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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Comerciar com Deus


Que as palavras se gastam sabemo-lo nós e sabemo-lo melhor quanto mais o silêncio nos vai fraguando e recompondo. Comerciar é uma palavra gasta e mais que gasta, em desuso.
O comércio é feito de tantas ilusões e enganos que associá-lo ao divino é rebaixar a Deus. Nós comerciamos, mas a mercadoria hoje é tanto de usar e deitar fora que o comércio, no conjunto das tarefas humanas, parece uma obra menor ou baixa.
Mas o certo é que os grandes autores espirituais, inspirando-se como sempre nas realidades ordinárias e comezinhas da vida, falam do comércio da pessoa com Deus para dizer o diálogo e a troca que há de nós para Deus, entre Deus e nós, e vice versa. Comerciar com Deus pode querer dizer, por exemplo: dialogar com Deus, dar e receber de e a Deus.
O relato do Evangelho deste domingo é duro e choca-nos. Choca-nos por vermos o doce Jesus naqueles preparos, e tomado de ira. (Ainda que talvez fosse santa, pensam os mais santos de nós!) Como foi possível que Jesus tenha feito o que fez? Visto que falou de amor ao próximo e de nos tratarmos como irmãos, como é que actuou tão violentamente, mais parecendo um descontrolado agitador social?
Não é aprazível nem pacificador ler o relato da expulsão dos vendedores do Templo.
(A piedade popular chama-lhe vendilhões!). Onde está o sempre doce e misericordioso Jesus? Talvez o problema não seja de Jesus. Talvez o problema esteja nos vendedores e não em Jesus. Mas afinal, que mal, se mal fizeram, que mal fizeram eles, que mal justificaria a actuação iracunda do Salvador?
Sim, o problema está nos vendedores, e quem sabe, também em nós. É por isso que este trecho do Evangelho é lido na Quaresma, a fim de reorientarmos o nosso comércio com Deus.
Os vendedores do Templo eram um conjunto de comerciantes que englobavam cambistas (pois ao Templo afluiam pessoas vindas de muitas nações) e vendedores de animais: passarinhos, pombas e rolas, cordeiros, cabritos, touros. O seu comércio redundou no aproveitamento do culto a Deus para alcançar um enriquecimento pessoal injusto. (A liturgia do Templo implicava a oferta e imolação de animais a Deus.) Por isso, a reacção de Jesus é contra o comércio feito à sombra de Deus, que convida mais aos sacrifícios (imolação) de animais, que à conversão do coração do peregrino (e hoje, o nosso).
O mais certo é que Jesus soubesse que muitos dos seus contemporâneos buscavam a Deus em todos os sítios, menos dentro do seu coração. Jesus sabia que o mais fácil é o cumprimento do ritual externo, e que o mais esquecido e desprezado é a conversão do coração.
Choca-nos a indignação de Jesus? Então, cuidado! Porque também é possível que ainda hoje, nós, os crentes, continuemos a viver uma fé pouco séria e à margem da conversão a Deus e aos seus critérios de justiça e amor. Choca-nos a ideia de comerciar com Deus? Então, cuidado! Porque ainda hoje é muito frequente a fé-comércio: — Eu dou orações, Tu, ó Deus, dás-me tal e qual, o que te pedir!
São muitas as situações que nos reforçam a ideia deste comércio religioso: oferecer algo a Deus em troca do que Lhe peço; zangar-me com Ele se não me ouvir; fazer-lhe promessas se Ele consentir nos nossos pedidos (não vá Ele dizer que não!).
Mandou outrora Deus dizer pelo Profeta que quer «misericórdia e não sacrifícios», porque o que Deus deseja em verdade é um coração novo, humano humano, que não se mova por interesses, mas por amor desinteressado a Deus e aos irmãos; e onde Ele possa habitar.
Eis a troca comercial que Deus espera de nós!
Continuação de Santa Quaresma.

[Chama do Carmo -15 de Março de 2009]

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Homens escuros e sem luz


Existem homens luz e homens sombra. São mais os segundos. É bem certo que o mundo não gosta da Luz, porque a Luz denuncia as sombras e as escuridões de quem se diz iluminado e é só noite.
Quem faz as obras da luz aproxima-se da Luz para que sejam vistas.
Quem faz as das sombras, foge e oculta-se defendendo-se na escuridão.
Dão-se a seguir quatro exemplos de homens sombra e noite, que em diferentes épocas expulsaram a Luz, até que, por fim, Ela os alcançou, os iluminou, os seduziu, os incandesceu.
São quatro histórias simples que mostram que, por vezes a Luz é mais forte e vence.
Diz-se que quando encontramos uma pérola valiosa nos empenhamos de veras em adquiri-la.
Foi isso que fizeram os quatro exemplos que damos (haveria muitos outros) e é isso que havemos de fazer nós também, porque também nós somos luz, pertencemos à Luz, e não à sombra ou à noite!

Agostinho
Metade da sua vida foi caminho de escuridão. Não lhe faltaram oportunidades para caminhar na Luz... A mãe tentou educá-lo o melhor possível, mas ele não escutava a mãe. Um grande amigo seu estando em perigo de morte disse-lhe que estava a preparar-se para receber o Baptismo, mas ele riu-se do amigo. Teve a Bíblia na mão e poderia ter lido algo, mas pareceu-lhe um livro feito para gente de pouco cultura.
Caminhou 32 anos nas trevas, numa busca contínua até alcançar a Luz que, sem saber buscava mal: buscou-A nas tabernas, na seita dos maniqueus, na libertinagem, no jogo, nas discussões, na filosofia. Queria ser feliz mas não era, tudo era escuridão. Um dia contemplando um bêbado teve inveja dele: ao menos o bêbado ainda se ria.
Mas como não parava de buscar foi alcançado pela Luz e a sua vida iluminou-se e mudou de rumo. Chama-se Agostinho, Agostinho de Hipona, é o grande S. Agostinho!

André
Era nobre de nascimento, não de vida. Quem com os lobos anda com eles aprende a uivar e caçar. A sua vida de menino rico e mimado era exclusivamente dedicada à caça, aos jogos e aos amores. A da mãe, a chorar e a rezar na Igreja do Carmo da cidade. Não lhe faltaram os bons exemplos e modelos, mas ele preferia os maus, os prazeres e os vícios.
«Lobo feroz te vi eu em sonhos antes de nasceres», gritou-lhe, desesperada, a mãe certa vez. E aí o rapaz converteu-se. A mãe deixou de precisar de ir à igreja para chorar e rezar, mas passou a ir o filho.
Quando no palácio anunciou que se faria Carmelita a mãe declarou: «O meu filho será sempre louco, mas eu prefiro esta loucura.» Foi Carmelita, um grande Carmelita. Abandonado o luxo e a vida louca revestiu-se com um pobre hábito remendado. Foi depois um grande bispo construtor de paz. Chama-se S. André Corsini.

Hermann [Agostinho]
Era judeu. Aprendeu piano aos 4 anos, foi o aluno preferido de Liszt. Em Paris iniciou uma carreira brilhante como pianista, professor e compositor. Foi amigo dos mais famosos anticatólicos do seu tempo. Frequentou os salões da aristocracia da Europa, ganhava imenso dinheiro e perdia-o copiosamente no jogo. Mergulhou em todos os vícios. E quase se afogou. Aos 28 anos inicia a sua iluminação quando, a pedido do princípe de Moscovo, toma provisoriamente a direcção do coro da sua capela particular. Não sendo crente sente uma comoção particular durante a bênção do Santíssimo. O sentimento repete-se a cada Sexta-feira. Converte-se — Os amigos dizem-no transtornado pelos excessos! —, baptiza-se e faz-se Carmelita. O Frei Agostinho do Santíssimo Sacramento é o fundador da Adoração Nocturna.

