Conventos
Há coisas que lemos e não registamos
logo. Por estes dias lia eu um jornal diário, não sei qual; sei que
um conferencista que creio estrangeiro dizia algo que hoje deu à
praia da minha memória. Dizia mais ou menos assim: como na Idade
Média precisamos de conventos para regressarmos ao lugar onde se lê.
Hoje já não se lê. Hoje discute-se muito, mas muito pouco de
substantivo. Sabe-se umas coisas, mas não se sabe reflectir.
Não sei se falava da nossa realidade,
digo, da portuguesa, ou se, como agora se diz, falava desta realidade
globalizada que é a vida deste pequeno globo azul. Sei, porém, que
tem razão. São necessários remansos e oásis em que as horas
passem sem passar, em que se possa entrar sem pressa para sair, em
que se possa estar, em que nos possam(os) encontrar. Hão-de ser
espaços austeros que não completamente despidos nem agressivos,
capazes de dispensar o superficial e persuasivos. Espaços de advento
e de encontro, espaços que deixem descansar os livros sobre os
joelhos e dêem tempo para juntar as letras. Espaços de calma e
revelação, de descoberta e projecção, sólidos contra toda a
vertigem, solícitos para com as fomes de calma, de silêncio, de
reflexão.
Faltam, estou de acordo, locais que nos
ensinem a lermo(-no)s no silêncio.
Urna
André Lemaire sabe ler pedras. É uma arte que eu
não sei. Quero dizer sabe decifrar inscrições antigas; em
aramaico, suponho, será uma delas. Andava o nosso investigador de
férias em Jerusalém e tropeçou numa urna (um ossário para se ser
mais preciso). Tropeçou é uma maneira de dizer, cruzou-se,
mostraram-lhe...
O ossário que ao que parece é do primeiro século
da nossa era tinha uma inscrição que ainda ninguém lera (lera, mas
não entendera). A inscrição dizia: «Tiago, filho de José, irmão
de Jesus». Jesus, crê-se, seria o nazareno. O nosso.
Escreveu-se muito, falou-se muito. Mas que
conclusões tira o Professor daqui?
- O Professor conclui que se encontrara a primeira prova física (tocável) extrabíblica da existência de Jesus (ora ali estava uma boa notícia...). Já existiam provas testemunhais, como os testemunhos de Flávio Josefo, mas isso são testemunhos e os testemunhos sempre podem ser manipuláveis, isto é, reescritos recopiados ou reinterpretados por fontes cristãs. E as pedras não...
- Conclui também que se Tiago era irmão de Jesus, então a Mãe de Jesus não teria sido Virgem.
Mais à frente o estudo do Professor Lemaire acaba
dizendo que a sua prova não é cem por cento infalível. Em
Jerusalém existiam muitos Tiagos, e entre tantos Tiagos algum
poderia ter sido filho de um qualquer José e irmão de um qualquer
Jesus. A isto há ainda que acrescentar que, por vezes, «irmão»
queria dizer simplesmente «primo» ou «amigo». E pode ainda
dizer-se que, mesmo que a inscrição seja verdadeira, isso poderia
apenas confirmar o que dizem algumas tradições: José – esposo de
Maria e pai putativo de Jesus – teria filhos doutro matrimónio!
Não sei onde esteja a verdade. Nem interessa. Do
ponto de vista da fé a tangibilidade das coisas não acrescenta
nada. A fé não se suporta em túmulos, graais, lençóis ou
madeiros que só podem ser muletas, apenas muletas. Nunca são o
caminho. São provas que não provam, embora a fé cristã, obvia e
claramente, se sustente em Jesus verdadeiro homem e verdadeiro Deus.
Quer dizer, existiu mesmo, nasceu mesmo! Nasceu por obra e graça do
Espírito Santo. Um dia o Espírito nos há-de dar a entender
claramente tudo!
