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domingo, 24 de novembro de 2013

Notas de Roda-pé


Passos no Verão

Era o primeiro dia de Verão a sério. Sério descia eu a suave ladeira do Hospital – E só agora reparo que o colocaram no mais alto da cidade, como quem nos mostra o Calvário quotidiano de tantos! Descia, dizia, a suave ladeira do Hospital e a meu lado uma mulher que ali limpa escadas e corredores caiu na passadeira com as três sacas do supermercado, a bolsa e a esfregona que também levava. A mulher tem três filhos, mas foram outros que a levantaram sem conseguir evitar-lhe um olho negro que vai inchar, um galo na testa e escoriações nos braços e nas mãos, e mais fundas nos joelhos. Queixava-se muito dum pulso, mas como precisa muito dele para cuidar da casa e da casa de dois velhotes e da casa duma viúva acamada e passar a esfregona pelos longos corredores do Calvário nem se atrevia muito a falar disso.
(Ó Santa Mãe da dor, – Gravai no meu coração as chagas do Redentor.)
Em sentido contrário o passeio subia. Subia ligeiro. Ninguém apressava o passo, talvez mais por causa do calor. Na paragem dos autocarros saíram três passageiras. Duas eram novas e teriam os seus dramas, que as dores a todos tocam. Falavam inglês e desapareceram como gazelas ligeiras e frescas pelas sombras do jardinzinho. A terceira, uma velhinha de negro, dum luto cerrado que parecia levado por muitos, talvez por marido e filhos, desceu a custo o último degrau. Só podia ir para o Calvário com a sua malinha preta cheia de exames e credenciais. Dava saltinhos, caminhava a impulsos. Não dava passos, arrastava-se num tremer que não sei explicar mas a fazia andar. Nas fontes os cabelos brancos bailaricavam, única nota que me pareceu de alguma alegria no engelho daquele corpo. Pensei que se ia para o Calvário demoraria a chegar naqueles passinhos tão curtos. Mas se para o Calvário não ia, para que outro calvário iria, pensei. Passei, cruzei-me com o seu rosto resignado e firme, como quem vai em missão. Como quem vai determinada em missão.
(Meu Jesus, por vosso passos, – recebei em vossos braços este pobre pecador.)
Na escadaria que ali há junto daquelas duas igrejas, uma das quais vai amolecendo e ruindo silenciosamente por dentro como um cancro, um conhecido e público farrapo de mulher curtido a garrafas de vinho, partilhava migalhas de não sei quê com as pombas. As pombas gostavam do que lhes dava, tal o atropelo de asas e bicos que ali se assistia. As pombas não nos falam, mas ainda assim, ou talvez por isso, são mais pacíficas que muitos humanos e devem perceber muito da nossa solidão. Tanto que algumas trepavam-lhe para o regaço e para os ombros. E comiam-lhe à mão. E beijavam-lhe a cara. A velha sorria contente por ter três dentes a mais que as pombas e pelo afago das unhas que lhe subiam pela blusa acima. Algumas das que lhe comiam à mão ela as afagava, as que ficavam no chão davam saltos como quem luta pelo melhor quinhão. Não vi na velha coisa que fosse bela, nem o sorriso que ia demolhando em dois pacotes de vinho. A velha escura e negra de pele teria – quem sabe – uma alma branca e até bem mais branca que a de tantos que são de branca comunhão diária. E meditei no drama ou revolução que a tinha despojado quase inteiramente de humanidade e a levava a consolar-se na fraternidade com as pombas.
(Ó pai Eterno eu vos ofereço as chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, – para curar as chagas das nossas almas.)
As eras galgaram as paredes das casas do Bairro dos Ferroviários e já há muito entram por debaixo das telhas. Entram e passeiam-se pelo forro das casas, porque precisam de respirar e dentro delas não há luz. O mato cresceu e cobriu três ou quatro carcaças de carros perdidos da memória dos donos. As janelas e as portas foram prudentemente tamponadas a tijolos de cimento, mas ainda assim vive ali alguém. Uma comunidade de zombies fugidios, pelo menos. Que eu saiba não se dão muito a conhecer, nem incomodam cidadãos. Creio também que não querem ser vistos e notados. (Terão ido lá as meninas do Census?, penso eu dubitando justificadamente.) Não sei como vivem que lá não me atrevo a entrar, mas não vivem bem concerteza. Dão passos melancólicos que só servem para afastar-se mostrando-nos as costas enquanto vão indo, indo, indo como quem acaba de reentrar numa nova trip. Para eles não tenho mais discurso que um pensamento estupidamente incapaz e humanamente vazio e talvez covarde.
(Kyrie eleison; Christe eleison; Kyrie eleison.)
Na porta da minha igreja, que tantas vezes eu digo ser o centro do jardim da comunidade que somos, espera-me um casal. Entramos para a clemência da sombra do átrio. Ali podemos falar e eu ouvi-los contar por que estão ambos embrulhados em ligaduras nas mãos e nos pés. As das mãos são visíveis e reais, pois se vêem bem. As dos pés não são visíveis mas são reais, porque pudessem eles e fugiam daqui. Mas são muitos os grilhões que os prendem e a história e tradições que os impedem de aproveitar as correntes de ar e voar daqui.
Ontem à noite podia ter sido uma tragédia em minha casa. E por causa da droga. O nosso único filho bateu-nos aos dois. Esperávamos amparo e consolo na velhice e só temos amargura para beber. Já estávamos conformados que não viesse à Igreja nem quisesse rezar o Terço connosco, que fizesse a vida dele, desde que não nos incomodasse. Mas caiu no poço da droga e já não tenho forças para de lá o tirar. Ontem bateu-nos porque não tínhamos dinheiro para a dose. Foi muito feio. Nunca pensei levar dum filho, eu e a minha mulher. Magoamo-nos os três nos vidros que se partiram a nossos pés!
O Santíssimo que se encontrava lá em cima e também no meio de nós foi testemunha do que ouvi. O sangue dos três misturou-se abundantemente como se fora uma única flagelação – a flagelação duma família que outrora foi boa e modelar. Hoje estão todos cosidos a pontos que unem as carnes mas não a alma e coração.
Entrámos por fim na Igreja para rezarmos os três à Senhora da Agonia.
(Meu Jesus, perdão e misericórdia, – Pelos méritos das vossas santas chagas.)

[27 de Julho de 2011]


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