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quinta-feira, 18 de abril de 2013

Notas de Roda-pé



Solnado
O senhor Raul Solnado cumpriu cinquenta anos de vida artística. Houve o foguetório do costume, mas talvez não tanto como mereceria. Registo apenas um breve declaração sua «em cinquenta anos aprendi a dizer “não” e foi isso que me fez chegar até aqui». Também o ouvi dizer não ser rico, que escolhera o outro caminho, e que era isso que o fizera chegar às bodas de ouro com uma imagem inatacável. Lá terá razão. Se o diz é porque tem razão.
Não posso deixar de destacar a humildade da afirmação: aprendi a dizer “não”, e em consequência sou pobre... Mas está no coração de todos nós, concluo eu!
Por estes dias lia algo parecido. Era uma reflexão sobre o saber dizer “não” quando deve dizer-se não, ou dizer “sim” quando é de se dizer. Sobretudo, espelhando-me na reflexão de R. Solnado, penso ser nosso dever reflectir (e dizê-lo urgentemente aos nossos jovens) sobre o drama da nossa sociedade que nos prepara para a aquisição e não se atreve a falar e a propor o despojo; que nos amestra para a acumulação e a posse de coisas e mais coisas (e de pessoas e ideias), mas nunca nos ensina o desprendimento! É verdadeiramente espantosa a simplicidade da resposta à pergunta por que não temos mais Solnados em todas as áreas da nossa vida colectiva!...

Martínez
Ainda é jovem e tem duas filhas que vivem longe. Actualmente vive em Espanha, mas já residiu nos EUA «onde tinha tudo»... É calmo, tranquilo, comedido. Durante cinco anos e meio esteve preso, três dos quais no «Corredor da morte» à espera duma injecção letal que nunca chegou porque se descobriu o erro judicial e foi ilibado. Na prisão estudou Ciência Política e Teologia.
Como é que, na prisão, se vive e se resiste à espera da morte? Joaquín José Martínez resistiu confiando. Sempre confiou e confessou corajosamente a sua inocência. Confiou em si, e sobretudo em Deus. Veja-se:
«Deus é tudo para mim. Ele é a vida. É fácil de dizer isso, mas a verdade é mesmo essa. Se não acreditasse em Deus, se não confiasse que Ele me ajudaria, que sempre estaria a meu lado eu teria ficado louco»!
«Com tantas horas para pensar como as que tive alcancei um contacto pleno comigo mesmo e com Deus».
«Acreditar é a única maneira que existe para se continuar a viver quando a linha do horizonte é a cela da frente e se tem data marcada para morrer».
«Hoje estou vivo [na terceira parte da minha vida] e é apenas isso que conta»!
Hoje vive em Espanha. Livre. Vive a terceira parte da sua vida com a consciência de que é pequenino, mas vive calmo, sereno, comedido e sem raiva. Porque existe só Um que pode preencher a nossa necessidade de posse.

Divinus
Apareceu aí nos escaparates um disco com «sucessos portugueses». O autor é o grupo Divinus. O disco está no top por uma de duas razões e até talvez pelas duas, e quem sabe, até talvez por outras... A primeira tem a ver com o nome que remete para o além, para o sublime, para o diferente, o inusual e o sagrado. A segunda porque os sucessos são interpretados segundo o modelo do canto gregoriano. Depois, claro, a palavra «sucesso» é em si apelativa, logo também ajuda a subir no top. Dizem os entendidos que os sucessos foram bem escolhidos e bem interpretados. Só que aquilo não é canto gregoriano, é outra coisa.
Mas a coisa resultou.
Estes «sucessos» têm duas virtudes. Uma é a de chamar a atenção para essa grande música que é o canto gregoriano. Outra é que é sempre preferível ouvir interpretações originais do gregoriano, aliás disponíveis nas discotecas, porque, essas sim, revelam toda a espiritualidade e transcendentalidade que vai falhando aos nossos dias. Valerá a pena ouvir os Divinus?, talvez. Mas melhor que a água do cântaro é a da fonte!

Votar
Domingo há eleições. A democracia não é possível sem exercermos a nossa obrigação cívica depondo o nosso voto na urna. Por isso, domingo vá votar. Não votar é votar no partido da abstenção. E a abstenção é a negação da democracia. Exerça o seu direito, cumpra o seu dever. Não nos deixe governados por alguém que não venceu o partido dos que se negam a construir a democracia, a abstenção.

Vitória
Em Nova Iorque onde antes estavam as Torres Gémeas estão agora dois enormes fachos de luz. Excelente ideia. Já muitos haviam referido que a vitória fora derrota. Os EUA não se amedrontaram e ultrapassaram por cima aquele drama enorme.
Mas resistir à tentação da reconstrução das Torres foi uma vitória maior ainda. Nem construir umas torres ainda maiores seria vitória tão grande. Onde uns semearam escuridão outros fizeram renascer luz; onde reinou a morte impera agora a luz. Honraram-se os mortos com dignidade e ilumina-se a memória dos vivos. Olhando aqueles dois enormes fachos de luz todos seremos impelidos a dizer «Nunca mais»! Parece-me uma excelente ideia. Quem poderá agora derrubar a luz? Que aviões ou que armas, que idologias ou fanatismos poderão derrubar a luz? Quem poderá apagar a memória de tal horror?

1’ de sabedoria
O Mestre tinha um discípulo obcecado pela ideia da vida após a morte; um dia disse-lhe o Mestre:
-- Porque vives perdendo o teu tempo pensando no que vem depois da vida?
-- Mas, é impossível não pensar.
-- É claro que é possível não pensar.
-- Mostre-me então, desafiou o discípulo, como se pode viver não pensando no que vem depois da morte?
-- Simplesmente vivendo o céu na terra!
-- E onde está o «céu na terra»?
-- está á sua volta, aqui e agora!

[12 de Março 2012]

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