.
Uma revista como a XIS não deveria existir. Quero dizer, não deveríamos precisar duma revista a dizer bem, a dizer boas notícias. Não deveria existir simplesmente porque o que não precisamos mesmo é de más notícias. Mas já que o nosso céu noticioso é tão escuro ainda bem que lá apareceu uma estrela polar.

Escolinhas
Entrei para o Seminário tinha acabado de fazer dez anos. Pouco depois só se aceitavam rapazes com 12 e mais tarde com 15. Agora preparamo-nos para aceitar com idades superiores. As coisas mudam, e entre elas a disponibilidade das famílias em libertar os filhos para os Seminários. Além disso o tempo da infância e da adolescência alargou-se o que torna cada vez mais tardia as rupturas necessárias. Recordei-me disto quando há dias vi uma reportagem sobre escolinhas de futebol. Não sei dizer mas talvez fosse na França ou na Suiça.
A reportagem mostrou o dia a dia duma dessas escolinhas, a captação de vocações, o acompanhamento, as práticas e prelecções, os treinos e os estudos, as visitas às famílias e aos amigos, as saudades das famílias e as dos eleitos, as lesões, as competições, os ciúmes, os anseios, as esperanças, os sonhos. Havia uma ressalva, salvo dum ciganito, de ninguém se dizia que pudesse vir a ser uma estrela.
Havia uma coisa que mantinha aqueles adolescentes unidos no sonho: poder vir a brilhar numa constelação qualquer do futebol europeu! Era isso que os fazia suportar todas as dificuldades que todos diziam detestar.
Só não os vi rezar, porque se os visse a caminho da capela diria que até parecia um Seminário.
Enquanto ia vendo a reportagem pensava nas similitudes entre as escolinhas de futebol e os Seminários. Porém, as primeiras são, sem dúvida, mais sedutoras que os segundos. As primeiras estão cheias, os segundos vazios. E, sinceramente, não sei dizer quem mais falta faz, se o sacerdote se o fazedor de sonhos que é o futebolista!

1’ de sabedoria
Disse o mestre a certo aluno que o venerava com certo exagero:
-- Quando a luz iluminar um muro não tentes venerar o muro iluminado. Venere antes a luz que ilumina o muro!

[21 de janeiro de 2002]

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Notas de Roda-pé



Assis 3
João Paulo II convocou as grandes religiões do planeta para a cidade italiana de Assis. No dia 24 de Janeiro de 2002 haverá nova jornada de oração pela paz. Será a Assis 3!
Foi no 27 de Outubro de 1986 que o Papa convidou pela primeira vez as religiões para uma jornada de oração. Era um encontro «para estar juntos para rezar pela paz». A convocatória estranhou a todos. O mundo vivia o risco sério de confronto nuclear entre Este e Oeste. Três anos depois do encontro caía o Muro de Berlim!
A 9 e 10 de Janeiro de 1993 o Papa convocou cristãos, muçulmanos e judeus para um «Encontro especial de oração pela paz na Europa e especialmente pelos Balcãs». Vivíamos a guerra da Jugoslávia...
Na sequência da crise de 11 de Setembro o Papa convoca, pela terceira vez, as religiões para Assis. Recusando-se a ver neste conflito uma guerra de religiões o Papa está convencido de que a matriz do mundo muçulmano é a tolerância e o convívio com as outras religiões. No dia 24 de Janeiro estaremos juntos a rezar pela paz. Ninguém mandará em ninguém porque todos desejamos o bem precioso que a todos faz falta, a paz.

Gatos
Dizem que têm sete vidas. Cá tenho as minhas dúvidas. Explico-me. Na novo troço que traz a auto-estrada à ponte de Canaveses (e em muitas outras estradas do país, estou certo.) tenho visto gatos e até cães mortos. Um destes dias contei onze! Negros eram oito! Passados oito dias continuavam lá, e uns dias depois também. Não me espanta o azar dos gatos em quem reconheço certa habilidade na gestão no gastar das vidas, mas já me espanta que ninguém se sinta responsável a poupar-nos aos tristes, repetitivos e incómodos espectáculos dos animais mortos nas nossas estradas...

