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quinta-feira, 7 de março de 2013

Notas de Roda-pé


Notas de roda-pé

A primeira vez que escrevi as Notas de roda-pé foi precisamente para o Jornalinho de que hoje sou director. Na altura convidaram-me a escrever. Porque não sabia sobre que escrever, e como tinha carta branca rascunhei sobre coisas insignificantes que ficam lá para os lados do pé da página da vida. Não são coisas importantes, nem daquelas sobre que incidem todas as luzes; são antes das que só repara nelas quem anda cá por baixo, nem perto nem longe da correnteza da vida, talvez, quem sabe, um pouco à margem até. De há uns tempos a esta parte repetiram-me o convite. Agora para A Verdade. Seja, escreverei outras Notas de roda-pé sobre outras coisas insignificantes, mas que me dizem respeito, que me espantam, que ficam ou não do lado da corrente em que me encontro, e me fazem pensar e retomar a escrita destas pequenas notas.

Jubileu
Terminou o jubileu, já ninguém fala do jubileu. Será que o Jubileu é passado? Creio sinceramente que nos caberá a tarefa de manter viva a contínua recordação de Jesus, Jubileu-connosco e Jubileu-para nós. Creio sinceramente que somos chamados e nos cabe a tarefa de arautos do futuro a quem entregaremos o desejo que Ele tem de continuar a comer a Páscoa connosco. Creio sinceramente que nos foi confiado o cuidado de levar no alforge as sementes de louvor e gratidão pelas maravilhas que o Senhor vai fazendo na história. De facto, olho para trás e o Jubileu parece ter sido pouco, sabido a pouco. E talvez tenha sido. E daí talvez eu esteja errado no meu olhar, pois o trabalho da Graça em nós é como a chuva da Primavera (a do Inverno foi demasiada e mortífera): fecundante!
Desde a minha janela olho o verde dos campos e medito: como são formosos os pés daqueles que demandaram o Santuário do Menino Jesus durante o Ano Jubilar da Incarnação de Jesus! E assim como ao chegar o tempo das colheitas se enche de fartura o avental da mulher que vai à horta, assim se encheram da abundância de Deus muitas das vidas que subiram até aos pés do Menino Jesus. Quem poderá contar? Quem poderá dizer? Talvez ninguém, porque são contas de Deus. Talvez ninguém porque estas são contabilidades que se escapam à contagem e estatística com que alguns de nós na Igreja nos gostamos de ungir!
Mas, será passado o Jubileu? Jesus é o Alfa e o Ómega, o Princípio e o Fim, o Senhor do tempo e de todas as coisas. É sempre o mesmo: ontem, hoje e sempre! Ele é Jubileu-connosco, até ao fim dos tempos. Ele estará onde dois ou três estiverem em seu nome, reunidos em memória sua! Enquanto houver memória haverá Jubileu, e segui-l’O-emos até ao fim! O Amor continuará entre nós pronto a fazer inteiro um mundo de espartilhos e fronteiras. Vê-l’O-emos nas nossas taças cheias, abençoará as nossas sementes, baloiçará nos caracóis das crianças, nos beijos dos enamorados, nos caminhos do Evangelho. Continuaremos a ser chamados a testemunhar a alegria a fé o amor a esperança; a intervir nas reuniões cívicas, nas pequenas associações, nos grupos, bairros, escolas, empresas, comunidades; a trabalhar pelos que sofrem aqui ou além. Porque um dia, ao entardecer da vida, na presença do Jubileu, seremos examinados no amor. Terminou o Jubileu, e agora? Agora continuemos Jesus!