João
É português. Afoito, fugiu de casa aos oito anos, sem dinheiro nem qualquer outro apoio. A mãe morreu de desgosto com a notícia. O pai morreu mais tarde também desgostoso, num convento.
Quando a negrura da fome e do frio apertaram foi pastar gansos, depois cabras, por fim vacas. Mas a vida de armas era mais aventureira e apelativa que a de pastor. E com uma espada na mão era um terror temido!
Desertou do exército e quase deixou a cabeça na forca. Serviu um nobre português exilado da fortuna, fundou uma livraria, e nunca deixou, ao que parece de ser devoto de Nossa Senhora. Até nada da sua vida fora especialmente belo e exaltante. Um dia ouvindo um sermão decidiu mudar de vida: ofereceu os livros bons, queimou os maus. Prenderam-no por isso, porque parecia louco! Soltaram-no. Quando em Granada ardeu o Hospital Real a cidade ficou impotente a apreciar o espectáculo. Só o Louco rompeu as chamas e salvou todos os doentes acamados. Deixou ali de ser o Louco para passar a ser o Santo. Deu o resto da sua vida aos pobres, aos doentes e aos inválidos. Muitos o imitaram, chama-se São João de Deus.

Estes e outros muitos e muitas viveram no reino das trevas, mas fizeram a passagem para o da Luz. Convenceram-se que eram grandes e não passavam de míseros vassalos. Quando escolheram ser vassalos foram grandes e encheram o mundo de Luz!

[Chama do Carmo - 21 de Março de 2009]

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Um sinal (quase) invisível



No dia 2 de Fevereiro — quarenta dias depois do Natal — celebramos a Festa da Apresentação do Senhor no templo de Jerusalém. À entrada do templo o Menino Jesus, aconchegado ao colo da Mãe, foi reconhecido por dois velhos, Simeão e Ana, que, vigilantes e esperançosos, se haviam preparado para ir ao Seu encontro. Depois o Menino foi apresentado, isto é, oferecido em oblação a Deus, porque Ele é o Salvador que veio em obediência ao Pai para nos salvar. O dia 2 de Fevereiro é também o dia da Vida Religiosa ou Consagrada, daqueles e daquelas que ofereceram a vida toda e por toda a vida a Deus e à Igreja.
É certo e sabido que todos os séculos cristãos conheceram homens e mulheres empenhados em seguir o caminho proposto por Jesus, imitando-o radicalmente. E também é facilmente reconhecível que cada um adere a Jesus seguindo diferentemente o seu apelo «Vem e segue-Me». Os séculos sucederam aos séculos e a Igreja foi-se revestido de novos rostos e de formas novas de seguir o Mestre, renovando os modos e as respostas que o Espírito Santo vai inspirando às necessidades de cada época. Por exemplo: a comunidade apostólica é diferente da martirial, a monástica diferente da missionária. E todas irmãs e cristãs, e todas imitadoras de Cristo. Também em nossos dias existem discípulos determinados em seguir a Jesus Cristo. Todos em radical fraternidade, nem todos da mesma forma. Pois, se continua válida a Igreja estrutural e hierárquica é hoje cada vez mais necessária uma alternativa carismática e refrescante que se manifesta no surgimento de grupos religiosos que se propõem seguir a Cristo em liberdade e imitá-lO diferentemente, segundo modos novos que são dom do mesmo Espírito à Igreja.
O sinal de que aqui se fala é pois o da Vida Consagrada, o da existência daqueles homens e mulheres que consagraram a sua vida livre a Deus e à Igreja em pobreza, obediência e castidade. Deve, porém, considerar-se que um sinal só é sinal e só faz sentido se chegar a ser aquilo que se convencionou que fosse. Deve por isso poder ver-se, porque se não for visto não sinaliza, logo não cumpre a sua função. Logo não é sinal, mas uma contradição e negação do que deveria ser.
O que se diz diz-se dum qualquer sinal. De que serve um sinal num caminho ou num campo se o mato cresceu e o ocultou? Até pode estar lá a avisar a presença dum tesouro, mas se não for visto e percebido ninguém escava à procura do tesouro. Logo o sinal não cumpre a sua missão.
Há também sinais que com o passar do tempo e do uso se desgastam e se banalizam, perdem sentido, força e vigor. Não assim com a Vida Religiosa ou Consagrada, verdadeiramente um sinal no seio da Igreja que o Espírito Santo vai renovando e actualizando. Não assim, pois, com a vida dos frades e das freiras e de outros muitos consagrados, autênticos sinais do Reino no seio do Povo de Deus.
A oferta de nós mesmos, os Consagrados, os que vivemos em entrega pobre, casta e obediente a Cristo e à Igreja, não está de todo gasta, saturada de sentido, seja por excesso seja por defeito. Certamente, não por acaso, há poucas semanas, o bispo da nossa Diocese manifestou na nossa Comunidade a sua «alegria por ser mais bispo (se assim se pudesse falar...) por ter na minha diocese homens e mulheres consagrados; não muitos, mas ainda assim presentes, actuantes e fecundos.»
Não me admira a mim que um Bispo conhecedor do seu rebanho conheça e agradeça a vida, presença e serviço dos Consagrados. Nem me admira que gostasse de ter mais, e que reze para os ter melhores. Mas já me admiraria muito que em Viana do Castelo existam muitos cristãos que conheçam e reconheçam a totalidade (ou até mesmo grande parte) da presença dos Religiosos no seu seio. E que agradeçam também esse dom que somos, um dom gratuito entregue por Deus ao seu povo. Saberá a Igreja de Viana o nome das famílias religiosas que aqui conjuntamente caminhamos e nos santificamos? Saberá reconhecer o tesouro que tão delicadamente o Espírito lhes sinaliza? Saberá reconhecer, agradecer e retribuir enriquecendo-as com novas vocações?
No conjunto da peregrinação de fé do Povo de Deus faz sentido que haja quem assim tão belamente se entregue a Deus e à Igreja. Como dom total, livre e gratuito. Somos, parece, um dom esmorecido na Igreja. Não o sejamos por muito mais tempo, porque a torcida ainda fumega! Haja, pois, esperança.
O dia 2 de Fevereiro é o Dia dos Consagrados. Uma festa discreta para gente discreta, que de tão discreta é um sinal quase invisível, oxalá como o sal: invisível mas presente e bom.

[Chama do Carmo - 1 Fevereiro 09]

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Faz sentido sofrer?