Bin Laden
O Pedro não sabia quem era o bin Laden. Na cara do Pedro vi a estranheza que eu mesmo devo ter feito quando ouvi tal nome, que é sinónimo de terror e medo. Um dia depois o Pedro não vira ainda o filme, porque o imediato impedira de absorver toda a informação sobre o 11 de Setembro. Muitos disseram que o mundo pós-11 de Setembro estava diferente, tinha mudado. Só não mudara no casulo mais vigiado. Porque não havia informação!
Será talvez exagerado afirmar mas hoje é a informação que nos faz. A informação, não a formação. Por isso somos tão voláteis, porque aquilo que nos vai formando — a informação — também o é. Como não aguentamos informação requentada necessitamos de nova dose de novidade que sacie em nós a ânsia de saber o que se passa no mundo que passa. Há nisto algo de perverso: vivemos demasiado projectados para fora, assustamo-nos se temos de parar e de fazer introspecção. Logo, ou recebemos informação — isto é, coisas novas, até estapafúrdias — ou estamos mortos de tédio.
Ninguém aguenta o silêncio...
Antigamente as grandes personalidades construiam-se sobre o a calma, a atenção prestada ao que deveras era essencial. Em razão disso levavam tempo a construir e muito mais a passar de moda! Hoje as grandes banalidades constroem-se sobre o que passa, o secundário e o banal. E como tudo passa tão depressa não admira que tenhamos medo de nos encontrarmos connosco próprios. Até porque é difícil encontrar-nos connosco próprios que — até para nós — estamos de passagem.

Rir
Temos de estar sempre a rir. Quem não ri não tem piada, e quem não faz rir não serve para amigo. Ou estamos na onda (Sabes a última, perguntamos.) ou remamos contra a maré. É curioso e talvez trágico verificar que rimos, parece-me, para não pararmos para pensar. O real é tão impróprio para consumo que tacitamente assinamos um acordo que diz: bora, pessoal, vamos rir. E rimos para que que nos vejam rir, e não porque tenhamos razões para isso.
Dizia S. Teresa de Jesus que um santo triste é um triste santo! Não me parece que devamos ser soturnos e carrancudos. Não, isso não! Somos portadores da melhor notícia: Jesus ressuscitou (e nEle, e por Ele ressuscitaremos nós!)! Quem se confia à dinâmica da fé no Ressuscitado só pode ser feliz. O católico é alguém que ri, que é feliz. E nos tempos que vivemos rir é sinal de fé.
Não é, por conseguinte, disso que vinha falando. Porque o que a mim me surpreende é o absurdo do riso de quem ri porque já não acredita em nada.
Feliz 2002!


Chico Fininho
Estudava eu Teologia e uns colegas quiseram visitar/conhecer o meu convento. Foram, e visitaram. (Não sei o que esperavam, hoje penso que talvez um centro comercial com muita música, muito ruído, muito movimento...) Não estavam ali há dez minutos quando me pediram, vamos embora que este silêncio (o meu querido silêncio conventual!) cansa e oprime! Acabamos a tarde no bar da Faculdade ao som do Chico Finhinho...

2000
Tudo passa, só Deus não muda. Passa o tempo e passa a desgraça, e por graça só Deus é que não passa. Embora em nós passe a percepção e a relação que temos com Deus. Assim como uma aurora entrega à outra a mensagem e o segredo do recomeço, assim um ano entrega ao outro o desejo de novidade.
Começou 2002. Na Igreja ouvimos textos de paz e de bênção. Ao Deus que não passa imploramos a graça da bênção sobre tudo o que passa. O amanhã não será sem o ontem, mas como temos necessidade do novo e do diferente há em nós desejos de paz. Porém, a frieza do nosso cepticismo diz-nos que o passar dos dias pode cunhar na nossa memória datas como a de 11 de Setembro, e por isso armamo-nos de falsa prudência. No fim de contas, não queremos que se repita a cena mas pouco fazemos para construir esperançadamente a paz. O Papa ensina que só há paz onde existe justiça, reconciliação e perdão. São coisas que requerem tempo, exigem muito trabalho e nós não temos paciência. Mas valeria a pena... Feliz 2002!

1’ de sabedoria
-- Desejo ver a Deus..., disse o discípulo.
-- Pois está olhando para Ele agora mesmo, disse o mestre.
-- Então porque não o vejo?
Mais tarde o mestre explicou aos outros discípulos:
-- Pedir que Deus se revele totalmente nesta vida é pedir que o olho veja o próprio olho; ou que a faca se corte a si mesma; ou que o perfume da flor se cheire a sim mesmo.

