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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Reis Magos, na verdade rainhas de mãos vazias

Este não será um texto sobre reis magos, mas sobre rainhas que até são bem plebeias. Plebeias, mas sábias. Daquelas cujo coração é imenso e com muitas janelas por onde a luz da Estrela do Natal possa entrar.

Rufina
Chama-se leão ou tigre, já não lembro bem. Consta por aí que ninguém na selva da cidade o atura. Já não há alcatraz que o encerre, jaula que o detenha. A estatura impõe respeito, a brutalidade medo. Tem por companheiras duas raparigas, a heroína e uma navalha. Conhece bem todos os seus direitos sociais, que faz valer e ouvir ou com urros ou com rugidos bem para lá da outra margem do rio. Sobe ou acede a todos os palcos onde possa fazê-los valer. Na verdade, parece que já não tem direitos. Ainda que tenha, como humano que é. Mas como só arroga direitos, quem lhos pode creditar quando não vela nem cuida de nenhum dos seus deveres?
Chama-se leão ou tigre, já não lembro bem. Se não há selva ele trata que exista porque assim reina melhor. Se não há ordem, ele não a quer porque assim se amanha melhor. Por alguma razão leva nome de predador. E tem de fazer jus ao nome. E faz. A preceito e com mérito.
Até as sentinelas fogem dele ou o ignoram ou viram a cara como se não quisessem testemunhar as travessuras de miúdo traquina. Como é ou foi declarado inimputável passam por ele como se ele não passasse por ali. Sempre que pode — e pode sempre! — atazana Rufina, a técnica social que o atende. Atazana? Atazana é favor. Assusta, persegue, chantageia e ameaça. É eficaz nas ameaças. A primeira e sempre renovada consta da seguinte declaração: — Cuidadinho, que eu sei qual é a escola da tua filha!
É preciso ser-se rainha, corajosa, ainda que de mãos vazias, para todos os dias cruzar a selva e franquear a porta onde à socapa acabará por entrar o leão ou o tigre não sei bem, que volta e meia ele entra sorrateiro como qual quer felídeo de porte que se acerca do bebedouro para intimidar a arraia miúda. Rufina anda com o coração nas mãos, uma depressão castradora e lágrimas que esconde em duas represas.
É a minha primeira rainha que eu vou colocar no presépio, com a filha ao colo, bem juntinho de Jesus menino.

Judite
Chama-se filho, simplesmente filho. Recuso-me a dizer o nome dele. Filho é sempre filho, porque não há entranhas de mãe que esqueçam a criatura que nelas ganhou corpo e alma. Judite é velha e cheira mal. É velha e escura. Tão escura de tão indefesa. De tão solitária. O filho que as entranhas exangues já não renegam visita-a pontualmente, tão pontual que as visitas saberiam a manteiga e marmelada se fosse um filho a visitar uma mãe. Roído pela droga o Filho espia a mãe e sempre que ela recebe o vale da pensão aparece para o recolher. É selectivo nas visitas. A casa foi plantada no cimo dum morro com muitas escadas para descer e outras tantas para subir, pelo que quando o filho chega a mãe não tem nem tempo nem fôlego para esconder o dinheiro. E ainda que o escondesse ele moía-lhe o corpo como uma mó mói o milho. Ela sabe disso, porque conheceu bem as antigas ribeiras do Minho e os seus moinhos.
O filho chega sempre a horas certas, como se fora um relógio suíço. E com irónica delicadeza extorque o contributo mensal que a mãe não nega. E depois conclui a obra com uma assinatura de truz: despeja o bacio na cabeça da mãe.
Para o mês que inaugura o ano ela já tem uma faca. A faca é para cortar. Ela cortará ou as goelas dele ou o ventre dela. Mas eu vou levá-la ao presépio como se fora uma rainha para eu e o Menino lavarmos o bacio.