A Palavra de Deus deste Domingo coloca-nos implacavelmente frente ao sofrimento humano. Perante o sofrimento não há indiferença. Aliás, Jesus nem indiferente ficou diante duma (simples) febre, tal como testemunha o evangelho deste quinto Domingo Comum.
Job é no Antigo Testamento a figura que atrai o nosso olhar quando abordamos este tema. Quantas vezes, como Job, poderíamos nós dizer desde o nosso sofrimento: «A noite torna-se comprida, farto-me de dar voltas até que amanheça»?
Como qualquer humano também nós, cristãos, ansiamos por resolver a vida, isto é, tomá-la nas mãos, orientá-la, tirar dela o melhor proveito, ser feliz. Não há quem o não queira, sejamos ou não bafejados pelo dom da fé. Porém, quantas vezes, como 
Job, não concluímos que tudo é fugaz e não existe esperança em ser-se feliz?
Job é uma figura do Antigo Testamento ficcionada pelo autor sagrado, cuja vida tudo tinha para ser feliz. Nada lhe faltava. Porém, sobreveio-lhe a pena e o sofrimento, a derrota e a humilhação. Era um homem exemplar em sua vida, mas foi tocado por sofrimento inexplicável.
(Vale a pena ler este precioso texto sobre o sofrimento, e até apreciar o recorte literário de sabor oriental em que foi escrito!)
O Livro de 
Job, narrando a história desta personagem foi escrito para tentar responder à pergunta: existe um sentido para o sofrimento?
O sofrimento humano é um mistério. Por essa razão suscita perplexidade, compaixão, respeito. É uma realidade tão extrema, tão distante e tão íntima, que nos assusta terrificamente.
Recordemos 
Job: foi um sofredor inocente. Mas ainda assim, sofredor. Ele sabia que só fizera o bem, mas sofreu horrivelmente. No fim do seu sofrimento, Deus repreende os seus amigos por o terem reputado de mau; e o próprio Deus reconhece que ele é inocente. Logo, cabe a pergunta: porque existe o sofrimento? E outra pior: porque sofrem os bons e os inocentes?
Ainda que muito me custe afirmar, creio que o sofrimento pode ser um castigo: o papel de pai contém essa tarefa; e situações há em que o amor deita mão desta pedagogia. Porém, ainda assim o sofrimento nem sempre se entende, pois algumas vezes não pode ser entendido como como castigo.
Estou por isso certo que o enigma da dor é noutras muitas vezes a possibilidade de crescimento pessoal. Estou certo que o é, não estou certo que assim seja percebido e aceite. Olhado desde a fé, é-o certamente. No ensinamento de Jesus a proclamação das Bem-
aventuranças dirige-se precisamente aos que são provados nos vários sofrimentos. É para eles, os sofredores, que está destinada a felicidade. Logo (algures) é possível ser-se feliz!
O sofrimento pode ser uma oportunidade. Obviamente, de crescimento.
Perante a iminência da própria dor Jesus orou insistentemente ao Pai para que a dor não o tocasse, não lhe ferisse o corpo e o espírito. Houve, porém, de passar pelo moinho de dor que foi a Cruz para vencer a morte que mata o corpo, lugar do sofrimento. Para vencer o sofrimento e a morte Cristo deu-lhes combate no território em que reinavam. E perdendo às suas mãos pela ressurreição venceu-as para sempre e ganhou-nos a nós na sua vitória.
Como compreender isto? Pela fé, unicamente pela fé e pela adesão confiante a Deus. Quem situa a sua vida apenas num horizonte sem abertura ao Criador fica prisioneiro nos limites do seu corpo dorido e apenas iluminado pelo escuro da dor. Porém, quem alumia a 
finitude confiante de que ela não é estanque mas aberta a Deus, esse (essa) sofre como todos sofrem, mas sofre iluminado pelo optimismo de que a sua dor é também assunto de Deus, em Quem pomos a nossa confiança porque tudo pode.
Os que têm fé também soçobram perante o sofrimento. E os que os rodeiam nem sempre podem ou sabem acompanhar a sua dor. Mas não há outro caminho. A melhor resposta à dor é a companhia e o sofrer com: a compaixão. Que grandes vitórias se podem alcançar numa simples visita à casa da dor!
Frequentar essa casa não significa que devamos amar a dor sem mais, e mesmo se a não podemos mitigar podemos ao menos mostrar amizade: o melhor remédio para um doente é ter um amigo. Quem está a sofrer está em inferioridade de condições, precisado de ajuda a fundo perdido (e nem sempre tem possibilidade de agradecer). Mas uma coisa pode fazer com sinceridade: oferecer a possibilidade de ser amado com verdade! Oferecer a oportunidade de amar e ser amado, e de também nós, os amigos, irmos preparando-nos para a escola em que tarde ou cedo nos inscreveremos como aprendizes ou atletas de longo curso.

[Chama do Carmo - 8 Fevereiro 09]

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Santidade, um procurar agradar a todos!


A Palavra de Deus deste domingo coloca de novo o sofrimento humano diante do nosso olhar e à
consideração da nossa inteligência e fé. Mais uma vez Jesus mostra como se faz: quebra barreiras, vai ao encontro, salva e devolve a saúde implicando-se com quem sofre.
Por outro lado, escutaremos na segunda leitura, da primeira carta aos 
Coríntios, uma série de normas para que os fiéis de comunidade saibam comportar-se na vida e agradar a Deus. Paulo anseia por fazer chegar o Evangelho a todos e apresenta-o com a sua palavra e com a sua vida, a fim de que todos o possam aceitar. O Apóstolo é a norma da comunidade, porque ele tem Cristo como a sua norma.

Como haveriam os cristãos de posicionar-se como indivíduos e como comunidade na amplitude do convívio social e no contacto com as outras religiões? A resposta é uma tarefa árdua para o Apóstolo que cruzou continentes e mares, culturas e religiões, para anunciar a Cristo e plantar a Boa Nova da salvação de Jesus.
Com toda a naturalidade a adesão ao Ressuscitado rapidamente incorporou homens e mulheres de muitas proveniências culturais e religiosas: judeus ortodoxos e da 
diáspora
— mais estritos os primeiros, mais liberais os segundos — que obedeciam à Lei; e muitos outros chegados de nenhuma fé ou obediência; e, como é óbvio, também outros de outras muitas crenças; e ainda os simples e os sábios, os acirrados e os frágeis. As comunidades 
paulinas eram tão diversas como diferentes eram as suas origens. Paulo sentiu isso, sentiu todo o emaranhado de tensões, os apelos e amarras do passado e as buscas de sentido. Por exemplo, como propor Cristo a um grego que antes se convertera ao judaísmo? E como anunciar o Evangelho a alguém que obedecera a um qualquer outro culto pagão? A todos, a uns e a outros, Paulo propôs a santidade de vida.
Aos 
coríntios Paulo propôs uma forma de comportamento, que os integrasse no conjunto da sociedade e que agradasse a Deus. Não foi fácil. Ainda hoje se verifica entre os cristãos o julgamento de que Deus aprecia carradas de orações, fazer muitas promessas e mortificações extraordinárias. Compreende-se que assim seja: levámos muitos séculos a destacar e a exaltar essas notas na vida dos santos, parecendo que só vivendo assim se poderia chegar a santo, e naturalmente chegar a fazer muitos milagres!
Porém, conceber assim a santidade é uma aberração que traz mais perigos que proveitos. A ser assim a santidade seria algo
inalcançável, algo que estaria reservado a uma élite muito pequena. Em consequência estaríamos a assumir que Deus ao pedir-nos para sermos santos nos estaria a propor um objectivo exagerado, fora do comum, só para heróis.
A santidade, porém, não é isso que tantas vezes nos pregaram, que nos insinuaram, que com armas de retórica maciça nos bombardearam.
A santidade é mais simples. E é aqui que convém escutar Paulo, quando nos diz que até o comer e o beber, isto é, qualquer coisas simples que possamos fazer, pode dar glória a Deus, agradar-Lhe e engrandecer o seu Nome. Isto é, a simplicidade de vida — sim, com toda a certeza, a simplicidade e 
discreção de vida de tanta gente anónima! — encerra muita beleza e santidade e é muito agradável aos olhos de Deus. E a santidade é precisamente isto: viver a vida de tal forma que Deus esteja contente connosco, ou, para usar a linguagem que antigamente se usava e ainda é válida: a santidade é fazer a vontade de Deus.
Disse-se que o importante é que saibamos agradar a Deus. Mas o que o texto do Apóstolo refere é «agradar em tudo a todos». É algo tão amplo e exigente que parece não fazer sentido, mas faz. Procurar agradar aos outros como refere o Apóstolo é procurar que todos encontrem a Deus, dEle nunca se separem e assim todos se salvem. Isto é sem dúvida procurar a glória de Deus esquecendo a nossa pessoal. Procurar ser santo é, portanto, procurar viver sempre com o coração imerso em Deus, procurando querer o que Ele quer, pondo cada dia mais amor em tudo o que vamos fazendo, até mesmo nas coisas simples e sem importância. Essa pitada de amor que se exige de nós há-de colocar-se ao serviço de todos, até mesmo daqueles que não nos agradam tanto, ou dos que nos pagarão com más palavras, ou ainda que vão malinterpretar o nosso desejo de bem servir com amor.
Deus não pede o impossível, ainda que o que fica dito atrás o pareça ser. A solução está em nos socorrermos humilde, constantemente e em confiança do Senhor. O projecto de santidade é árduo, mas se alguém pode ajudar a alcançar o objectivo é Deus, que em nós primeiro o acende! O que não podemos, Ele pode. É 
concerteza necessário empregar todo a nossa coragem, mas sem Ele nada podemos. Por essa razão, lá teremos de ir rezando e com o maço dando, isto é, implorando a ajuda de quem a pode dar: Deus!