[1 de Janeiro de 2002]

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Notas de Roda-pé



As boas festas da Estrela Rabuda

O meu cartão de Boas Festas aos leitores do jornal A Verdade será este que segue junto ao texto. Não é um cartão habitual e na minha perspectiva dispensaria palavras. Mas por ser tão inusual direi que ofereço uma Estrela Rabuda (nome que em algumas terras dão à estrela que guiou os Magos até ao presépio) cujo interior guarda um labirinto. À entrada do labirinto estão três personagens; à saída do labirinto estão três cruzes.
Não parece cartão de Boas Festas, pois não? Mas a Estrela Rabuda não engana. Ela é, essa parece-me ser a mensagem, a luz que ilumina o Natal e a Páscoa. E nos ilumina a nós entre o nosso natal e a nossa páscoa!
Diz o povo que escreve Deus direito por linhas tortas; ou, direi eu, escreve a historia de Jesus, a Luz que nos guia, nos labirintos da história dos humanos. E embora os errados caminhos da humanidade sejam o labirinto de linhas onde se inscreve Jesus, a verdade é que este é um labirinto de Luz porque por ali passa Jesus. A Luz orienta Jesus e orienta-nos desde o Nascimento e Morte.
A luz é Jesus!
Na Sexta-feira Santa as lágrimas impedem-nos de ver luz num dia tão escuro como o dia da cruz. Mas o dia tenebroso só tem sentido, como só tem sentido o dia luminoso, se a luz for Jesus!
Há nestes jogos que costumam surgir nas páginas dos passatempos dos jornais uma tarefa que se torna obrigatória a quem a lê. Depois de passearmos os olhos pelas páginas das notícias e de comprometermos o coração e a razão com tanta notícia nem sempre boa alguns jornais oferecem-se para nos fazer passar ainda mais tempo. A tarefa proposta é a de ir desde uma origem a um fim guiando alguém aparentemente perdido pelo contexto de linhas escritas por mão todo-poderosa e  sábia.
Curioso que aqui a mão humana obstaculize o caminhar divino! Sim, porque aqui no labirinto da Estrela Rabuda é mesmo Jesus no seu Natal entrando nos labirintos da história humana que inapelavelmente O levarão à cruz!
Pegue o amigo leitor ou leitora num lápis e mostre o caminho a Jesus. Mas primeiro, feche os olhos e lembre aqueles tempos pequeninos em que tudo nos parecia demasiado grande. Recorde aqueles tempos em que começamos a aprender a rabiscar e depois a transformar rabiscos que só nós entendíamos em letras entendíveis por todos. Recorda-se de quando a mão do professor, da mãe ou do pai segurava a nossa para nos guiar no desenho da redondez do ‘a’? Pois, então, feche os olhos. Não importa que não veja a Estrela Rabuda! Está a imaginar o labirinto? Sim, o labirinto da Estrela Rabuda? Sim, o labirinto da vida? Pronto. Então agora aceite percorrer o labirinto. Você está de olhos fechados, a sua mão vai guiando Jesus pelo labirinto da sua vida. Mas não esqueça: se vai guiando Jesus é porque a mão de Jesus guia a sua mão!
Isso é Natal! Jesus vindo ao seu labirinto, você sendo levado (levada) por Jesus!
Isso é Natal! A luz vindo sobre as chagas dum povo ferido e sobre os ombros dos paralíticos incapazes de caminhar!
Isso é Natal! A luz já se vislumbrando nas covas sem luz dos cegos e já se anunciando nas poderosas trombetas interiores que só os surdos atentos à Palavra ouvem.
Feliz Natal!

 [12 de Dezembro de 2001]

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Notas de Roda-pé



Radical
O Padre Custódio Campos foi para Cabo Verde quando Portugal ainda não conhecia a palavra stress. Quando para lá foi há 47 anos!, como missionário, disseram que fora castigado. Ele nega. Foi por gosto, com sentido de missão. Agora quem não quer regressar é ele. E só virá de vez se for castigado! Mas o Padre Campos já não é um garoto da quarta classe... Ficará por lá, estou certo.
Em 47 anos veio três vezes a Portugal, a última foi em 1987! É um missionário itinerante e radical. Tem uma moto, uma Yamaha Cross 125 cc, na qual percorreu vinte e dois mil quilómetros nos últimos dois anos. A sua vida não pode ser uma vida chata, de certeza. Para quem gostar de motos, claro. E não só...
É um homem de fé e de humor. Nos tempos que correm a primeira implica o segundo. Não duvido que tenha fé, e humor tem de certeza. Repare-se no que diz sobre o dia da sua morte: «costumo dizer que quando morrer vou de mota para o cemitério, chego lá, tiro o capacete e digo ao coveiro: — ‘agora tome conta da mota, que eu vou pelo meu pé’». E para quem se questionar sobre a sua saúde mental remata dizendo: «temos de levar a vida com optimismo». E a morte também, digo eu.
Pode não gostar-se do tom; por mim aprecio a imparcialidade.