Soledade
Soledade é castelhana. Um velho roble castelhano. Quase bíblico. É a última do clã. É rija. Sempre foi rija. Parece promessa de Deus ser tão velha e a última a morrer. Morrerá em terra estrangeira por muito que se diga que somos hermanos. Não somos. Ela diz que há um risco que nos separa e algumas veias que nos unem. Mas isso não chega para fazer irmãos, confirma o roble.
Ela é velha, estrangeira, a última. Só. Solitária. Como um altivo carvalho no meio da meseta imensa de neve.
Soledade sabe que já se imprimiu a agenda onde se há-de assinalar o dia em que a impiedosa e fria tempestade finalmente derrubará sem custo o carcomido tronco. Mas não é isso que lhe dói, não é disso que se queixa. O seu queixume é dum gume afiado que ela diz, gelado, na primeira pessoa. Assim: Meu pai morreu nos meus braços e no berço dos meus braços morreu minha mãe. Chorei como corresponde a uma filha chorar a morte dos pais.
(Mas nada se compara à morte fria do filho único que aceitou gerar. Por causa da dureza da morte prematura o corpo não lhe gerou mais nenhum, nem podia porque ela embalou o bébé até que a carne fria do filho se recusou a aquecer-se colada à sua.)
Em terra estranha e em meus braços morreu minha irmã, mais velha e mordida pela demência, que a visitou acolitada por Parkinson e Alzheimer. E a meus braços, qual batel, regressou das imensas lonjuras do mar meu luso marido, para morrer em calmo porto de abrigo.
Sabe o que me dói, pergunta-me desamparada? Dói-me que já não restem braços onde no fim, depois da tempestade, acomode a cabeça ao morrer. Lá terá de ser na neve fria.
Sim, também eu levarei Soledade, a nobre rainha castelhana, ao presépio. Estou certo que ali, ao menos ali, não lhe faltarão uns bracinhos.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

cagareucarmelita.blogspot.com

Recebi um SOS. Era dum blog bébé. Pediam-me uma interpelação sobre o Advento. Que não cansasse. Que interpelasse. Não sei se consegui; foi este:

Eu empanturro-me, tu empanturras-te. Para quê acordar?
Caro amigo, conta comigo para agitar águas, desconcertar consciências, buscar caminhos, construir pontes, erguer o olhar. Pedes-me um texto (curto) sobre o Advento e a perspectiva da nossa Igreja. Aí vai. Premissa: o tempo foge e acaba; a coroa do tempo não é o fim mas a plenitude, sem a qual não faria sentido viver acordado.
Ora, então. Para que servirá o Advento se não para (re)partir em caminhada de forma ágil e desperta? O tempo eclesial de Advento — pouco mais de três semanas — tem função de arauto e de alerta: o tempo chega ao fim, acorda antes que chegue! E como só um é Senhor, é Ele o Último porque foi também o Primeiro. Logo, desperta!, diz a Igreja fundada na Palavra, para ires sem medo ao Seu encontro.
Mas: porque são tão poucos os que ouvem o arauto? Porque são tão poucos os que se fazem ao caminho? A resposta é simples: porque a maioria cabeceia ou está embriagada. São palavras de Jesus: «Tende cuidado convosco: que os vossos corações não se tornem pesados por causa da vida libertina, da embriaguez e das preocupações da vida.»
Está a chegar o Menino do Natal. A quem poderia meter medo um menino? Pois, a ninguém. Mas a maioria não saberá recebê-lo. Porque somarão vinho ao vinho, whisky ao whisky e comeres aos comeres. Porque somarão dias aos dias como se não houvera amanhã, nem valesse a pena viver uma vida que não fosse para ser-se livre e fazer-se o que se quer. Porque se afogarão em preocupações ainda que justas e outras que visam o mais e maior: mais ganhos para acrescentar mais ao maior penacho que já se tem.
Celebrar e festejar também são verbos cristãos. Mas, ai de nós, quando o coração se torna pesado, opresso e angustiado porque as preocupações são uma teia tal que não vemos a aurora despontar no horizonte.
É Advento. Quem se propõe caminhar ao encontro definitivo com o Senhor deve ir ligeiro, sem pesos desnecessários que só amargam a vida e peiam a caminhada.
O Senhor vem. Encontrar-me-ei com Ele. Como O encararei: desentendido do mundo porque entorpecido e preocupado comigo, ou pastoreando o mundo levando-o ao encontro definitivo com o seu Senhor?