[Chama do Carmo - 15 de Fevereiro de 2009]

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Filhos dum Deus esquecido (Valha-me Deus!)



Surpreendentemente — quem diria! —, somos filhos dum Deus esquecido. Não o sabendo, nós relacionamo-nos filialmente com um Deus Pai com problemas de memória. Valha-nos Deus!, é caso para dizer. Porém, a bem dizer, nós é que somos desmemoriados. Vamos falar de problemas de memória.
A primeira leitura deste Domingo (alguns versículos do capítulo 43 da profecia de Isaías) explicita de forma bem clara que a salvação é pura graça de Deus e não mérito humano. Os humanos — na leitura, Israel — esquecem-se com frequência de Deus e de invocar a sua força, logo estão falhos de méritos. Mas Deus, não. Por isso, Deus — que é um Deus de diálogo; poderá haver Deus fora do diálogo com o homem? — desafia-nos para um exercício de memória: quais são os nossos méritos? Se percorrermos o passado de Israel, por mais longínquo que ele seja, que bem fez ele? E nós? Aos olhos de Deus, nenhum. Há uma lista grande, sim. Mas de erros e de pecados. Por isso, a salvação que o profeta tão belamente anuncia como um renovo primaveril é algo que Israel não merece. É pura graça, é gratuidade. É novidade e surpresa! E portanto, muito para além do merecimento humano. O princípio da salvação e da renovação tem sempre a sua origem no perdão de Deus, e jamais nos méritos do povo, um povo esquecido das origens e das graças de Deus. Por essa razão, a salvação que o Profeta anuncia é uma salvação que Israel não merece! (Como haveria de merecê-la se tudo fez para esquecer Deus? Como poderia receber água da fonte se não sabia que havia fonte?) Essa salvação que o Profeta já antecipa é pura graça, novidade e surpresa que Israel não sabia esperar! (Aliás, como se há-de esperar uma coisa que não se sabe que existe?)
O princípio da libertação e da renovação encontra-se no perdão que Deus concede, e jamais na acumulação dos nossos méritos. (quem teria dinheiro para comprar a salvação?) Não foi esta a única vez que tal sucedeu na história de Israel. Mas assim é Deus, o nosso Deus; essa é a sua maneira de actuar. Ele apaga os nossos delitos e esquece os nossos pecados. Sim, Deus é muito esquecido. (Felismente!) Somos filhos dum Deus esquecido, com perda de memória, sempre pronto a começar de novo, sempre pronto a recomeçar a escrever numa folha completamente branca. Deus é Pai misericordioso e nunca um juiz ou fuinha rancoroso sempre pronto a registar as nossas faltas! E são tantas as nossas faltas, e são tantas as vezes em que nos sentimos mal. E logo Lhe pedimos perdão, e voltamos a pedir perdão, e continuamos a pedir perdão sem nos darmos conta que já nos perdoou a primeira vez e que continua a perdoar, e que se nos perdoou quem somos nós para não nos perdoarmos a nós mesmos? Quem somos nós... O bom Deus é esquecido. Porque não nos esquecemos nós do duro peso do remorso, para melhor nos lançarmos na aventura do seu amor? Tenha uma Quaresma renovadora e feliz.

[Chama do Carmo - 22 Fevereiro de 2009]

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Ao desmontar o presépio


O presépio não se faz só de imagens, mas também com silêncios e orações, contemplação e tradição, gestos, rituais, visitas e cânticos.
Segundo uma tradição, apoiada na melhor pedagogia e determinada pela liturgia cristã, a construção do presépio deve iniciar-se quatro domingos antes do Natal, que começa assim a ser antevisto desde longe, num oportuno contraponto espiritual à pressão comercial. A cada nova etapa a família e a comunidade cristã vão mergulhando neste mistério de luz, que vai franqueando todas as vidas, as enrijecidas na dureza dos anos e as ainda ternas na alvura dos sonhos. O Menino é obviamente o último a aparecer. Aliás, só aparece em cena na noite de Consoada.
Outra tradição propõe a montagem do presépio só no dia 24, promovendo os benefícios da surpresa e fazendo coincidir a celebração do mistério com a visibilidade plástica do mesmo.
Os pastores andam por ali, uns espantados com a revelação dos Anjos, outros em adoração e oferenda ao Menino. Aparecem ainda outras profissões não mencionadas nos Evangelhos, mas quem se atreve a afirmar que Ele não nasceu para todos?
Imprescindível mesmo são os três Reis Magos. Não adianta dizer que não eram reis nem magos, porque pelo menos eram sábios e de enorme coragem, generosidade e fé.
Há quem recomende que os Magos só cheguem ao presépio no dia de Reis; e há quem recomende que se faça um caminhinho e que eles sejam postos no seu início, e que dia a dia sejam movimentados até chegar à manjedoira no domingo da Epifania do Senhor.
(O Irmão Domingos, que faz presépios e adornos como quem faz homilias, disse-me no Sábado passado: «Vou mudar os Reis Magos!». Estranhado, fui espiá-lo do coro e vi que trocava os Magos a caminho pelos Magos em adoração. Esta solução é também muito bela e pedagógica, mas é mais cara. Ainda assim faltou o tal caminhinho, Irmão Domingos...)
Em algumas tradições acendem-se luzes e velas (podem incluir-se as da Coroa do Advento), e também se queima incenso como desejo de que a nossa vida Lhe seja perfumada.
Por fim, há uma data para desmontar o presépio, é no fim das festas do Natal que coincidem com a celebração da Festa do Baptismo do Senhor. (O que sucede neste Domingo.) Erram, portanto, os que o desmontam a 7 de Janeiro, quando não antes!
Desfeito o presépio deixa de ver-se o Menino deitado, mas pode introduzirr-se a ideia da fuga atribulada da Sagrada Família par ao Egipto, sob o terror de Herodes. De facto, em algumas regiões o presépio é substituído por algumas cenas da Fuga para o Egipto.
O desmontar do presépio é outra maneira de ir ao presépio e contemplar o Salvador. Olhando-o, como não ouvir o bater daquele coraçãozito que clama por um bater concorde? Ano após ano o presépio vai sendo montado, e o Menino mostrado. E eu? E eu que não sou capaz de acolher!
Sabemos que S. Francisco se referia ao corpo chamando-lhe «Irmão Burro». Creio ser porque a alma se propõe correr em frente e o corpo se revela frequentemente bem teimoso, bem burro! E como não olhar para o burro do presépio, quando se olha Redentor? Em que bela história participou! Como não meditaria naquele Menino visitado por pastores e reis, apesar de ter nascido num estábulo! Porque se deitaria na majedoira onde habitualmente comia? (Quem compreenderá os humanos!)
Uma noite acordara com um choro de criança (uma criança aqui?, pensou o burro). Depois vieram pastores e homens ricos com ricas roupas e muitos presentes proclamando maravilhas do Menino (e o burro, claro, espantado!). E o velho burro, remoçado, lá ia soprando calor e mais calor pelas ventas para O aquecer.
Numa manhã fria acordou estremunhado com um alarido popular daqueles que só há no Oriente: o Menino Jesus não estava ali, o Menino Jesus não estava ali, tinha partido! Enfim, nunca mais voltou a saber dEle. A burrice da sua vida ficou-se por ali, entre a cova, os montes e as courelas engelhadas e pobres. Nos momentos maus pensava na cara do Menino e nos sorrisos dos pais, e então enchia-se de força e recomeçava a caminhar.
Que a nossa vida seja igual.
Nas nossas casas e igrejas deixará de brilhar o presépio, mas no coração, eterna cova de Belém, estão o Menino, Maria e José prontos a deixar-se ver desde a rudeza dos caminhos da nossa vida.
Um ano feliz!
[Chama do Carmo -  11Janeiro09]