Crime
Andava o Crime do Padre Amaro esquecido até que
um realizador mexicano o descobriu e filmou. No México onde foi
realizado deu brado e escândalo. Aqui parece passar desapercebido.
Não o li, não o vi e as referências que tenho são de outros.
Inclusivé chegam por outros as palavras de Carlos Carrera, o
realizador, afirmando que a Igreja não quer deixar-se governar por
leis humanas. Lá terá as suas razões para dizer o que disse, mas
também não percebo como pode querer que nos governem leis humanas
quando a Igreja não é puramente humana. Percebo que Carrera queira
fazer crítica social – como Eça fez –, não se compreende que
afirme o que afirma... a não ser por desconhecimento. E também
percebo que já não sendo católico sugira o que sugere. Mas assim
como ao (já) não católico Carrera eu não sugiro ou recordo leis –
a não ser as que nos são comuns –, como pode ele falar para
aquilo a que (já) não pertence? Porém, já nem isso me
escandaliza.
Anjo
Em Entre-os-Rios já lá está o monumento. Ainda
não está inaugurado, mas já lá está.
Eu sempre achei que deveria haver memória da
tragédia da Ponte Hintze Ribeiro, e um monumento é uma maneira de
não deixar que a memória morra. (Eu teria deixado um pegão
denunciador!, mas talvez não pudesse ser ou fosse demasiado
ameaçador!). O monumento é um Anjo de doze metros de altura, feito
de bronze e com um banho de ouro. Os autores – Henrique Coelho e
Laureano Ribatua – dizem que o Anjo é o Anjo Gabriel e quer
simbolizar a paz. Eu acho mais que deve ser o Anjo da Ponte.
O que a mim me surpreendeu nas imagens que vi foi
a comoção do Anjo. O Anjo da Ponte tem uma lágrima ao canto do
olho! É pequena, mas uma lágrima pequena é sempre uma lágrima.
Significa isso que também o Céu chorou quando todos choramos por
causa da tragédia de Entre-os-rios? Sim, creio que sim. Chorou e
ainda chora. E com todos e mais que todos chorou o Anjo encarregado
de fazer a ponte entre Deus e aqueles que morreram.
Ao ver as imagens da notícia não pude não
lembrar-me que não andamos sós. Alguém – ensinavam-nos em
pequenos – anda sempre connosco. É o nosso Anjo! E ensinaram-me a
falar com Ele. Fala-se assim: Santo Anjo da minha companhia,
guardai-me de noite e de dia. E também: Santo Anjo do Senhor, meu
zeloso guardador, pois a ti me confiou a piedade divina; hoje e
sempre me governa, rege, guarda e ilumina.
Alguém me há-de perguntar porque não guardou
Ele os que se sepultaram no rio. Porém, algum dia, estou certo,
perceberemos bem como bem os guardou, nunca os desamparou, nunca
deles se ausentou. Nem naquela (aparente) hora má!
1’ de sabedoria
Um comerciante veio ver o Mestre num estado de
grande desalento; e disse-lhe que, em frente à sua mercearia alguém
inaugurara um enorme armazém que lhe viria a arruinar os negócios.
Sua família possuía aquela loja há quase um século, e perdê-la
seria para ele a ruína total – isto é mais que certo, dizia –,
porque não tinha habilitações para mais, só sabia ser merceeiro!
O Mestre deu-lhe o seguinte conselho: – Se você
tiver medo do seu rival vai ter-lhe ódio também, e o ódio, então,
esse sim, vai ser a sua ruína!
-- Mas que hei-de fazer?, perguntou aflito e
desolado o pobre do merceeiro.
-- Cada manhã, disse o Mestre, saia para a rua e,
da calçada, abençoe a sua loja; e depois volte-se para o armazém e
abençoe-o também.
-- E como hei-de abençoar quem me quer mal,
perguntou o homem aterrorizado?
-- Toda a bênção que lhe desejar há-de recair
sobre você, ensinou o Mestre![19 de Novembro de 2002]
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