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Que Deus nos oiça!

Meu texto de apresentação do livro Que Deus nos oiça!, que compila alguns textos do Boletim Chama Viva do Carmo (de Aveiro) da autoria do Frei Rui Fernandes Rodrigues, por ocasião do XXV aniversário do seu sacerdócio.

O Frei Rui foi aluno do Seminário do Menino Jesus e eu também. Ele foi dos primeiros, eu dos últimos. Ele foi o primeiro sacerdote daquele Seminário, eu fui o último. E entre nós dois não houve mais nenhum. Isso é um laço que nos une sem ninguém a intrometer-se. É verdade que isso não é mais que isso, e nem por isso nos constitui em luminares especiais, foi, simplesmente, a história que assim quis. Sem mais. Ainda assim é uma singularidade que nos aproxima.
No próximo dia 2 de Setembro o Frei Rui cumpre o jubileu dos 25 anos de Ordenação Sacerdotal. Vinte e cinco anos são muitos dias, como é fácil de entender. Quem os celebra costuma dizer: como o corre o tempo, como é tão veloz, como passam rápido os anos! Julgo que o Frei Rui também sofrerá desse mesmo achaque e comungará desse espanto. Se não erro, vinte dos vinte e cinco anos de vida sacerdotal foram passados na Comunidade do Carmo de Aveiro, pelo que já merece um nome como Frei Rui de São José de Aveiro. Rui, de Baptismo; São José, de religioso carmelita; de Aveiro, por ter consagrado a sua vida sacerdotal quase inteiramente a essa terra de céu e de sal.
Foi com muito agrado que recebi do seu Superior, Frei Silvino, o pedido para fazer esta compilação de textos do nosso confrade Frei Rui, colaborando assim na homenagem com que a Comunidade do Carmo aveirense o quer honrar. Quase nem seria preciso pedir! Logo me lembrei dos textos da Chama do Carmo que ele pontualmente foi publicando desde fins de 1991 a meados de 2000. Dez anos, portanto! Porque lhe sucedi na tarefa, posso testemunhar com simplicidade, que a tarefa é digna da maior admiração e reconhecimento. Sei, sinceramente, do que falo. Publicar semanalmente um boletim, ainda que em formato desdobrável A4, é de respeito. E pelo que pude perceber raras foram as intrusões ou colaborações! Sim, publicar, Domingo após Domingo, um texto com o sabor próprio de cada Domingo, que é sempre diferente – diga-se de passagem! – é uma tarefa para poucos. Colocar semanalmente nas mãos dos fiéis que sobem ao Carmo um texto que vinque determinado problema moral, que esclareça uma questão, que explique um versículo do Evangelho, que centre na espiritualidade daquele Tempo Forte, que evidencie o pensar do Magistério ou sobressalte um pormenor do Carmelitanismo que o habita não é de todo fácil. (Aqui aceito que foi melhor e mais variado que eu, que, aliás, não pretendi seguir exactamente o mesmo rumo.)
Em 1994, no regresso do Verão, ao retomar a edição da Chama, escreveu: «Na sequência dos anos anteriores pretendemos que a nossa folhinha seja um elo de ligação com os fiéis que frequentam a nossa Igreja. Tentaremos fazer dela um meio para transmitir o que vai acontecendo na nossa comunidade, lembraremos os nossos Santos, daremos a conhecer os acontecimentos da Igreja, tentaremos fazer catequese e reflexão e, naturalmente, viver a nossa fé ao ritmo da Liturgia. Estas são as nossas pretensões, e embora pequenas, pensamos que poder-nos-ão ajudar a crescer na nossa vida cristã.»
Não concordo contigo, Frei Rui. Não são de todo umas pretensões pequenas como dizes, mas concretizações trabalhosas, justas, equilibradas e conseguidas. O povo do Carmo de Aveiro merece o teu empenho. E teve e tem tido a possibilidade de antes das Eucaristias ou no remanso do lar, à lareira ou numa hora mais disponível, poder aceder a uma informação certa e certeira, a uma delicada pérola de espiritualidade carmelitana, a uma saborosa pitada de humor.