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Festividade do Menino Jesus de Praga


O Verbo fez-se carne e habitou entre nós (Jo 1:14)
No Domingo passado — Festa do Baptismo do Senhor — beijámos o Menino Jesus pela última vez. Este domingo, a espiritualidade da nossa Ordem convida-nos de novo a relançar o olhar para a infância de Jesus, com a celebração da festividade do Divino Menino Jesus de Praga, invocação e devoção muito querida da nossa família espiritual.
Jesus era verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus. É isso que confessamos quando rezamos o Credo. Isto é, o Verbo Filho de Deus ao incarnar assumiu completamente a humanidade e todas suas limitações que tal eleição supôs. Porque estávamos separados de Deus por causa do pecado, foi necessário que Deus Filho incarnasse na história para que pudéssemos regressar à inteira comunhão com Ele. Assim porque Jesus é Deus torna eficaz a sua obra realizada na Cruz, e porque é homem garante que os méritos da sua morte sejam aplicáveis a todos os humanos.
Jesus foi tão humano quanto divino; e se é certo que é fácil reconhecê-lo como Deus, também é certo que muitos hesitam ou sentem dificuldades em aceitá-lo como homem.
O Novo Testamento diz-nos que Jesus nasceu duma mulher, e não desceu simplesmente dos céus. Da Virgem Maria Jesus recebeu ascendência; e o mesmo se diga de José, que deu o nome ao Menino e lhe garantiu a paternidade legal.
Cresceu como qualquer criança, com debilidades e limitações, não era sobre--humano, teve fome e sede, canseiras e dores. Trabalhou na oficina ao lado de José; foi visto e tocado pelos que o rodearam, não era um fantasma nem um espírito, nem um sonho.
Teve sentimentos e emoções de alegria e de júbilo, tristeza e angústia, surpresa e indignação, festejava, comovia-se e chorava.
Porque homem não sabia tudo, mas possuía um conhecimento superior ao normal: ninguém como Ele proferiu palavras tão belas; ninguém como Ele percebia o que no intímo pensavam os amigos e inimigos. Sabia coisas sobre o passado, o presente e o futuro das pessoas.
Jesus foi uma pessoa singular, o humano mais humano dos humanos, o humano que é para nós sinal, referência e aspiração de toda a humanidade. Ele é Deus perfeito e homem perfeito, uma só pessoa, ainda que nos seja difícil compreender como Deus e homem estão unificados num único ser.
O Filho ao assumir forma humana adquire as qualidades humanas e continua sendo Deus. Quando São Paulo afirma que Ele se esvaziou da sua condição proclama apenas que Ele se esvazia da sua igualdade com Deus, não da condição divina. Em consequência, as suas acções não foram umas vezes humanas e outras divinas, foram sempre humanas e divinas.
Jesus é o perfeito humano, sem pecado e submisso ao Pai. É o perfeito Deus, em honra, majestade e poder, que assumiu a humanidade porque se compadecera do homem.
A devoção ao Menino Jesus de Praga funda-se precisamente neste baluarte, que radicalmente confessamos: Jesus era Deus e era homem. Era Jesus, salvador, e homem, menino nascido na gruta humilde de Belém. Foi aí que nasceu a devoção ao Menino. Foi bela e ternamente iniciada por Maria e José, seguida pelos anjos e pastores, continuada pelos Magos em representação de todos os povos até ao fim do mundo, até ao fim dos tempos. Quem alguma vez foi tocado por Jesus não pode deixar de ser atraído pela sua infância, embora mais frequentemente nos centremos na sua vida adulta, de anúncio salvador.
É justo que nos surpreendamos que os santos se encantem com este mistério imenso da incarnação do Verbo Filho de Deus, que depois cresceu e amadureceu no seio da família de Maria e José? Não. Foi exactamente isso que sucedeu com nossos pais S. João da Cruz e S. Teresa de Jesus. Foi no seio da nossa família carmelitana que nasceu a devoção ao Menino Jesus sob o título de Praga, por ter nascido no Convento do Carmo dessa cidade checa. Daqui se universalizou por todo o orbe cristão, como um tesouro comum.
A todos, como a irmãos queridos, Ele, Divino Reizinho, proclama: «Quanto mais me honrardes, mais Eu vos favorecerei!»
Seja! Assim seja! Deus seja louvado! Amen!

[Chama do Carmo - 18 janeiro 09]

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Vai chegar


Advento significa «vinda, chegada».
E obriga a vigiar e a esperar «o Senhor que veio, que vem e que virá.»
É preciso «sair ao seu encontro».

Vai chegar. vai chegar o quê?
Vai chegar
Começa o Advento do que vai chegar. Quatro domingos antes do Natal começamos, cada ano, a esperar. A espera torna-se a celebração, uma celebração de ânsia e de gozo e de espera.
Quem espera, desespera. Mas também antegoza, porque já começa a saborear por antecipação o momento da chegada e a alegria da comunhão nos tempos que hão-de trazer o Desejado.
Espera. Porque ainda não é tempo de ver!
Vai chegar. Logo, ainda não chegou!

Vai chegar o quê?
Quantas vezes ao chegarmos ainda não chegamos, porque demoramos a chegar. Dou um exemplo, quem ainda não disse pelo menos uma vez: «Ora, espera aí. Primeiro deixa-me aterrar». Sim, acontece-nos a maioria das vezes que não estamos onde estamos. Estamos ali, mas a cabeça anda muito além. Estamos no quarto, na sala ou no escritório, mas não dispensamos a televisão, o mp3, e dois telémoveis para controlar o marido, a mulher, os filhos, as sogras, os amigos, os clientes, os fornecedores e os trabalhadores. De facto, frequentemente não estamos onde está o nosso corpo. Andamos muito ao longe.
O Advento é um pedaço de tempo não muito longo que pretende ser uma ajuda para aterrarmos. De facto nenhum avião aterra sem uma pista bem sinalizada, a atenção dos pilotos e a colaboração da torre de controle.
Vai chegar. Mas vai chegar o quê?

