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terça-feira, 25 de junho de 2013

Notas de Roda-pé


Claraval
A vinte e cinco quilómetros de Coimbra fica Lorvão onde pontifica o seu mosteiro. Neste Verão visite Lorvão, que é uma boa oportunidade de ir para fora cá dentro. Lorvão foi mosteiro que seguiu a Regra de S. Bento, e depois, mais tarde, a de S. Bernardo. Que encanta em Lorvão? A mim, o facto de me parecer um pequeno Claraval, ou Clairvaux, melhor dito.
Quando S. Bernardo reformou os cistercienses, abandonou Citeaux abraçando uma pesada cruz de madeira. Após uma longa marcha o abade Bernardo deteve-se num vale ameno e bem protegido, bom de águas, luz e ares, a que deu o nome de Claraval.
Durante muitos anos desejei conhecer Claraval, e durante mais anos me inquietei por conhecer Lorvão. Conheci. Não será certamente comparável a Claraval, mas um texto quinhentista descreve-o como um profundo vale aberto de soutos coberto. Lorvão é claramente claraval. A água abunda, o verde também. O clima é ameno, e a luz... a luz convida à saudade. O mosteiro aparta-se da povoação por uma ribeira que risca a separação, deixando dum lado jardins e do outro as ruelas medievais.
Não é só o clima, a paz e serenidade que em Lorvão nos falam de luz, e nos chamam a saborear este pequeno claraval. Ali brotou a dedicação a Deus e à Humanidade. Naquela clara luz ainda tremeluzem e ecoam os salmos e os cânticos de monges e monjas, a mestria da pena de muitas monjas, a música do órgão e do cravo, as iluminuras dos preciosos códices e incunábulos que hoje enriquecem bastos museus de Portugal.
A sanha dos liberais e a ferocidade de procuradores e credores cerraram uma cortina negra sobre o claraval português. Onde houve luz ganhou raízes a negra fome e a decrepitude. Mas ainda há luz em Lorvão. E vale a pena ir lá ensaiar o olhar e a alma em fulgores  e matizes que jamais se encontram em outros vales. Vale mesmo a pena.

Prisão
Os juízes de Sabadell, Espanha, tomaram uma iniciativa inovadora. Propuseram que os jovens delinquentes, entre os 16 e 25 anos, pudessem redimir as suas penas relativas a crimes não graves, percorrendo o Caminho de Santiago. Quem for condenado a penas inferiores a três anos poderia redimir-se fazendo o caminho e dedicando-se ao seu cuidado e conservação.
A proposta foi bem recebida pela sociedade espanhola. E tem pelo menos uma virtude: considerar que todo o ser humano — mais ainda os jovens! — pode remir as suas penas de forma positiva, ressarcindo a sociedade e (re)fazendo-se como pessoa. Na verdade, a origem do Caminho de Santiago é exactamente a remissão das penas e o acertar de contas com a justiça. Foi assim que se começou a peregrinar a Santiago. Caminhava-se desde toda a Europa, confluindo para Compostela, em busca do perdão para os pecados. Caminhava-se para mudar. Mudava-se de lugar e a geografia da alma. Muitos foram os que caminhando deram terras novas a almas mesquinhas que os habitavam. Somos herdeiros destes peregrinos da geografia espiritual compostelana. Que também os jovens delinquentes espanhóis possam peregrinar, buscando-se a si mesmos, é o reconhecimento de que os espíritos de época alguma não se agrilhoam, e que a ascese corporal é alavanca de mudança.

Fogos
Os incêndios assaltaram as televisões. À falta do melhor noticia-se o pior. Sempre assim foi. Não acredito que alguém tenha visto tudo, tenha testemunhado tudo. Contaram-me que o Canal Um, no telejornal do passado dia 8 de Agosto, contou a seguinte história: uma velhinha – como tantos outros – chorava a sua impotência perante o fogo que lhe levara tudo e a deixara com um punhado de terra queimada. A velhinha chorava e a câmara filmava. Então, a jornalista entrevistou a senhora. Mas a mulher, que não tinha forças para chorar, respondia com espantos e monossílabos. Mas a zelosa profissional não desistiu e atirou a matar: «Está zangada com Deus, não é minha senhora?». Oh! Que maravilhosas inquietações ocupam os cérebros dos nossos jovens jornalistas! Obviamente que até contra Deus a senhora poderia estar. Tinha razões para isso! Acaso saberá a jornalista o valor do punhado de terra queimado?
Mas o que surpreendeu foi a resposta da idosa, que stopando os soluços e raivas declarou: «Não menina. Não estou zangada com Deus, não. Ele até é meu amigo.». E a senhora jornalista ficou calada, sem palavras, muda. Ainda deve estar a refazer-se.
Eu acredito que vale a pena abrir a televisão. Mesmo sem querermos, mesmo sem contarmos, onde menos se espera, quando todos promovem o contrário, aparecem testemunhos de humildade e de fé. E incêndios queimando preconceitos de jovens mentes inquinadas antes de tempo.

Comer
Há algo que me incomoda no comer. Digo, no comer sozinho. Preciso melhor: em certas reportagens que vejo nos jornais. Jornais há que para encher as páginas quentes do Verão, nos mostram as habilidades culinárias de certas figuras públicas. Até aí tudo bem. Mas há uma coisa que eu não percebo. Por que razão é que alguns se dão ao trabalho de nos dizer que sabem cozinhar? Um jornalista mostrou saber alguma coisinha da arte cozinhando uma massa de camarão. Óptima, pelos vistos. Eu só não percebo porque a quinta das fotografias, a última, o mostra a comer sozinho? Porque será. É certo que os tempos que correm nos forçam a comer sozinhos. Cada vez mais comemos menos juntos. É sina dos tempos concerteza, mas o melhor condimento duma comida é a companhia.
Já não sabemos comer, ainda que cada vez mais saibamos cozinhar melhor. A que saberá uma boa comida comida na solidão. A que saberá comer isolado? É sem dúvida importante saber cozinhar, saber como se faz; mas é mais importante saber parti-lo, comungá-lo com.
Que adiantará a arte se ninguém a usufrir? Será que é legítimo que o artista devore a sua arte sem que possamos apreciá-la, ou nos limitemos a ver comê-la? Tempos raros estes, sem dúvida! Da comida fazemos arte, e depois só temos arte para a partilhar com a câmara do fotógrafo!

1’ de sabedoria
Certa senhora queixou-se ao mestre de que o dinheiro não lhe trouxera qualquer felicidade. O mestre respondeu.

– Pelo que diz, julga que o luxo, o conforto e o prazer sejam ingredientes que se misturam para fazer a felicidade... No entanto, minha filha, tudo de que você precisa para ser feliz é entusiasmar-se por uma causa qualquer.

[26 Agosto de 2003]

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