Eu sou dos que pensam que em Portugal falta um periódico de pensamento Católico. Não me preocupam nem sei gizar o conceito e os termos. Sei sim que a aparecer, ele jamais ensombrará a existência destas humildes folhas dominicais que brotam por aqui e por ali, alimentando o pensamento, a reflexão, a oração, o gosto e a vivência litúrgico-catequética de tantos fiéis. Eu sei que a Chama Viva do Carmo é muito lida em Aveiro. Sei de pessoas que a guardam como se fossem memórias de família. E fazem bem, por que o são. Também penso que dentro de alguns anos quando se quiser mergulhar na história recente desta Comunidade se terá que compulsar o seu boletim, que em boa hora apareceu. Estas folhinhas humildes e que vão sendo imensas são possibilidades reais de oxigenar a Igreja, de a revitalizar e animar. Que jamais desapareçam tais folhinhas, em razão do enorme bem que nos fazem. Se um qualquer furacão as arrancasse todas, estou certo que a Árvore sofreria bastante.
Sou dos que quando visitam uma igreja repousa junto do Sacrário e traz para casa a bendita folhinha se a há. Por ela fico a conhecer imenso daquela Comunidade irmã. Por aquilo que reflecte e informa entrevê-se a vitalidade, os sonhos, os espantos, o feito e o por fazer. Longa vida, portanto, para a Chama Viva do Carmo da cidade de Aveiro!
(E se alguém duvida da eficácia e do esforço que supõe a edição dum boletim tão singelo, proponho-lhe um desafio: faça um blog – um folhinha cibernética, digamos – e proponha-se editar, isto é, postar, uma reflexão semanalmente. Verá que não é fácil, e dificilmente fará melhor que o Frei Rui! E apreciará certamente melhor o seu trabalho.)
Está, pois, o Frei Rui de parabéns. Duplamente de parabéns. E eu, segundo sacerdote do Seminário do Menino Jesus parabenizo-o como sacerdote. E parabenizo-o como colega no sofrimento de dar à luz uma Chama semanal. Com alegria daqui o saúdo: estás, mesmo de parabéns, Frei Rui! Longa vida para ti e para a Chama Viva do Carmo.
Há coisas que o andar da vida traz, só o caminhar da vida nos traz. No caso do Frei Rui foi o humor. É ele quem o confirma. Este bom companheiro sabe contar anedotas. (E rir-se de si também!) Também é certo que às vezes se ri mais ele que nós, mas não há nisso nenhum mal e até muito bem: sobressai a autoconfiança no que o faz rir. Creio que a costela minhota e a outra meio galega que me parece que tem (ou será vasca?) fizeram brotar o seu lado bem disposto na vida da Comunidade e na Chama. Sim a Chama também tem humor. Cito ao acaso alguns títulos (quem publica sabe como é importante cativar o leitor desde o início…): «Procuram-se pastores», «Saltando sobre os montes», «Aprender a voar com S. Teresa», «Um diabinho no Céu»! Bastam estes títulos bem dispostos para se ficar com gosto de ir ler os textos. Títulos assim eu aprecio-os imenso, porque me aguçam o apetite de ler o recheio do texto. Sim, creio que o humor, digamos, carmelitano, também perpassa pela Chama do Frei Rui. E estes títulos foram escolhidos apenas dentre as Chamas seleccionadas e editadas, que nem todas aqui se publicaram. Coube-me a responsabilidade de escolher o que se editava e o que não. Posto perante o dilema de não poder editar tudo (seria um tomo considerável!) usei basicamente o crivo do interesse histórico, da proximidade às tradições aveirenses e as referências às raízes espirituais do Carmo. Eis a razão porque aparecerão parecenças, repetições, semelhanças, clonagem. É o risco de quem publica durante tantos anos aferrado à linha editorial que acima se sublinhou. Ainda assim, e porque a história, por exemplo, não pode reescrever-se, creio que é justo ressaltar a fidelidade ao critério e o esforço de recriar, inovar, evitar a repetição, não cansar. É certo que se poderia evitar a repetição de temáticas, mas, repetindo-as, creio sublinhar a dignidade do esforço de refazer a narrativa duma devoção, dum momento histórico, dum pilar espiritual. Isso é também digno de registo.
