Claraval
A vinte e cinco quilómetros de Coimbra fica Lorvão onde
pontifica o seu mosteiro. Neste Verão visite Lorvão, que é uma boa oportunidade
de ir para fora cá dentro. Lorvão foi mosteiro que seguiu a Regra de S. Bento,
e depois, mais tarde, a de S. Bernardo. Que encanta em Lorvão? A mim, o facto
de me parecer um pequeno Claraval, ou Clairvaux, melhor dito.
Quando S. Bernardo reformou os cistercienses, abandonou
Citeaux abraçando uma pesada cruz de madeira. Após uma longa marcha o abade
Bernardo deteve-se num vale ameno e bem protegido, bom de águas, luz e ares, a
que deu o nome de Claraval.
Durante muitos anos desejei conhecer Claraval, e durante
mais anos me inquietei por conhecer Lorvão. Conheci. Não será certamente
comparável a Claraval, mas um texto quinhentista descreve-o como um profundo
vale aberto de soutos coberto. Lorvão é claramente claraval. A água abunda, o
verde também. O clima é ameno, e a luz... a luz convida à saudade. O mosteiro
aparta-se da povoação por uma ribeira que risca a separação, deixando dum lado
jardins e do outro as ruelas medievais.
Não é só o clima, a paz e serenidade que em Lorvão nos falam
de luz, e nos chamam a saborear este pequeno claraval. Ali brotou a dedicação a
Deus e à Humanidade. Naquela clara luz ainda tremeluzem e ecoam os salmos e os
cânticos de monges e monjas, a mestria da pena de muitas monjas, a música do
órgão e do cravo, as iluminuras dos preciosos códices e incunábulos que hoje
enriquecem bastos museus de Portugal.
A sanha dos liberais e a ferocidade de procuradores e
credores cerraram uma cortina negra sobre o claraval português. Onde houve luz
ganhou raízes a negra fome e a decrepitude. Mas ainda há luz em Lorvão. E vale
a pena ir lá ensaiar o olhar e a alma em fulgores e matizes que jamais se encontram em outros
vales. Vale mesmo a pena.
Prisão
Os juízes de Sabadell, Espanha, tomaram uma iniciativa
inovadora. Propuseram que os jovens delinquentes, entre os 16 e 25 anos,
pudessem redimir as suas penas relativas a crimes não graves, percorrendo o
Caminho de Santiago. Quem for condenado a penas inferiores a três anos poderia
redimir-se fazendo o caminho e dedicando-se ao seu cuidado e conservação.
A proposta foi bem recebida pela sociedade espanhola. E tem
pelo menos uma virtude: considerar que todo o ser humano — mais ainda os
jovens! — pode remir as suas penas de forma positiva, ressarcindo a sociedade e
(re)fazendo-se como pessoa. Na verdade, a origem do Caminho de Santiago é
exactamente a remissão das penas e o acertar de contas com a justiça. Foi assim
que se começou a peregrinar a Santiago. Caminhava-se desde toda a Europa,
confluindo para Compostela, em busca do perdão para os pecados. Caminhava-se
para mudar. Mudava-se de lugar e a geografia da alma. Muitos foram os que
caminhando deram terras novas a almas mesquinhas que os habitavam. Somos
herdeiros destes peregrinos da geografia espiritual compostelana. Que também os
jovens delinquentes espanhóis possam peregrinar, buscando-se a si mesmos, é o
reconhecimento de que os espíritos de época alguma não se agrilhoam, e que a
ascese corporal é alavanca de mudança.
Fogos
Os incêndios assaltaram as televisões. À falta do melhor
noticia-se o pior. Sempre assim foi. Não acredito que alguém tenha visto tudo,
tenha testemunhado tudo. Contaram-me que o Canal Um, no telejornal do passado
dia 8 de Agosto, contou a seguinte história: uma velhinha – como tantos outros
– chorava a sua impotência perante o fogo que lhe levara tudo e a deixara com
um punhado de terra queimada. A velhinha chorava e a câmara filmava. Então, a
jornalista entrevistou a senhora. Mas a mulher, que não tinha forças para
chorar, respondia com espantos e monossílabos. Mas a zelosa profissional não
desistiu e atirou a matar: «Está zangada com Deus, não é minha senhora?». Oh!
Que maravilhosas inquietações ocupam os cérebros dos nossos jovens jornalistas!
Obviamente que até contra Deus a senhora poderia estar. Tinha razões para isso!
Acaso saberá a jornalista o valor do punhado de terra queimado?
Mas o que surpreendeu foi a resposta da idosa, que stopando
os soluços e raivas declarou: «Não menina. Não estou zangada com Deus, não. Ele
até é meu amigo.». E a senhora jornalista ficou calada, sem palavras, muda.
Ainda deve estar a refazer-se.
Eu acredito que vale a pena abrir a televisão. Mesmo sem
querermos, mesmo sem contarmos, onde menos se espera, quando todos promovem o
contrário, aparecem testemunhos de humildade e de fé. E incêndios queimando
preconceitos de jovens mentes inquinadas antes de tempo.
Comer
Há algo que me incomoda no comer. Digo, no comer sozinho.
Preciso melhor: em certas reportagens que vejo nos jornais. Jornais há que para
encher as páginas quentes do Verão, nos mostram as habilidades culinárias de
certas figuras públicas. Até aí tudo bem. Mas há uma coisa que eu não percebo.
Por que razão é que alguns se dão ao trabalho de nos dizer que sabem cozinhar?
Um jornalista mostrou saber alguma coisinha da arte cozinhando uma massa de
camarão. Óptima, pelos vistos. Eu só não percebo porque a quinta das
fotografias, a última, o mostra a comer sozinho? Porque será. É certo que os
tempos que correm nos forçam a comer sozinhos. Cada vez mais comemos menos
juntos. É sina dos tempos concerteza, mas o melhor condimento duma comida é a
companhia.
Já não sabemos comer, ainda que cada vez mais saibamos
cozinhar melhor. A que saberá uma boa comida comida na solidão. A que saberá
comer isolado? É sem dúvida importante saber cozinhar, saber como se faz; mas é
mais importante saber parti-lo, comungá-lo com.
Que adiantará a arte se ninguém a usufrir? Será que é
legítimo que o artista devore a sua arte sem que possamos apreciá-la, ou nos
limitemos a ver comê-la? Tempos raros estes, sem dúvida! Da comida fazemos
arte, e depois só temos arte para a partilhar com a câmara do fotógrafo!
1’ de sabedoria
Certa senhora queixou-se ao mestre de que o dinheiro não lhe
trouxera qualquer felicidade. O mestre respondeu.
– Pelo que diz, julga que o luxo, o conforto e o prazer
sejam ingredientes que se misturam para fazer a felicidade... No entanto, minha
filha, tudo de que você precisa para ser feliz é entusiasmar-se por uma causa
qualquer.
[26 Agosto de 2003]
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