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domingo, 24 de novembro de 2013

Notas de Roda-pé


Continente de Missão

A Banda Mais Bonita da Cidade não é de cá. E de lá, do Brasil. Parece de facto bonita. Canta uma canção muito simples que se chama Oração. São uns vinte jovens a cantá-la.
Numa noite de verão caiu-me suave na alma como a chuva duma última oração. Diz o refrão: «Coração não é tão simples/quanto pensa,/nele cabe o que não cabe/na despensa.» Impelido por esta última oração desembrulho alguns restos e indícios que trago guardados sobre a missão.
Ninguém anda confortável. Os antigos, porque tudo mudou e já nada é como dantes. Os novos, porque tudo é tão parado e assim não dá. Já nada é como dantes. A transmissão da fé também não. Ambas gerações cuidam coabitar a dura faixa da terra de ninguém. Porque a sociedade já não é cristã terminou o tempo em que a fé se transmitia escorreitamente por continuidade. Agora que os tempos são de pluralidade resta-nos o firme dever de anunciar Jesus e a sua mensagem em diálogo com os demais. E não estamos habituados a isso.
Não podemos impor, apenas propor. Ou não aceitarão o que temos para dizer.
A juventude é uma questão de hoje, porque só agora há juventude: antes saltava-se sem mais da infância para a adultez. Hoje, porém, os jovens são-no durante vinte anos! Merecem toda a atenção. Se sempre questionaram o que a geração anterior estimou e lhes legou, também é verdade que agora rejeitam mais liminarmente a fé que vivemos e lhes é apresentada, mais a mais se a embrulhamos em obrigações e incoerências.
Olhando a JMJ Madrid 2011 consolidou-se em mim a convicção de que os jovens são hoje o novo continente de missão. Esteve ali uma imensa minoria de 1 500 000 jovens. Óptimo! Mas acabo a pensar que de todo não estiveram ali os mais significativos da nossa sociedade ocidental e europeia.
(As JMJ serão só para esses? E os outros tantos que não se revêem nesse modelo?)
A missão tem de começar. Em razão dessa urgência dei ali pela falta: 1. Dos jovens que acusam a Igreja de não ser nem transparente nem lugar de crescimento e comunicação da fé; 2. Dos incomodados pelas incoerências dos que devemos testemunhar a adesão a Jesus Cristo; 3. Dos jovens com questões absurdas e acusações inconsequentes, mas ainda assim abertos a caminhar caminhos de transcendência sempre atentos aos pés solidários que trilham o pó da terra; 4. Dos que anseiam viver a fé doutra maneira, mas para quem o luto das celebrações os agride e a alegria da fé tarda em alvorecer; 5. Dos desiludidos que nasceram cristãos e cuja relação de comunhão com a Igreja se rompeu; 6. Dos jovens filhos de rupturas familiares e sociais que hoje não sabem bem quem são, donde vêm, para onde vão.
Existe uma multidão de jovens murchos e abandonados formando um continente novo como aquela ilha do tamanho dos EUA (!) que voga pelo Pacífico, feita dos restos plásticos da sociedade de consumo! Que fazemos deles e por eles? Como (re)acender a chama da fé nesse imenso continente juvenil?
Facto: Depois da JMJ caiu-me no confessionário um rapaz, A., da juventude do Papa. Confessou-se como se confessam quase todos os jovens portugueses. Não sei como mas acabámos demorando-nos pelo trivial da fé. Ou nem isso. Havia, porém, ali, busca, inquietude: talvez seja sacerdote um dia, quem sabe? Não me recordo por que se viera confessar! E ele não sabia se eu era padre, porque tinha túnica, porque me pendia uma estola roxa dos ombros, nem porque se ajoelhara em vez de sentar-se! Não distinguia padres de frades, evangelistas de apóstolos! Não sabia o Acto de Contrição, desistira da catequese, da Missa, dos Sacramentos! Sabia o Pai Nosso e o nome da Igreja: do Carmo.
Fora às JMJ Madrid 2011!
Achou oportuno falar com alguém sobre elas. Perdido, de férias em casa não encontrara interlocutor. Por entre as brumas duma sociedade que deixou de ser cristã descobriu uma igreja, entrou, tacteou e ajoelhou-se. Eu estava ali. Preocupado, estava ali. Preocupam-me estas questões da transmissão da fé. Preocupam-me os jovens atravessando um mar cultural plural sem saber centrar o seu coração e vida na vida e coração de Jesus. Preocupam-me as nossas infidelidades ao Evangelho que a todos ferem – e a eles mais! –, e as infidelidades aos problemas reais das pessoas; umas e outras atiram os jovens para fora da barca e causticam o futuro da fé.
Antes, num antigamente mais antigo, não havia alternativa à fé: nascia-se cristão e ali se medrava, definhava e por fim era ainda ali que se ouvia a Última Encomendação. Ao longo do rio da vida as soluções, as ofertas e possibilidades irrompiam esparzidas com água benta. Não assim hoje. A Igreja perdeu naturalmente esse poder. No ocidente o cristianismo já não pode apresentar-se como religião natural, onde se entra porque é assim, porque é natural que se entre.
(Não li eu o Bispo do Porto durante as JMJ dizer que o Cristianismo vive a sua pior crise de sempre e que só se salva refundando-se? – sim, creio que li, mas como era num jornal laico…)
Entrámos numa nova era da sementeira da Palavra. O campo é vastíssimo: um continente inteiro e diferenciado! Cabe-nos semear a Palavra em cálidas experiências de comunhão com Jesus, homem e Deus aberto a todos os homens e mulheres. Creio que o futuro exige quem saiba dizer e testemunhar o encontro e o diálogo com Jesus e o compromisso que implica a entrega de vida aos demais. É isso que venho pressentindo quando me pedem palavras de fé verdadeira, caminho com afectos, diálogo de comunhão, compromisso radical.
Não saberei dizer donde surgirão os homens e mulheres com força interior para avançar para o novo continente de missão. Mas sei que ainda não é tempo de depreciar, porquanto nos diz o Apóstolo João: «Escrevo-vos, jovens, porque vencestes. Porque sois fortes. Porque a Palavra de Deus está em vós.»
Encerradas as JMJ restaram 250 000 jovens em Madrid. Dum palco alguém clamou então por vinte mil jovens sacerdotes para evangelizar a China. Subiram ao palco cinco mil rapazes e 2.300 raparigas. Não creio que todos sejam ordenados, mas o caminho de evangelização daquele país-continente parece estar recomeçado. É hora de nascer o dia do novo continente de missão: os jovens. Quem se lhe dedicará? Quantos corações serão necessários para o percorrer?

(Declaração de interesses: Participei em três JMJ: Santiago de Compostela, Paris e Roma. Indirectamente em Colónia e Madrid.)

[14 de Setembro de 2011]

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