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quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Notas de Roda-pé


A Cruz Branca

(Não é especialmente bela, mas é dela que vou falar.)
Vá à varanda, é o meu convite.
A varanda neste caso é Paços de Gaiolo, em Marco de Canaveses. Se visitar o Santuário do Menino Jesus de Praga, recomendo-lhe que regressando à sede do Concelho pergunte ali por onde se vai a Paços. Toda a gente saberá indicar-lhe a Estrada Larga, que lhe abre a porta para a segunda peregrinação do dia.
O que lhe aparecer pela frente é digno de nota, e até vale uma canção. Se souber cantar o Hino das Criaturas, cante; o que lhe enxagua os olhos bem o merece! Mas não se detenha! Poderia parar nos doces do Freixo e comprar. Mas há coisas mais doces. Poderia parar nas ruínas vetustas de Tongobriga. Mas há coisas mais antigas.
Vá à varanda. É sempre em frente. Em caso de dúvida pergunte. Se perguntar onde fica a Barragem do Carrapatelo também dá. Quando chegar desça para a barragem. Depois, a um lanço de metros que agora não sei medir, guine à esquerda, em direcção à Prainha. A condução não será fácil, por ser um empedrado muito estreito e a pique. Os locais garantem, porém, que até um autocarro de gente já desceu ao rio!
Ali pode descansar, dormir a sesta, rezar, piquenicar e até banhar-se.
Quando lá fui a Primavera ainda não tinha rebentado. A natureza jazia escura, como fundo e escuro é o rio também. Não há muito para onde olhar: ou se olha para o rio escuro, ou para as margens que trepam por ali acima e lhe entaimpam a vista. Não se vê muito, de facto. O arruamento está limpo e asseado. Siga para montante, porque em direcção à foz logo encontraria o muro e as comportas da barragem. E se por ali há grandes quintas abandonadas e desprezadas também há quintaizinhos de gente pobre ou remediada que sabe ainda duma cavadela arrancar batatas e feijões, e do ar tirar uma pinga de vinho e outra de azeite. E também há cascatas que se não vêem mas se ouvem e nos dançam nos ouvidos. E no resto vamos por ali, andando, andando, num passeio que sabe a refresco.
Um passeio que a mim muito impressionou quando o fiz.
Algures, sem pré-aviso, há uma fraga. Uma fraga rija que se adentra ligeiramente pela albufeira e que em tempos enfrentou o Douro como um aríete. É de respeito. Dizem os dali que os rabelos carregados de vinho generoso, depois do Porto, se aproximavam para comerciar uma dormida mais fofa, umas broas frescas, um capão, uns ovos e até uns vegetais. E em troca recebiam um cântaro daquele bálsamo que ajudava a sonhar em português antes de embalar os charutos dos lordes ingleses.
É nessa fraga que se encontra a Cruz Branca. Como digo não é especialmente bela. E nem todos se aproximam dela. Infunde um certo respeito por falar ao antigo, por ser branca no meio de tanto escuro, por sei lá, por falar de dores antigas e esperanças perdidas. Ali rezei um Padre Nosso, e quando dela me lembro vem-me logo à memória a desmesura do esforço de fazer boiar rio abaixo um rabelo carregado de vinho.
(E o que não seria trazê-lo de regresso a casa!)
Se um corpo precisa de veias e artérias para que se lhe reguem os órgãos e os músculos, também o da mãe terra precisa de rios que lhe reguem a alma e o ventre para que à gente dê flores, esperanças e filhos.
Quanta água não leva o Douro! E quantas pingas tintas não recebeu ele nas suas águas, à moda da immixtio que o sacerdote procede no cálice eucarístico!
Aquela Cruz Branca infunde-me terror. Um terror sagrado, direi. A fraga em que se assentam os pés parece-me um altar donde ainda hoje se erguem orações, qual montanha de puro incenso prenhe de tanto sacrifício humano! Quem me dirá as vidas que o rio tragou? Que canção cantará tanta dor ali arrimada? Quem me falará dos seus tenros órfãos e das suas viúvas negras? Quem contou o suor dos que para salvar o lucro dum ano se esbaforiram no afago das fragas a fim de evitar o rombo no barco? Como seriam aquelas noites mal dormidas e as crespas manhãs de nevoeiro espesso? E que tremeluz não significaria aquela Cruz Branca?
Sim, já o disse. Aquela fraga é um altar com a sua cruz branca no meio. Ali se consagrou o sacrifício dum povo pobre que bebia a vida do rio e a caridade de quem sendo pobre restava no aconchego das margens e nas courelas de centeio.
Aquela Cruz Branca mais tosca que bela, hei-de visitá-la outra vez. Visitá-la-ei em peregrinação. Irei por respeito ao rio e às suas rijas gentes. Aos que o amaram e o beberam, e aos que lhe escanhoaram as margens com a enxada e a foicinha. Irei de novo àquela Cruz Branca e não irei só. Irei por respeito ao sacrifício de Jesus, dom derramado para nós em todas as veias da terra. E por respeito ao sacrifício dos que ali ergueram um naco de cultura e fundearam a fé. Irei de novo ali, cansado dos ventos que me rasgam as velas e estraçalham os mastros. Irei como quem ao aproximar-se a noite escura ali precisa de ancorar.
Às nove horas do próximo dia 16 de Abril irei rezar junto da Cruz de Paços de Gaiolo, que não é bela mas é branca.


 [28 de Março de 2011]

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