Falta falar do título. O mais óbvio seria o do boletim, Chama Viva do Carmo. Mas nunca gostei muito de fazer cedências às obviedades. Propus-me assim, escolher uma expressão ou título do Autor. Fui lendo e fui compilando. Surgiram muitos. Na hora inevitável da eleição, que sempre chega, elegi uma expressão que saiu publicada no fim da reflexão dedicada ao Ecumenismo, da Chama 123 de 19 de Janeiro de 1992, quase logo ao início: «Que Deus nos oiça!»
Ora, espanto-me eu, atrevo-me eu, o homem tem coragem! Claro que o pedido tem outro rumo, mas, enviesando ligeiramente, quase cuido de pensar que ele pretende que Deus lhe leia a Chama. Brinco, claro. Mas sendo ele de bom humor e Deus também, não me admiraria que Deus a lesse. E o que é certo certíssimo, inspira-lha! Fica pois posto o título da obra, com esse desejo de que Deus o leia e muitos leitores também, porque nunca o vi, isso é certo, escrever para a gaveta. Se escreveu, se escreve, é para ser lido, para ajudar, para formar, para potenciar crescimento e esclarecimento. Leia-se o livro portanto, revisite-se o passado, testem-se as memórias, confiram-se as projecções. Para tudo vale este livro. Por mim é grande a alegria de vê-lo nascer e aparecer!
Não é só da Chama do Carmo que fica muito do Autor por publicar. Rara será a personagem que conhece os caminhos e os carreiros, os cheiros e os marcos, as cores e os sons das posses e das extremas do terrunho natal. Mas o Frei Rui sabe. Ele sabe da sua terra como a meu parecer mais ninguém sabe. E está tudo publicado no Alvaranense, jornal da sua terra. Se houvesse a possibilidade de se publicar o tanto que sobre aquela Terra aquele filho tanto pesquisou e publicitou, certamente que ele não ficaria maior, mas a terra-madre sim. Para quando, portanto, a publicação daquelas crónicas locais que cimentam a comunidade alvarenense e que eu sei que o Autor as tem arquivadas e prontas?
Por último, quero declarar, com toda a amizade e respeito, que o Frei Rui não é um escritor. De facto não é. Nem jamais auspiciou sê-lo. A literatura a que à frente se acede não é de primeira água. Nem pretendeu sê-lo. (Há pois honestidade em tudo isto.) Isso colocou ao compilador um problema: como ler o texto? Como diferenciar um segundo sentido duma gralha? Deveria emendar-se, e como fazê-lo sem trair? Fiz o que pude, com gosto e zelo de deixar ali a voz do Autor. E ficou como todos os que o conhecem reconhecerão. É certamente verdade que o Frei Rui não é escritor. Mas é um grande cozinheiro! (penitencio-me por revelá-lo!) E o que perde na escrita ganha nas caldeiradas. E se é bem verdade que por entre os tachos anda o Senhor, então ele tem andado bem acompanhado e por isso tão bem lhe saíram do coração tantas chamas!
Termino este rascunho com as palavras do poeta latino Marcial, que no final dos seus livros escreveu: SUNT BONA / SUNT QAEDAM MEDIOCRA / SUNT MALA PLURA / ALITER NON FIT LIBER. Declaração que em português poderia soar assim: Há aqui boas passagens / também as há medíocres / e há muitas que não valem nada / mas é assim com todos os livros.
Pois é. Bom proveito a quem se atrever a provar.

