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domingo, 1 de dezembro de 2013

Notas de Roda-pé

A prateleira mais alta
(Ideia bem comprada!)

À medida que os dias de Páscoa vão avançando vai esmorecendo a força do fogo novo que inopinadamente rebentou ainda a noite de Páscoa estava negra. Não é fácil manter acesa a chama da fé! E assim como um fogo, assim a fé. Arde o fogo e resta a cinza que se acumula sobre as brasas. Há cinza. E com sorte haverá brasas por debaixo! À medida que os dias da Páscoa crescem parece que o fogo que emergiu das cinzas pretéritas e com as quais antes nos ungíramos se vai acalmando, apagando.
À medida que os dias de Páscoa crescem murcham as flores e rebentam frutos pequeninos como amêndoas pequeninas, e então os pregadores pregam-nos urgências para mantermos pura a renovada juventude da alma. E assim, à medida que murcha o calor do fogo e esmoece o viço das flores, urge invocar o Espírito Santo de Deus, para que, irrompa poderoso como um fogo caindo do alto em cachoeira sobre nós!
Passam as semanas. A dúvida instala-se. Poucos são já os que se dão ao trabalho de ir mar adentro, impelidos pelo vento da notícia da Ressurreição. Passadas quase sete semanas, quem ainda se sente barco impelido ou testemunha arrebatada pelo inaudito?
Não é fácil manter acesa a chama da fé!
(É aqui que compro a ideia ao P. Leal!)
Como estava atrasado no meu artigo o meu amigo sussurrou-me em linha e meia um conto, que eu contarei mais pelo exercício de adivinhar que o de ouvir. Ora, era uma vez…
O supermercado das religiões. Pois é, segundo aquele conto bendito existem supermercados das religiões. E são muitas as religiões! (Quero crer que as embalagens mais bonitas e de excelência de grafismo nem sempre são as que embalam o melhor produto; digo, a melhor religião!) De resto, todos sabemos que existem três coisas que nem Deus sabe. Uma delas é o número de religiões! Se acrescentarmos alguns sucedâneos a que basta juntar água à maneira de baptismo, então, fiuuuuu! Fiuuuuuuuuuu, mesmo! São tantas as religiões existentes que dão para encher quilómetros e quilómetros de prateleiras, que como sabemos possuem vários níveis ou andares.
Ora, segundo este conto que começou era uma vez, existe um supermercado das religiões, onde se apresentam as diferentes religiões. Logo à entrada estão uns pacotinhos bonitinhos. Quem comprar tem direito a dois pauzinhos de incenso produzido em Alverca, mas directamente importados de uns inalcançáveis monges do Tibete! Um pouco ao lado, os pacotinhos são maiorzinhos, em tons azuis, e afirmam conter água do rio Jordão; quem comprar e beber vai sentir-se limpo e renovado. A verdade é que a prateleira é enorme o que nos deixa a leve suspeita que se toda aquela água fosse do rio Jordão ele será – digo será, porque nunca o vi! – da dimensão do Oceano Índico! Outra prateleira ostenta umas caixinhas cor de terra, que prometem ser biodegradáveis. Ler são poucos os que lêem aqueles caracteres orientais, mas todos acabam percebendo que levando levarão para casa uma réplica da malga de Buda, aquela mesma pela qual ele bebeu da água do rio antes de alcançar a iluminação!
E as prateleiras sucedem-se e sucedem-se e sucedem-se. As pessoas como é comum ver-se nos supermercados habituais circulam por aqui e por ali. Há famílias, gente jovem, adolescentes, velhos, muitos velhos e sobretudo maduros de meia-idade. Uns depenicam aqui, outros acolá. Uns vão direitos ao lugar do costume porque só consomem daquela marca! Outros rondam, rondam indecisos. E é assim que uns entram e saem logo. Outros não. A maioria, porém, lê as instruções, faz imensas perguntas, procura inteirar-se das propriedades curativas e dos efeitos secundários. África e Ásia são as origens mais procuradas, mas mais as segundas que as primeiras. E se a embalagem prometer peace ou love – ou melhor ainda, peace and love! – a saída em larga escala está garantida. Mesmo que seja proveniente de regiões que nunca conheceram a paz, nem saibam o que é o amor! Uma coisa é certa: estão ali todas as religiões do mundo. E entre elas não são poucas as que prometem saber tudo sobre o outro! Estas são muito procuradas, quanto mais não seja pelo GPS made in Taiwan cuja voz angelical garante conhecer o Trilho do Céu!
Existem ainda estantes estranhas e outras horripilantes. Existe por exemplo a Estante do Manuseio da Cobra, que atrai homens e mulheres religiosos e muito puritanos, praticantes do manuseio de cascavéis como prova de pureza. (Apre! e se a cobra não souber contar as
três sílabas da palavra impuro?)
Existe um erro de marketing em que nunca se incorre no supermercado das religiões: antes que se publicite em larguíssima escala uma nova religião, já ela está nas prateleiras pronta a consumir e a repor em caso de repetição do dia 1 de Maio!
Pude reparar que são raros os grupos e mais rara a frequência de famílias. Então, as compostas por mais de duas gerações são raríssimas! Porém, elas existem e por vezes frequentam variadas prateleiras. Quando assim é, nem atendem às incompatibilidades anunciadas nas bulas.
Lá ao fundo, discreta e um pouco na sombra por causa de uma lâmpada que nenhum trabalhador do supermercado conserta, existe uma prateleira onde poucos ousam ir. A distância é enorme e o ambiente parece mal frequentado. Umas velhinhas distribuem chã, mantas e bolachas a desdentados pouco recomendáveis. A custo se acede ao perímetro daquela religião e quando lá se chega tem de evitar-se os projécteis das pombas e vê-se que as mesmas velhinhas são quem no culto lêem as leituras das Escrituras. (E que o sacristão é quase sempre um coxo, ou um meio cego, ou um meio casmurro qualquer e de primeira apanha!) Têm peregrinações a que poucos ligam, um mandamento da caridade que já quase só os arrumadores de carros apreciam. Os seus ministros andam sonolentos e pastosos nas prédicas. Apesar de o serem do Deus vivo! Rara é a estante que não possui uma cruz enorme e frequentemente 14 catorze quadros encimados por mais uma cruz!
Não é fácil chegar ali. Aquela prateleira algo desengonçada e tão alta, quase sempre vazia, obriga um longo esforço de aproximação. E tantas vezes aquele vazio meio sombrio sabe mais a frio que a calor apetecido! Quantas vezes para se lá chegar é necessário abandonar pesos e contrapesos, suspeitas ingénuas e construções preconceituosas que carregamos ao longo da vida! Quantas vezes…

Talvez não seja o lugar mais bonito do supermercado. Mas é ali que muitos vão ao desengano e tantos muitos porque já não têm outra esperança. Mas é provável vir-se de lá renovado pelo Gratuito, esse que prometeu enviar-nos o Espírito que ensinaria toda a verdade.

[20 de Maio de 2012]

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