Primeiro despertar
O Advento consiste em despertar de todas ensonadelas. Dizia São João da Cruz que uma ave presa a uma corda de navio ou a uma linha de coser está sempre presa. E quem está preso primeiro tem de saber que está preso, depois que pode libertar-se e por fim que pode caminhar, que pode voar. E voar de facto. São esses os trabalhos de quem está adormecido ou preso: despertar, libertar-se do sono e voar.
O Advento foi pensado e é celebrado como ajuda para despertar para a realidade. Quem está desperto e vigilante está atento, vive intensamente cada momento de espera, está presente, vivo e sóbrio.
Quem espera não mata o tempo, está em tensão, aguarda, alarga o coração, sabe que não se basta a si, que precisa de mais e por isso arruma a casa, prepara-se, torna-se sensível ao mistério de Deus, que, de facto, é do que aqui tratamos, porque o Advento de que falamos é o de Deus!
A verdade é que aguardamos sempre algo de muito extraordinário e de estrondoso. Andamos tão ensonados que só uma bomba nos acorda, só um crime horrendo ou uma balbúrdia das grandes que chegue a ser berrada em todos os meios de comunicação é que nos agita e estremece.
E Deus é tão discreto! Nasceu e nada buliu ou estremeceu. Nove meses antes o Anjo falara com a Mãe e nem José que trabalhava na divisão ao lado se apercebeu. Deus é tão discreto, tão sereno! É tão assim que não advertimos a Sua presença na pessoa que se cruza connosco e nos pede algo, ou na outra que passa ligeira como um sorriso que se desprende levemente como um obséquio. Deus vem de forma tão especialmente serena quando estamos abertos e despertos ao aparecer.

Deus vem a cada instante
O Advento serve para isso, para nos darmos conta disso: Deus vem a cada instante (e não estamos dispostos e despertos para O perceber e para O acolher).
O Advento não é um Natal antecipado. É a espera do Natal e é também aceitar ser esperado de Deus. Somos convocados para a alegria de esperar Deus a quem tanto amamos. Porém não somos só nós que esperamos: também Deus nos espera, pois somos tão valiosos para Ele!
Deus espera erguer-nos e que nos abramos para a vida e para o amor.
Tu és esperado por Deus!
Abre o teu coração e acorda para Deus que fez dele o lugar do Seu repouso. Abre as janelas da tua casa e põe nelas uma estrela, como sinal de que estás sereno, em Advento, à espera da Luz da luz.

(Chama do Carmo - 30 NOV 2008)

Por que tocam os sinos (do Carmo)?


Pronto, já está. Depois de alguns percalços (assim a memória perdurará mais!) e de muita competência (para que a dureza da tarefa fosse melhor de levar) lá se ergueram os novos sinos da nossa Igreja do Carmo, que voaram para o respectivo lugar como voam os pássaros para o ninho. Um, o de São João da Cruz, ficou virado para Darque e há-de ali fazer-se ouvir rompendo a largueza do rio; o outro, virou-se para a Abelheira a recordar-lhe que a colmeia é aqui.
Os sinos são voz. (Hoje não tanto como antes!) Mas ainda voz.
Como patronos dos novos sinos elegeram-se São João da Cruz, Fundador da nossa Ordem, e São Paulo, por ser este o ano da celebração do bimilenário do seu nascimento. Das inscrições com que os assinalamos, destacamos duas: o Escudo da Ordem — logo dos 390 anos do Convento — um trabalho do designer Manuel Felgueiras, que replica a cruz que encima a torre sineira da nossa Igreja do Carmo; e a mensagem retirada dos ensinamentos de um e outro Patrono.

— «Ó toque delicado,Verbo Filho de Deus Pai!»
No sino de São João da Cruz inscrevemos esta frase retirada do seu livro Chama de Amor Viva, a sua obra mais elaborada teologicamente e fruto da sua maturidade espiritual. Ao comentar a segunda estrofe o Santo exalta a potência e a delicadeza do toque de Deus, que só com o seu olhar consegue fazer tremer a Terra, mas que contudo, tem, para nós, um toque de suave delicadeza que engrandece e enobrece quem assim é tocado, até à sublime união que não consegue dizer-se nem dizer-se deve.
O toque do sino de São João da Cruz há-de, pois, recordar-nos que para todos Deus tem um toque que nem todos, lamentavelmente, sabem, saboreiam ou querem.

— «Não abandoneis a Igreja»
No sino de São Paulo inscrevemos esta frase retirada da Carta aos Hebreus. Este sino erguerá a sua voz neste tempo de deslace mais profundo, de anemia de compromisso, em que muitos se deixam escorrer, desanimados, pelo aconchego da corrente do desinteresse, ledamente enganados e embalados pelo convite a ir-se sem mais. Não abandonar a Igreja é não abandonar o rebanho de Cristo; é, ao contrário, entrar mais e mais, a fim de empreendermos a demanda do anúncio de termos um Pastor, pelo qual nada nos falta.
O som do nosso sino chama-nos à canseira da sementeira, ao empenho na casa da Igreja. Aqui há um coração comum, uma corresponsabilidade que nos anima a caminhar o mesmo caminho e com o mesmo ardor.
Os sinos convocam para reunir o Povo de Deus, as pedras vivas do seu templo do Senhor. Se as pedras não se dispõem como devem, não formam o que devem e logo a Igreja não acolhe, nem guia nem aconchega tão bem.
Soem, pois, os nossos sinos e chamem-nos, porque nós iremos.


(Chama do Carmo - 21 DEZ '08)

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Oração de fm de ano


Senhor Deus, magnânimo e santo,
senhor do tempo e da eternidade,
vosso é o hoje e o amanhã, o passado e o futuro.

Ao findar mais um ano quero dizer-Vos obrigado,
por tudo aquilo que recebi de Vós.
Obrigado pela vida, pela água, pela luz e pelo amor;
pelas flores, pelo fogo, pelo ar e pelo sol,
pela fé, pela Igreja, pela alegria e pela dor,
pelo que foi possível e pelo que não foi.

Ofereço-Vos tudo o que fiz neste ano:
o trabalho que pude realizar,
as coisas que passaram pelas minhas mãos
e o que com elas, pude construir.

Apresento-Vos todas as pessoas que amei e servi
ao longo deste ano.
As amizades novas e os amores antigos.
Apresento-Vos os que estão perto de mim
e os que pude ajudar.
Apresento-Vos as pessoas com quem partilhei
a dor, o trabalho, a vida, a fé e a alegria.

Ao findar o ano, Senhor,
também Vos quero pedir perdão.
Perdão pelo tempo perdido inutilmente,
pelo dinheiro mal gasto, pela palavra inútil,
pelos sonhos e pensamentos ocos.
Perdão pelas obras vazias
e pelo trabalho apressado e mal feito.
Perdão pelo meu viver frio e sem entusiasmo.
Perdão pela oração distraída,
pela que aos poucos fui adiando
e que agora venho humildemente apresentar-Vos.


Por todos meus esquecimentos, silêncios
e descuidos, novamente Vos peço perdão, Senhor.

Nos próximos dias começarei um Novo Ano,
com sonhos e anseios novos.
Páro por isso, a minha vida diante do calendário
que ainda não se iniciou e apresento-Vos um a um,

todos esses dias que somente a Vossa Sabedoria
sabe se chegarei a viver.

Hoje, quase ao terminar este ano de 2008,
eu Vos peço, ó Senhor do tempo e da eternidade,
para mim, para a minha família e amigos,
a paz e a alegria, a fortaleza e a prudência,
a lucidez, a serenidade e a sabedoria.

Senhor, Deus bom,
quero viver cada dia do novo ano
com optimismo e bondade,
levando a toda parte um coração leal,
compreensivo e cheio de paz.


Fechai os meus ouvidos a tudo o que é falso
e os meus lábios às palavras mentirosas,
egoístas ou que magoem.
Abri, Senhor, o meu ser a tudo o que é bom e santo.
Que o meu espírito seja cumulado de bênçãos
para que as derrame por onde passar.
Enchei, Senhor, os meus amigos de sabedoria e de paz,
e que nossa amizade dure para sempre em nossos corações.
Enchei-me de bondade e de alegria
para que todas as pessoas com quem me encontrar
possam descobrir em mim,
um pouco da Vossa beleza e bondade.
Concedei-nos um ano feliz
e ensinai-nos a repartir apaixonadamente
a alegria da fraternidade.
Amen!

[Chama do Carmo - 28DEZ08]

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Talvez um dia o gelo degele!


