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sábado, 1 de março de 2014

Um problema de escuta, não de ouvidos


Os investigadores duma universidade inglesa publicitaram um recente estudo linguístico que tem a sua curiosidade, a de se saber quais teriam sido as primeiras palavras da língua inglesa e quais seriam as que nos próximos tempos mais rapidamente cairiam em desuso.
A linguagem tem o seu quê. Afinal de contas é pela palavra que comunicamos, dizemos sentimentos e preços, estados de alma e damos ordens, dizemos afectos e construímos ciência, seguramos aviões no ar e os navios vogam os mares, lançamos uma criança ao mundo e dizemos a beleza e a salvação. Se as palavras desaparecem é porque desaparece o campo em que são semeadas e dali já não seja previsível colher frutos ou tirar proveitos. Neste Domingo, a voz do Pai diz-nos: Escutai!

Medo de escutar
Temos medo de escutar. E mais medo ainda do silêncio. Nenhum homem como o de hoje escutou tanto; ninguém, desde as origens, disse ou ouviu tantas palavras como nós. Desde que os primeiros sons de entendimento foram ditos na primigénia caverna ou nas pradarias da caça comum que ouvimos palavras que nos agradam e saboreamos com gosto, e outras que nos aborrecem, razão pela qual nós desligamos os canais de comunicação e se possível partimos para outra.
Existem palavras que nos metem medo; às vezes, muito medo! São palavras dos pais que não transigem com os nossos desejos e gostos, ou palavras dos superiores que exigem de nós atenção e reflexão assertivas, ou palavras de leis que alinham e recentram as relações humanas, ou palavras da Igreja que ensinam e dão sentido à vida, transmitem valores humanos e cristãos, palavras nem sempre de veludo, porque, de quando em vez, os nossos ouvidos hão-de ser confrontados pelo destino final e elevado da existência.

Um abismo atrai outro abismo
Quantas vezes essas palavras despertam medos solapadamente adormecidos na nossa psique?
Sim, não é bem um medo de palavras. É antes um medo a nós mesmos, pois o fim é como um abismo, dá vertigem.
Já lá diz um Salmo que um abismo atrai outro abismo, pelo que se entenderá aqui que o da palavra clama pelo da Palavra. O da palavra criada pelo do Verbo incriado.
A palavra humana tem a ousadia de dizer a divina. Como não nos dará isso vertigem?, como não tremeremos ao sentir que bastas vezes nos havemos de elevar prontamente ao nível da existência que nos corresponde como seres humanos de apelo divino?, e ainda mais: nós somos discípulos de Jesus, a Palavra dita em eterno silêncio, e que em silêncio há-de ser escutada: não nos dará esse estatuto um responsabilidade maior de ouvir e entender o que aos outros é permitido ignorar?

Urgir, escutar e arrancar
A Quaresma é boa para a escuta. Urge escutar. Urge arrancar dos ouvidos a inflação de palavras, e do coração as raízes do medo. Urge semear campos de silêncio ao lado das florestas de palavras. Sim, floresçam fecundos campos de silêncio onde brotem frescos jardins de palavras com sentido e fragâncias que temperem e reverdesçam a alma. Esta Quaresma pode ser uma boa oportunidade para arrancar o medo daninho, todo o medo e qualquer medo que afogue o silêncio e destempere a palavra.

Escutai!
Quando por fim a voz do Pai se fez ouvir (terminava assim a profunda seca de séculos em que Deus não se deixara ouvir!), disse: Escutai!
Não foi fácil acolher a proposta de Deus. Nunca é fácil escutar. Mais parece tarefa de subalternos, ou não tivessem os reis conselheiros a quem por vezes ouvem...
Sim, os primeiros discípulos da Palavra ouviam, mas não entendiam. Habituados a escutar interpretações de segunda mão, mais afeitas ao interesse próprio que ao exigente serviço da verdade e da justiça, eles não entendiam!
É mais fácil viver a fé construída pelas nossas ideias e interesses que aquela que Jesus pregou, mais austera e directa ao coração da verdade!
Para algo Deus fala. Para algo deve ser ouvido, como no caso em que Jesus começou a falar depois de tanto tempo sem se ouvir a Voz. Mas, então, não é verdade que muitas vezes não fazemos o que Ele fala e nós ouvimos: Fala de cruz, e nós propomos deserção! Fala de humildade, e queremos empanzinar de poder!
A Palavra é o protagonista. Nós o ouvido e os actores secundários. É por isso que no Evangelho ficou o Escutai!, é por ser preciso ouvi-l’O só a Ele, pois, lamentavelmente, não é só a Ele que nós escutamos!

[Chama do Carmo - 8 de Março de 2009]

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