Cóbói
Há um filme-documentário que se chama Bowling for Columbine. Foi
realizado por Michael Moore. Pouco mais sei do filme. Ver não o vi, e pouco li
sobre ele. Do que sei o que mais me prende é a fotografia que acompanha a
promoção do filme. A fotografia mostra um homem, forte, com uma barbicha rala,
óculos à Spilberg, boné à beisebol. Deve ser o realizador, mas não sei. O homem
sorri, e parece dizer: «apanhei-vos, não?».
Falta dizer que o homem tem ao ombro uma câmara de filmar, na mão
direita; e ao ombro também uma carabina, na mão esquerda. «Apanhei-vos, não»,
parece dizer enquanto sorri.
Vou dizer-vos o que me faz lembrar a fotografia. Lembra-me um cowboy.
Sim, um cóbói dos filmes. Daqueles que no duelo final tem as duas únicas armas
e sabe que vai ganhar, que vai matar o adversário («Apanhei-vos, não?»). E eu
imagino-me frente ao cóbói de Columbine e vou disfarçar. Vou fazer de conta que
não o vi. Como não tenho armas eu sei que o seu código de honra o impede de
disparar. Mas eu sei que ele me vai apanhar. E eu estou a imaginar-me apanhado
por ele. Primeiro aponta-me a arma e vai pedir o meu testemunho («O que é que o
senhor pensa de...»), e aí eu já tenho uma arma porque ninguém gosta de dizer
que não pensa nada sobre qualquer coisa. E aí ele ficará à espera. À minha
espera. Emboscado. E eu estou a imaginar-me a tentar protelar... E estou a
vê-lo a apontar-me a carabina e a dizer-me: «vai disparar ou não para a
câmara?...». E eu ainda não sei se vou.
Pois, pode ser ameaçador; posso ser maçador. Mas o homem da fotografia do
filme parece-me o cóbói que sabe tudo e que vai ganhar o duelo. Sinceramente,
apetece-me deixá-lo ganhar, não ter opinião nenhuma para dar.
Reportagens
Há um tiroteio?, chamam-se as televisões. Há um desconforto com a
professora da escola do bairro?, chamam-se as televisões. Apareceram três
pombas mortas, um grilo e uma doninha?, chamam-se as televisões. Os drogados
chateiam, traficam e a polícia não faz nada?, chamam-se as prisões. As claques
dos clubes assaltam áreas de serviço na auto-estrada?, chamam-se as televisões.
O padre da freguesia não aceita as imposições duma comissão que não vai à missa
com o pároco?, chamam-se as televisões. Os ucranianos beberam os copos a mais e
andaram à navalhada?, chamam-se as televisões.
É impressionante! Se não houver televisão parece que não existimos.
Porque se existimos é impossível não nos verem na televisão.
E lá aparece o cóbói de Columbine («Apanhei-vos, não?»).
Jornalistas
Tinha eu escrito isto quando M. Sousa Tavares escreveu no PÚBLICO de 9 de
Abril de Abril sobre os novos jornalistas. O título era «O massacre do
jornalismo». Como fala do que sabe, do que conhece por dentro eu deixo-o falar.
Há apenas uma diferença entre o que escrevi e os jovens jornalistas de que fala
M. Sousa Tavares: afinal quem parece deter as armas (a câmara e a carabina) não
são eles mas os interesses económicos que aparecem disfarçados sob rostos de
proprietários de jornais e televisões.
Agora o cóbói é outro, mas a ameaça é a mesma («Apanhei-vos, não?»).
Por favor
Nem de propósito. No sábado, dia 10, as televisões mostraram uma louca a
apontar uma arma à cabeça duma criança, sua filha. A coisa passou-se nos
Estados Unidos e foi filmada durante horas. Nós vimos a arma apontada à cabeça
do menino; vimos o chefe dos polícias explicar porque deram um tiro na cabeça
da mãe sem ferirem o menino; e vimos o polícia (parece-me o que deu o tiro na
mulher) com o menino no colo tirando-o do lugar da tragédia; e vimos o polícia
ajoelhar, ceder à pressão, e implorar que os jornalistas se afastassem e não o
ameaçassem com as suas armas letais, as câmaras.
Definitivamente esta guerra civil está complicada. Não podemos viver sem
ela, e vendo-a impassíveis e sem critérios estamos a alimentar o monstro!
Por momentos o cóbói foi o polícia, mas depois o jornalista foi outra vez
cóbói e atirou-se ao polícia e ao menino («Apanhei-vos, não?»).
1’ de sabedoria
Havia regras no mosteiro,
mas o Mestre vivia prevenindo os seus discípulos
a que estivessem atentos
contra a tirania das leis!
A obediência observa e guarda as regras, dizia ele,
e, acrescentava logo depois:
mas só o amor sabe quando se deve quebrá-las.
[20 de Maio de 2003]
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