Evocação feliz (e nostálgica) do meu Seminário em tempos de tremor por causa do frio.Ensinaram-me que juridicamente na Igreja uma instituição só morre cem anos depois de ter desaparecido o último a vestir-lhe o hábito. Talvez seja, que para tudo tem de existir regras que assinalem o caminho por onde trilhar o entendimento das coisas. Enfim, morrer cem anos depois de morrer o último é um tempo suficientemente longo para provar que se não morre exactamente quando se morre!
Posto a rezar a semana dos Seminários, isto é, convocado que fui, que fomos, para orar intensamente durante uma semana pelas vocações sacerdotais, ou melhor dito ainda, para rezar pelo Seminário, coração da Diocese, dei por mim a pensar que há corações e corações!
Que o Seminário é o coração da Diocese é uma maneira de dizer que sem ele, ou com ele enfermo e engelhado, não existe vida, calor e continuidade.
Dei, pois, por mim a pensar que há corações fortes e corações fracos. Os corações fortes são bons, generosos, saudáveis, atléticos, capazes, audazes. Os corações engelhados são fracos, débeis, sem energia, sem capacidade de explosão, sem ánima, desvitalizados, acantonados, com os pés ao sol do Inverno.
Onde estamos, onde está, como está a Igreja portuguesa?
Estamos mal, estamos acabrunhados, encolhidos e sem chispa, sem fogo no coração. Como o sangue já não chega às extremidades agradecemos ao Inverno que se compadeça de nós e nos aqueça com fogachos de promessas e nos traga umas réstias de esperança que nos vão aquecendo os corpos que já mal mexem.
Ah, meu Deus que mal andamos e como nos sentimos serenos e consolados! Que eu saiba só um Seminário em Portugal é uma fornalha ardente de promessas. Os outros são braseiros latentes sob uma dura capa de cinza fria. Alguns acabaram de morrer e o calor ainda está nas paredes do corpo. Outros já nem isso, estão frios. Há gelo na suas salas, gelo nos recreios, gelo nos refeitórios, gabinetes, dormitórios, nas capelas. Tanto gelo assim até ajuda a conservar, mas todos sabemos que não há nada como a comida fresca, na hora!
Falo do (pouco) que sei.
Sei que em 1980 cheguei com minha mãe à Estação de Viana com duas malas. Sei que passei a ponte, de pé, na carruagem, com o nariz no vidro, virado para o lado onde sabia que apareceria o Seminário. Depois, quando dentro do táxi pedi para me levarem ao Seminário levaram-me para outro. (Para a minha mãe era igual, mas eu sabia que era este e não outro!) Ao instalar-me aqui aos 12 anos e a 200 km de casa, dei-me conta que não estava sozinho: éramos uns 70! Sim, uns setenta rapazes mas seguramente mais de cinquenta! Aquilo era uma festa! O Seminário era uma festa!
Foi aqui que eu cresci durante quatro anos. As calças rasguei-as todas por causa do futebol, mas frio jamais tive!
Quando em Maio deste ano me foram buscar sabia para onde vinha, porque ainda guardo nos ouvidos os gritos e os pulos de índios e cóbois que dávamos. Agora, porém, já não há mais gritos, já não há mais corridas! Os matraquilhos foram despromovidos para as masmorras do fundo! A sala de estudo chama-se agora sala 48! (48? Raio de nome. É que nem existe a 47 nem a 49!) Ainda há mobiliário do tempo do Seminário, mas já não damos saltos para distribuir pelos cacifos mais altos as cuecas e as camisas, as toalhas e os lençóis!
Ah! Seminário Missionário Carmelitano, que morreste!
Quem nos espantará o frio que já nos tolhe?
Quem nos aquecerá os ossos que começam a ser roídos pelas implacáveis artroses?
(Acaba de me ligar o Tomás, de Penafiel — tem no nome as mesmas iniciais que eu! Soube que estou aqui e quer passar por cá. Pergunta-me como está o Seminário. Está frio, digo-lhe. Não tem meninos. Ah, mas eu tenho um, contesta-me alegre. Deviam ser três, levou como resposta. Um para ti e dois para Deus, para que quanto mais o coração batesse tanto menos se morresse de frio.)
Um dia os Seminários acabarão. Falta saber se por excesso de frio, se de calor. Entretanto rezemos.
Talvez o gelo degele!

[Chama do Carmo - 16 Nov 2008]

No fim do ano liturgico o convite é sério


 
No fim do ano litúrgico o convite é sério: recorda-nos que fomos criados para amar e sugere que avaliemos a vida cristã para amar melhor.
FOMOS CRIADOS POR AMOR E PARA O AMOR

O último Domingo do ano cristão
Hoje é o último Domingo do ano cristão. O próximo é de Advento, é já um novo ano, um novo ciclo da vida da Igreja.
É próprio destes dias que a Palavra de Deus nos vá falando ao coração com palavras que apenas pretendem despertar-nos da dormência e do aconchego em que por vezes nos anestesiamos.
Nós não podemos viver como os homens e mulheres, que não se encontraram com o Vivo, não podemos viver como se não nos encontrássemos, semana após semana, em comunidade, com o Senhor da Vida, Aquele que fundamenta toda a alegria.
O ano cristão vai terminando e a liturgia convida-nos a reflectir, porque todos temos um fim e depois do fim haveremos de ser julgados sobre o amor que pusemos em prática.

Oportunidades mais
Ao olharmos para trás — infelizmente só quando olhamos para trás é que tal é tão visível! — percebemos as oportunidades com que fomos sendo beneficiados para aprender mais, crescer mais, rezarmos mais, viver melhor com e como Jesus!
Só quando se chega ao fim é que se vê o caminho percorrido e se tem noção completa dos desvios e atrasos. Sirvam, portanto, estes dias para agradecer e louvar o Senhor. Como foi belo preparar o seu Natal, cantar junto do presépio, ter acompanhado Jesus na juventude, na pregação do Reino e junto à Cruz.
Como vencedor Ele ressuscitou vitorioso e foi assim que, hora a hora, domingo a domingo, nos chamou ao convívio conSigo para partilharmos a alegria da sua presença gloriosa com todos os irmãos e irmãs.
Tivemos tantas oportunidades mais durante o ano litúrgico findo! Que fizemos delas?

Deitar contas à vida
A vida cristã vivida conscientemente obriga-nos a deitar contas à vida. Que fizemos nós das oportunidades mais, de vida mais, que Deus no deu para vivermos?
Como nos apresentaremos diante d’Ele: de mãos vazias?, ou com elas doridas de tanto se vergarem e cuidarem dos irmãos fracos e pobres? Quando cresceremos?, ou entramos em déficit de fé e de prática religiosa? O nosso coração pulsa jovem, forte e renovado?, ou anda fechado em si e encolhido como se temera gastar-se ou ferir-se por se abrir a quem dele precisa?
Deitar contas à vida não deve ser um exercício depressivo, mas um acto de fé que só é válido se feito em confiança.

Um rei que faz justiça
O Evangelho de hoje, Solenidade de Cristo Rei, fala-nos da convocatória universal para nos apresentarmos perante o Rei-Messias, que, sentado no trono da sua glória, realizará um juízo universal ao qual serão chamados todos os seres humanos, a fim de ouvirem a sentença final. Final e definitiva.
O que estará a juízo — contrariamente aos outros juízos — não são os nossos erros ou crimes, mas o bem realizado ou omitido, e a caridade negada ao necessitado: alimento, água, acolhimento, companhia, roupa.
No final, avisa Jesus, seremos examinados sobre o amor, o amor a Deus que se expressa na resposta às necessidades básicas dos mais pequeninos e frágeis. As obras de caridade são a visibilidade do amor que devemos ter, e que ou se tem ou não se tem, porque ou se ama ou não se ama.
Quem se nega a amar fechando o coração ao próximo e por isso mesmo a Deus, quem se aconchega no seu egoísmo e na omissão e se fecha na indiferença às dores alheias e não faz o bem que podia fazer, esse fecha‑se a Deus, separa-se dEle, e será apartado do Seu amor e não participará no reino que lhe foi preparado.