Frei João Costa,
Carmo de Viana do Castelo e 27 de Julho de 2008

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Negro, puro e mártir

Texto de apresentação do meu livro Negro, puro e mártir — uma pequena biografia do jovem mártir zairense B. Isidoro Bakanja, martirizado há cem anos. Não acredito que cada um tenha o seu lugar. Acredito que cada um é um lugar para os outros. (Daniel Faria, O Livro do Joaquim)

O livro que temos nas nossas mãos, relata-nos, de uma forma simples, mas arrebatadora, a vida de Isidoro Bakanja, jovem zairense que nasceu nos finais do século XIX e morreu mártir no início do século XX.
A vida de Isidoro foi, de facto, um fogo encantador e surpreendente. Como nos diz, de forma tão bela o autor, Frei João Costa, este jovem pagão fez-se cristão, numa missão carmelita do Congo Belga (tenhamos em mente o amor que Santa Teresa tinha pelas missões). Desde o seu baptismo, este menino do silêncio deu um testemunho radical do que é viver sendo cristão. Foi mártir por amor a Cristo, em união a Maria, permanecendo fiel ao escapulário que tinha tomado.
Não foi um pregador, mas a sua vida foi “um lugar para os outros”. Assim, ele tornou-se, no dizer de João Paulo II, um catequista pela caridade, fraternidade, diálogo e perdão.
Da biografia de Isidoro realcemos também o facto de ele ser um leigo. É, portanto, um desafio e um exemplo para todos os jovens leigos que, hoje, se encontram com ele. Pelo exemplo da sua vida, podemos chegar mais junto de Jesus e amá-lO mais profunda e verdadeiramente.
De facto, Isidoro Bakanja tem coabitado em diversas actividades com o Carmo Jovem. Os jovens carmelitas já sentiram ecoar o testemunho de Isidoro, quando Frei João Costa nos foi dando a conhecer a vida do mártir.
Uma palavra também para Hugo Soares, jovem artista, que enriquece a obra com os seus desenhos. E quão mais rica é a nossa Igreja com a linguagem da arte!
Deixemos o silêncio tomar conta de nós e, página a página, o nosso coração irá arder por dentro com este jovem que viveu como Cristo.

Jorge Teixeira
Coordenador do Movimento do Carmo Jovem

Uma questão de água e de pontes

Um sorvo
Era um encontro de jovens, em Agosto, em Segóvia, no convento de S. João da Cruz. Ali os dias são quentíssimos, a paisagem é de restolho ressequido; os corvos grasnam o dia todo por cima da Igreja da Senhora de la Fuencisla. São tantos e tão insistentes que quando se calam, nos sentimos melhor. Em chegada a noite também ficamos melhor, porque a temperatura amaina.
Nesse dia de que quero falar saímos enquanto o sol era meigo. Calcorreamos caminhos de pó por entre restos de searas e de campos enormes. Parámos bem antes do meio-dia, bem antes do sol queimar. Parámos sob as únicas árvores que se viam por ali. Mas antes de merecermos almoçar, reunimo-nos à volta dos textos de S. João da Cruz. E como é diferente lê-los naquela terra quase só terra, quase só céu!
Passámos ali a tarde. Chegámos por fim a casa cansados e suados, com os corpos a suspirar por um banho. Antes da ceia, porém, estava prevista uma hora de oração. No meio da frescura da capela depuseram uma vela no chão e uma tina de água.
Quero lembrar que entre nós havia um catalão, de 17 anos, que ninguém sabia ao que viera. Estava ali tão deslocado como um peixe a apanhar banhos de sol. Não sabia nada daquilo. Não sabia nem rezar nem o que era um convento nem porque tínhamos de nos juntar a horas certas e fazer tudo junto. O nome, julgo, era Rufo. Apesar de destoar Rufo era simpático, embora quase só falasse de bebedeiras de vinho!
Foi também à oração, que começou e foi decorrendo junto ao Poço de Jacob, onde Jesus se encontrou com a Samaritana e lhe pediu de beber; onde Jesus foi remoçando o coração ressequido daquela mulher, acabando ela a pedir-Lhe: — Dá-me, Senhor, dessa água!
Era assim entre cânticos, o Evangelho e os apelos da Santa Madre, que ia decorrendo a oração. Ali, se traçava o itinerário de fé que cada um de nós deve percorrer: Jesus aproxima-se. Depois é reconhecido e acolhido como a única água que pode matar a nossa sede.
A certa altura, foi cada um de nós até junto da água e só tinha que fazer aquilo que quisesse fazer: mirar, tocar, santiguar-se... Havia um cântico: — Dá-me, Senhor, dessa água. O cântico ia correndo e a fila andando, e à medida que cada um se aproximava da água cumpria o ritual. E regressava ao seu lugar.
Rufo foi o último. Todos vimos como se tardou diante da água. E nós cantando. Ficou ali, imóvel, impressionado, resoluto. Depois, ajoelhou e deu um grande sorvo antes de lavar a cara. O cântico parou mas ali deve ter nascido um santo, pois no restante do encontro o rapaz já não foi mais igual!
(Ignoro o que posteriormente se passou com a vida de Rufo; se ficou a gostar mais de vinho ou de água. Mas o que é certo é que se naquela tarde não foi tocado pela sede de Deus, fomo-lo nós perante o seu gesto tão inesperado.)

