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terça-feira, 23 de abril de 2013

Notas de Roda-pé



Ivan­
Ivan é pedreiro. Ivan é ucraniano. O pedreiro e o ucraniano são o mesmo Ivan Babchuk. Como muitos dos homens do seu país aventurou-se, largou velas e zarpou. A aventura trouxe-o até nós. Algures em Lamas, lá para os lados de Satão, Viseu, é o seu porto de acolhimento.
Ivan, o pedreiro ucraniano, é também sacerdote. Só que ninguém sabia. Agora que toda a gente sabe o pedreiro continua a ser sacerdote e a exercer como tal. E continua a ser pedreiro. À semana trabalha como pedreiro, ao domingo reza a eucaristia na igreja local. O padre Ivan não é sacerdote católico, mas o abraço do Pároco local foi inevitável. Aceitou as portas abertas e entrou. Celebra missa para os compatriotas. Diz quem nunca viu outras missas que a missa do padre Ivan, sacerdote cristão ortodoxo, é diferente.
Nas missas do padre Ivan católicos e ortodoxos dão-se as mãos, abraçam-se no mesmo abraço, rezam ao mesmo Deus, comem o mesmo Jesus, honram o mesmo Cristo. Isto é, celebram no domingo o que vivem à semana. Se à semana dão as mãos para amaciar a pedra porque não haveriam de, ao domingo, celebrar o Senhor de todas as coisas?
O contacto com o diferente é por vezes trágico. Aqui, pelo menos, por enquanto, mãos diferentes — à semana ou ao domingo — dão-se, comungam-se, constroem fraternidade como quem, pedra a pedra, vai erguendo em sua vida uma casa para Deus!

Belém
Foi em Belém que Jesus nasceu. Sabemos que foi num buraco, rodeado por animais e pelo espantado de Maria e José. O buraco onde Jesus nasceu é hoje uma basílica, um lugar sagrado para os cristãos. Este lugar sagrado tem um nome: Basílica da Natividade.
Há dois anos, na praça que envolve a basílica — a Praça da Manjedoira — o papa João Paulo II celebrou missa e proclamou que «a mensagem de Belém é a boa notícia de reconciliação entre os homens, de paz a todos os níveis de relações entre pessoas e as nações».
Passados dois anos não são palavras de paz e reconciliação que se ouvem na Praça da Manjedoira. Ali ouvem-se tiros de metralhadora e os potentes motores dos tanques israelitas. Lá dentro, no templo cristão, estão duzentos refugiados árabes (há quem lhes chame «bandidos e terroristas palestinos»); também lá estão uma comunidade de frades franciscanos. Cá fora, à volta, em permanente vigilância estão os tanques e soldados judaicos. Um templo cristão é albergue de árabes cercados por judeus!
As religiões são o melhor caminho para a paz, mas no local onde nasceu o Príncipe da paz elas estão em guerra. Naquele local sagrado os anjos proclamaram a paz aos homens de boa vontade, mas ali já não se respira nem paz, nem cânticos de anjos e as corajosas vozes dos frades andam assustadas.

Tiros
As notícias não são todas certas. As certas dizem que recentemente os tanques bombardearam uma porta da Basílica e provocaram um incêndio. O incêndio chegou a assustar, a porta foi arrebentada e o templo violado. Outro tanque disparou contra a Virgem da fachada e estropiou o rosto da Virgem e mutilou-lhe um braço. Alguém, a propósito escrevia: «A Virgem perdeu um braço e o seu belo rosto está mutilado. Tornou-se uma das centenas de mulheres palestinianas abatidas pelos judeus no decurso do presente conflito». Não é exagero nenhum.
Outras notícias são mais incertas. Entre os refugiados (alguns armados) já há mortos. Ao que parece um quereria render-se, mas os soldados judeus jogaram pelo seguro: um palestiniano morto é de facto um palestiniano rendido, e mataram-no. Mas há notícias de mais mortos abatidos nos claustros da igreja. Decididamente as armas nunca falam de paz, nem podem nunca honrar quem nasceu para a semear em todos os corações independentemente da cor.

Armas
Angola parece ser o reverso de Israel e Palestina. Parece que vai vestir o fato da paz. Um alto dirigente da UNITA questionado sobre o assunto disse que a paz com o governo angolano tem um preço muito alto (afinal combateram-se durante pelo menos vinte anos!). Mas esse preço alto é sempre mais baixo que o preço da guerra!
Não ouvi palavras tão sábias do outro lado.
E que vão fazer às armas, perguntaram ao mesmo dirigente. E ele respondeu: «armas? armas para quê? Quem precisa de armas?». Ninguém precisa claro, mas eu sugiro que se faça com as armas o que o profeta Isaías sonhou: sonhou que as armas eram transformadas em relhas de arado, enchadas e pás, em ferramentas que matem a fome e tragam o progresso.

Bölöni
O senhor Lazlo Bölöni é treinador do Sporting e provavelmente será campeão. Simão Saborosa é jogador do Benfica que este ano já não conseguirá ser campeão. Simão é provavelmente o melhor jogador do actual Benfica. Ultimamente Sporting e Benfica anda de candeias às avessas, mas isso não são contas do senhor Bölöni e, vai daí, visitou o azarado Simão que tinha sido operado a uma grave lesão. O homem que está a ganhar visitou o que está a perder. Há muita gente que não compreenderá este estreitar de mãos.
Em metáfora de jornalismo desportivo poderia dizer-se que o leão foi ao ninho da águia visitar uma das suas estrelas. Em tempos de tanta inflamação é bonito saber-se deste gesto de solidariedade entre dois adversários, não necessariamente inimigos. O futebol também pode ser uma escola de virtudes, e pelo reflexo amplificado que tem na sociedade deve ser, no mínimo, espaço de sã (con)vivência!

Feliz
O professor Moniz Pereira é um senhor. Levou uma vida a escolher e a fazer campeões de atletismo. Parece que escreve e faz canções e também as canta. É uma vida cheia que vale uma entrevista. Ou muitas.
Numa entrevista perguntaram-lhe se era feliz. Claro que sim, respondeu. E acrescentou: «Os que se dizem infelizes não sabem viver». Com a idade que tem; com a experiência que tem; e com os frutos que tem a carimbar-lhe a idade e a experiência não serei eu a contradizê-lo.

1’ de sabedoria
-- Eu desejo aprender, pode ensinar-me?, perguntou alguém ao Mestre.
-- Não creio, respondeu o Mestre, que você saiba aprender.
-- Então, ensine-me!
-- E você pode aprender a deixar-me ensinar?
Ao perceber que os seus discípulos estranhavam as suas palavras o Mestre disse:
-- Todo o ensino só começa a acontecer quando se começa a aprender. Mas a aprendizagem só acontece quando se ensina alguma coisa a si mesmo.

[9 de Abril de 2002]

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