Deus é amor
Fomos criados por amor e para o amor. O imenso amor que Deus nos tem impede-o de querer que alguém se perca. Deus tanto nos ama que se fez um de nós, para nos ensinar o caminho do amor ao próximo e para carregar sobre Si o nosso pecado. Deus tudo fez para que tenhamos vida, e vida em abundância e para toda a eternidade.
No fim do ano litúrgico o convite é sério: recorda-nos que fomos criados para amar e sugere que avaliemos a nossa vida cristã para amar melhor.

[Chama do Carmo- 23 NOV 2008]

Ninguém caminhe sozinho!


Caminhemos de bem em melhor. Mas que ninguém caminhe sozinho. Eis aqui, Senhor, o meu irmão. Ei-lo, porque é teu!
Homilia da missa de compromisso na abertura do ano pastoral da nossa comunidade do Carmo
Ninguém caminhe sozinho!


Meus irmãos e minhas irmãs:
Iniciamos desta forma séria mas também amena e orante, o Ano Pastoral desta Comunidade de Nossa Senhora do Carmo de Viana do Castelo. À entrada da igreja encontra-se uma Folha — a Chama do Carmo — que ninguém deveria sair sem levar. É uma folhinha que, se Deus quiser, vai aparecer Domingo a Domingo. Entrai na igreja, dobrai-a e metei-a ao bolso. É para lerdes em vossas casas. É um apoio para durante a semana continuarmos em comunhão.
Haveis de reparar que na frente da Chama está uma procissão, um povo a caminhar. A escolha deste desenho foi intencional: quero que seja a marca d’água do nosso gosto de família do Carmo. Somos um povo a caminho, um povo peregrino que há-de caminhar sempre de bem em melhor. Já o disse esta tarde: para mim não é suficiente caminhar bem; para mim não é suficiente caminhar melhor; para mim é necessário e urgente pensar sempre, como disse santa Teresa de Jesus, em caminhar «de bem para melhor».
Vou ajudar-vos e pedir-vos que sejais sempre melhores! Coloquei esta frase no fronstispício da Chama do Carmo, mas tenho outra que quero guardem no coração, que é: Ninguém deve caminhar sozinho!
Vim para Viana do Castelo caminhar juntamente com o meu professor Pe Caetano, do meu professor Pe Carlos, do Irmão Domingos e do Pe Maciel, porque ninguém deve caminhar sozinho. Estes que nomeei somos os cinco religiosos carmelitas da comunidade de Nossa Senhora do Carmo de Viana do Castelo. Vim para aqui convencido de que só existe uma maneira válida de caminhar: caminhar em família, caminhando ao ritmo do mais pequenino, como a Patrícia.
Perguntaram na reunião de lançamento do Ano Pastoral: onde estão os jovens? Por que é que nas eucaristias não há jovens? — Talvez corramos muito, talvez não saibamos caminhar com eles. Talvez os deixemos a caminhar sozinhos. Comprometo-me a caminhar convosco: Não quero que nenhum de vós, meus irmãos Carmelitas, religiosos ou leigos, caminhe sozinho. Não quero que um de vós que seja caminhe sozinho! Subimos a este templo, estamos aqui, rezamos juntos nesta igreja, para nos animarmos a caminhar juntos, em comunidade!
Vejo nesta assembleia pelo menos um jovem, que aqui entrou pela primeira vez para celebrar eucaristia. Dá-me uma grande alegria! Mas até esse não quero que caminhe jamais sozinho. Porém, não queiramos ter a ilusão de ver as igrejas cheias se depois, durante a semana, caminhamos sozinhos!
O compromisso que juntos acabamos de assumir — o de servir esta comunidade de Nossa Senhora do Carmo de Viana do Castelo — é o compromisso de nunca jamais caminharmos sozinhos!
Seja qual seja a tarefa que nos corresponda na Comunidade (ainda que seja a da sempre discreta oração) façamo-la também por aqueles que não caminham connosco, por aqueles cujos pés não conseguem acompanhar-nos ou se desviam de nós. Também eles têm de caminhar como povo, embora, talvez, precisem mais, por agora, que celebremos a Eucaristia, ouçamos e comungue-mos a Deus e nela os lembremos a eles.
Os carvões quando dispersos, quando separados uns dos outros deixam de ser fogueira, deixam de aquecer, deixam de animar, esmorecem, ficam frios, cinza fria, sem vida. Ninguém, caríssimos irmãos, dos que ouvimos esta homilia e celebra-mos esta Eucaristia de Compromisso, pode deixar que alguém caminhe sozinho: ao menos lembremo-nos deles na nossa oração pessoal!
Segunda palavra que quero partilhar convosco: há uma pergunta na Bíblia que me inquieta, e que nós distraidamente passamos por ela sem dela nos apercebermos, talvez por estar quase no princípio. Ali, quase no princípio da Bíblia, narra-se que dois irmãos se pegaram, ou melhor um matou o outro. Depois, perguntou Deus ao irmão homicida: Onde está o teu irmão? E ele logo contestou: —Oh! Sei lá onde está o meu irmão! Eu não ando a guardar o meu irmão!
Nesta tarde em que iniciamos oficialmente o nosso Ano Pastoral, nós, irmãos, aqueles a quem foi confiado o cuidado de bem cuidar desta Igreja do Carmo — de bem tratar, assear, ler, cantar, zelar, servir —, nós, os que neste dia aqui nos reunimos como família cristã e carmelita, haveremos de responder em primeiro lugar à sua pergunta.
— Onde está o teu irmão? Claro que não matamos! Credo! Mas no coração de cada um de nós, tem de existir a vontade de responder ao que o Senhor pergunta: Em que sítio e em que situação andam os meus irmãos?
E pegando no Evangelho de hoje temos de sentir a urgência de responder, que a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Mas, cuidado! Não julguemos salvar-nos fugindo ou omitindo a pergunta. Porque só são válidas as respostas, isto é, só seremos salvos e verdadeiramente ressuscitados quando todos se salvarem, até aquele que hoje entrou pela primeira vez nesta igreja, para celebrar eucaristia. Só alcançaremos a plenitude quando todos estiverem salvos. Ninguém pense salvar a pele se não salvar a do irmão!
Onde esta o teu irmão? Não sabes? Então, vai trabalhar, vai procurá-lo, vai buscá-lo. Eu vim, Senhor, para trabalhar; eu vim para procurar exactamente aquele que falta e não os outros noventa e nove que já se saciam à tua mesa! Senhor — haveremos de dizer-Lhe: Deste-me um irmão por irmão, aqui está. Eu rezei por ele, trabalhei por ele, procurei-o, encontrei-o, aqui está, entrego-to porque é teu!
Eis-nos aqui, irmãs e irmãos, para nos entregar-mos ao cuidado amoroso uns dos outros, para trabalharmos afincadamente durante um ano, a fim de dar a Deus o que é de Deus e ao mundo o que é do mundo. A fim de fazer a Deus a justiça devida: dar-Lhe o filho que Lhe falta!
Não caminhemos sozinhos, não caminhemos despreocupados das situações e das vidas dos nossos irmãos, por que Deus assim nos pede e exige: que cada um cuide do irmão com o desvelo do Seu coração e o entregue à Sua misericórdia e ao Seu amor divinos.
Muito obrigado. Assim seja!

[Chama do Carmo –  26 Out 08]