Desaparecida
Encontrei algures uma notícia e fiquei olhar para ela. Como quem vê um boi a olhar para um palácio. Um boi não sabe distinguir uma janela duma porta, o frontispício do telhado, uma estátua duma floreira. Para o boi aquilo é um palácio ou lá o que é, mas como não se come não é nada. Fiquei mais ou menos assim quando li uma notícia sobre o roubo duma ponte. Uma notícia assim não parece o que é, e deixa-nos incrédulos. Eu fiquei. Olhava para as letras e via-as juntas e ordenadas, formavam um texto que era uma notícia, ou brincadeira. Dei por mim a pensar: é daquelas notícias papa-tolos, bem escritas mas sem sentido! Seja. Mas seja o que seja vou trazê-la para aqui.
Os conteúdos eram estes: Na República Checa, entre os inícios de Dezembro e meados de Janeiro deste ano roubaram uma ponte. Era uma ponte de aço, ali disposta para unir duas cidades. Não era um viaduto qualquer, era mesmo uma ponte e pesava 4 toneladas. (Um carro pesa uma e meia!)
As pontes são para mim das construções mais interessantes. São como as vitórias, juntam o que andava separado, vencem abismos, unem as margens que porque o são andam sempre desavindas, fazem comunhão, fortalecem comunidades. São causa de alegria e de júbilo, facilitam a vida e antecipam os encontros. É porque provocam união que as pontes me seduzem. Para além de me ser incompreensível como foi possível roubar uma ponte e ficar mais de um mês sem saber que fora roubada, passo a enumerar os meus outros espantos por causa desta notícia: Não foi o David Coperfield porque ele encena ilusões, não muda a substância da realidade!; Como é que duas cidades ficaram tanto tempo sem se aperceberem que estavam separadas?; Era mesmo uma ponte, ponte?, uma ponte que fazia falta? Era mesmo uma ponte que servia para o que serve uma ponte: unir?; O mais certo é ter sorrateiramente acabado na casa dum socateiro qualquer: mas poderá uma ponte de um só homem ser verdadeiramente uma ponte?

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Favores em cadeia

Vamos ver o filme Pay it forward, de Mimi Leder (2000). A sua mensagem não está ultrapassada, porque tem a sua raíz no bem. Um bom filme para ver e comentar neste tempo em que tantos se perguntam se vale apena acreditar num mundo melhor.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Muito depois da hora

Isto é muito depois da hora mesmo, mas ainda assim: Bom ano para todos! Para todos! Um ano é uma caixinha de surpresas com muitas divisões lá dentro. Este ainda mal começou e já nos ofereceu algumas. A neve por exemplo (a foto foi roubada em Caíde).
Haja coragem e sabedoria para saber acolher as seguintes.
Bom ano.