SIDA
No dia mundial contra a SIDA deste ano a Igreja fez saber que não está alheia à Peste. Faz saber a quem não sabia... Eu já sabia. Entre outras coisas, a Igreja não se encontra indiferente ao esforço colectivo de avisar toda a gente que:
a)      Dada a gravidade da SIDA poder vir a contagiar alguém é grave Responsabilidade Moral;
b)      A prevenção dos riscos da SIDA é uma exigência de Dignidade da Sexualidade
e do Amor;
c)      Na Sociedade há excluídos, mas não há excluídos no Projecto Amoroso de
Deus.
É verdade. A Igreja não está indiferente por muito que (nos) queiram provar (e se queiram autoconvencer) que está.

Silvina
Palavras de João Paulo II na sua recente visita pastoral à Ucrânia: «Hoje não é suficiente falar de Cristo. O grande desafio dos cristãos é ajudar as pessoas a vê-lO. Dai ao povo a possibilidade de ver o seu Salvador. Testemunhai com a vida e com as obras a presença do Ressuscitado entre vós».
Irmã Silvina, não deixe apagar a vela que apresentou ao altar no dia do seu jubileu de consagração religiosa. Precisamos de luz que ilumine e esparse as sombras que ocultam a sua Presença.

Dalai Lama
Da passagem do Dalai Lama por Portugal fica-me esta frase: «para que sejamos felizes é necessário que os outros também estejam felizes». Deixo todas as peripécias para trás e guardo para sempre esta frase como bandeira contra todos os egoismos, contra todos os ostracismos. Fico-me a pensar (inspirando-me mais uma vez no Dalai Lama:) que eu nunca sou individual porque integro o outro, os outros. Não sou isolado; acampanular-me é um risco de morte.

Harry Potter
O mundo anda sério demais. Carregado demais. Escuro demais. Quem, em algum momento, não precisou dum tempo e dum espaço de evasão? De galgar as ameias que nos prendem à dureza e ao sufoco do real? Não admira por isso que o cinema fantástico tenha sucesso. Dentre tanto fumo e nevoeiro ou surge um arco-íris ou perdemos o norte. Não me estranha o êxito do Harry Potter: três horas de ilusão compensam muitos dos sem-sentido da vida do dia-a-dia.
Os avós deixaram de contar histórias, e os pais ou não aprenderam a contá-las ou não têm tempo. E com isto se perde o nosso património cultural. Salve-nos o cinema que ainda nos vai concedendo pitadas de magia e evasão. A escala é global, não tem o sal próprio dos regionalismos. Mas ao menos não nos falte o pão da magia que acrescenta e multiplica mundos ao mundo.
O mundo anda sério demais. E mais sério fico eu quando ouço dizer que a autora do Harry Potter viveu (e passou fome) em Portugal, Vila Nova de Gaia. E ainda mais quando me confirmam que um editor português recusou publicar a primeira aventura do Harry Potter. Talvez que se nascesse português Harry nunca chegasse a ser global; afinal, a língua da magia e do sonho é, nos tempos que correm, o inglês!


1’ de sabedoria
O amado foi visitar a amada. Quando chegou junto da tenda bateu à porta. A amada perguntou: — Quem é?
O amado respondeu: — sou eu!
E fez-se um enorme silêncio após o qual, triste, o amado regressou a casa.
No dia seguinte o amado regressou a casa da amada. Ao chegar bateu e chamou. A amada perguntou: — Quem é?
O amado respondeu: — sou eu!
E fez-se um enorme silêncio após o qual, triste, o amado regressou a casa.
No terceiro dia o amado foi de novo a casa da amada. Ao chegar bateu e chamou. A amada perguntou: — Quem é?
O amado respondeu: — sou tu!
E foram felizes para sempre.

[5 de Dezembro de 2001]