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terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Quem és tu, Zé Pedro?


Em tempos de aparente esmorecimento é consolador e reconfortante testemunhar certos gestos pequeninos e delicados que sabem tanto melhor e tanto mais alegram e animam quanto mais têm de inesperado. Ainda há calor e surpresa. O mais insólito mas não o último passou-se com o Zé Pedro, que eu jamais vira. O encontro com ele (e a avó) foi tão inesperadamente delicado e tocante que hoje resolvi contá-lo, na Chama deste Domingo. Também é certo que uma vez mais nos aprestamos a pedir a sua esmola para as obras do adro e da fachada da Igreja. Mas a coisa, aquele encontro, foi assim tão... tão... (Tão divina?) que eu apeteceu-me perguntar: — Quem és tu, Zé Pedro?
E ainda não sei responder se naquele dia falei com um Anjo ou só com um menino.

Conheci o Zé Pedro num dia em que a avó o trouxe. São vizinhos do Carmo. Ambos poderiam figurar no livro Filhos do Carmo. Mas não, não estão lá. Fica para a próxima, se Deus quiser.
Um dia a avó trouxe-me o mealheiro do neto. Contou-me que lhe contava coisas desta casa, da Igreja, da casa de Jesus, de Nossa Senhora, do convento novo, de como isto foi ficando bonito, que nem sempre assim fora. O neto, claro, não sabe. Sabe só o que vê, e ainda assim vê pouco. Ele é tão pouquenino. Mas nestas coisas não importa o que se vê, mas o como se ama!
Quando abri o mealheiro — na minha terra dizem migalheiro — tirei dele quase 50,00€, contando algumas moedas de escudo.
(Era antigo, portanto).
Um dia a avó trouxe o neto. Oh, como lhe agradeci! Como me encantei! O miúdo parecia que sabia ao que vinha. Espevitado, não se intimidou, nem por ter de falar com os grandes, nem por estar num convento. Enfim, falamos tu a tu, como se fôssemos parceiros de há longos anos.
Tratou-me por tu. Conversámos. (Eu tive de fazer quase — não muito — de miúdo.) E depois despediu-se. Deveria haver alguma senha entre eles, pois foi simultâneo o desejo de partir. Mas não, não saiu sem me apertar a mão e me agradecer três vezes por me ter conhecido.
(Ora, Zé Pedro, bute lá! Eu não sou grande peça!)
Foram-se. Hoje garanto-me, para me convencer: se fosse de chorar, teria chorado naquela hora. O miúdo comoveu-me. Não me conhece de lado algum e foi genuíno no trato, nos gestos, no estar, no falar, e, claro, nas distracções.
— Prazer em conhecê-lo, sabe? despedia-se. E eu ainda oiço essa música nos meus ouvidos.
Obrigado, Zé Pedro! Obrigado, avó! São coisas assim de simples que ajudam a refrescar o meu barro resseco! Sim, obrigado Zé Pedro, isto é por ti. É mesmo por ti! Tudo isto é por ti. Por ti e por todos os que tu naqueles minutos representas-te diante de mim. Esses olhitos que me remiraram perante o sorriso da tua avó, quando, como homens nos apertámos as mãos, fazem-me lembrar outros meninos. Muito outros meninos e meninas.
Sim. Isto é por ti, Zé Pedro. Por ti e por eles. Pela Ana, pela Francisca, o Marcus, o Miguel, o Tiago...
Sabes, saberás, tu, Zé Pedro, que tudo isto só tem sentido porque é um legado que me foi entregue e eu recebi — eu e muitos outros comigo e antes de mim! — pelo que será um prazer entregar-te um dia a Igreja do Carmo. Sim, é verdade: um dia o Carmo será para ti e para a Ana que se debruça sobre o Altar quando celebro a Eucaristia, e para o Tomás que quer mas não é capaz de vir apertar-me a mão no Momento da Paz, e para o Alberto que não consegue ficar toda a Missa acordado, e para a Joana que já canta no Voces Carmeli tão bem quanto a mãe, e para o David que ao colo do pai é tão simpático quanto tu, e para a Alice a quem impus o Escapulário enquanto dormia ao colo do pai, e para a Elisabete que fez aqui a Primeira Comunhão antes de ir para Inglaterra e que prometeu e cumpriu vir dar-me um beijinho sempre que viesse a Aveiro, e para a Nininha que há muito tempo não a vejo por aqui com a sua saíta de fada. E para... E para...
É para ti, Zé Pedro. Tudo isto não faria sentido se tudo isto não fosse já herança tua, tua e de todos eles. Esses e outros que, entretanto, hão-de vir.
Sim, como vês, enquanto não chegar a tua vez, cuidaremos bem da igreja e do convento que muito amamos. Já viste como os velhinhos — a Dona Olga e outros — sobem mais desafogadamente as rampas? Sabes que há mais velhinhos a vir à igreja, porque já não se cansam tanto? Nem tropeçam tanto? Sabias isso? Pois, é verdade.
Cresce, Zé Pedro! Cresce, depressa, Zé Pedro. Que isto dá muito trabalho e eu estou ansioso por entregar-te a nossa Igreja do Carmo. Entretanto, como te disse, cuidaremos dela e defendê-la-emos como a menina dos olhos. Queremo-la para ti!
Aparece por aí, mesmo sem migalheiro. Porque para mim foi uma imensa alegria conhecer-te. Desta será a minha vez. Quero dizer-te três vezes que foi uma imensa alegria conhecer‑te. (Eu que não sei nada de ti, a não ser que gostas de aqui vir voando no sorriso da tua avó.)


[04 de Novembro de 2007]

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