João Malheiro.
Na entrevista a A. T. Teles de 10 de Março (TSF, 16H00) o director de informação do SL Benfica, João Malheiro, que é benfiquista e jornalista, e gosta dos dois amores, contou a seguinte história: em certo dia, tendo chegado à Sala da Direcção onde se assinaria um contrato deparou-se com um jornalista de boné. Como tal não lhe pareceu de boa educação convidou o jornalista a tirar o chapéu. Como este repetidamente se recusou convidou-o a sair e este saiu.
No dia seguinte passei pela sede de um concelho e ao querer atravessar a ponte não pude: uma multidão de gente, parada, aguardava qualquer coisa. Parei o carro, saí e vi. À entrada da ponte estava um cortejo litúrgico. Não percebi logo; em tempos ouvi dizer que no arco da ponte faltava um cunho e ainda cheguei a pensar que tinham vindo rezar para que a ponte não caísse. Nos tempos que correm era possível, mas não muito crível. Dei dois passos e perguntei; afinal, era a corporação de bombeiros local que cumpria mais um aniversário. Esperamos um par de minutos e chegaram os bombeiros: majoretes, pendão, fanfarra, desfile de bombeiros, desfile de viaturas novas. Completou-se de seguida toda a procissão com a reorganização do cortejo litúrgico: incenso, cruz processional, uma boa dezena de acólitos, o sacerdote, as individualidades e restante assembleia. Fui olhando procurando conhecer alguém, e reconheci. E em quem reconheci vi algo que não devia ter feito. Seja por educação, seja pelo lugar de eleição que na comunidade ocupa, seja pelas funções que representava, seja pelo momento  que se vivia não devia ter feito o que fez: num gesto que tem tanto de mecânico como de irreflectido meteu a mão ao bolso, tirou o isqueiro e os cigarros e acendeu um, e lá foi fumando. Adiante, lá ao fundo, num jardim, o grupo coral dava início ao cântico de entrada da Eucaristia de acção de graças pela acção de solidariedade daquela corporação de bombeiros. Terminado o cortejo meti-me no carro e arranquei. E fiquei-me a pensar: que falta fazem outros João Malheiro, também a nível litúrgico, que convidem a respeitar quando se está em terra sagrada ou a sair quando não se percebe nem se quer perceber nada da terra que pisa!

Sabonete
Esta história não é minha. Contaram-me que numa escola de S. João da Madeira havia um cão com o seu brio. Alguém com sentido de humor, dizem que talvez um aluno, baptizou o bicho com o original e higiénico nome de Sabonete. Sabonete viveu por ali uns anos; defendia o seu território de outros cães, respeitava os garotos, correspondia aos cumprimentos, obedecia às autoridades. Enfim, tornou-se um cão social e sociável. Ora, um dia o cão desapareceu. Desconsolo de todos, alunos, professores, administrativos... Meses mais tarde alguém da Escola passou pela Universidade de Coimbra e viu um cão. Chamou-o e ele veio. Era o Sabonete que para ali fora levado por uma turma de saudosos caloiros vindos da tal escola de S. João da Madeira!
E quem me contou a história resumia assim a moral: já nem só os burros vão para a universidade, também os cães! Salvo seja...

Nem eu
Estamos na Quaresma. A Igreja Católica marca-a com as marcas do jejum, da caridade e da oração. Potenciam-se assim realidades perfeitamente humanas que nos elevam para o divino e nos aproximam ainda mais dos nossos iguais.
A propósito da caridade transcrevo uma história dura como um punhal e que li já nem sei onde nem quando. Foi na Índia, naquela Índia que atraía ocidentais por muitas razões e ainda porque ali viver uma mulher ocidental de nascimento e indiana por vocação e fraternidade. Chamava-se Madre Teresa. Ali fora um jornalista para a entrevistar e seguir os seus passos de dia – a – dia. Quando a Madre saiu à rua ele seguiu-a; quando ela parou junto a um corpo de um escanzelado moribundo ele parou. Quando ela se ajoelhou e o amparou em seus braços ele apertou o nariz. E como a Madre ali ficava, ali ficava ele. Olhando, tirando notas, fotografando talvez. E como lhe parecia tempo demasiado perdido com alguém sem futuro, e como tudo aquilo fugia de todas as lógicas e critérios humanos o jornalista aproximou-se da Madre e disse baixinho: — Madre, eu não faria isso nem por todo o dinheiro do mundo!
Ao que ela respondeu: — nem eu!

[9 de Abril de 2001]

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