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sábado, 15 de junho de 2013

Notas de Roda-pé


Cóbói
Há um filme-documentário que se chama Bowling for Columbine. Foi realizado por Michael Moore. Pouco mais sei do filme. Ver não o vi, e pouco li sobre ele. Do que sei o que mais me prende é a fotografia que acompanha a promoção do filme. A fotografia mostra um homem, forte, com uma barbicha rala, óculos à Spilberg, boné à beisebol. Deve ser o realizador, mas não sei. O homem sorri, e parece dizer: «apanhei-vos, não?».
Falta dizer que o homem tem ao ombro uma câmara de filmar, na mão direita; e ao ombro também uma carabina, na mão esquerda. «Apanhei-vos, não», parece dizer enquanto sorri.
Vou dizer-vos o que me faz lembrar a fotografia. Lembra-me um cowboy. Sim, um cóbói dos filmes. Daqueles que no duelo final tem as duas únicas armas e sabe que vai ganhar, que vai matar o adversário («Apanhei-vos, não?»). E eu imagino-me frente ao cóbói de Columbine e vou disfarçar. Vou fazer de conta que não o vi. Como não tenho armas eu sei que o seu código de honra o impede de disparar. Mas eu sei que ele me vai apanhar. E eu estou a imaginar-me apanhado por ele. Primeiro aponta-me a arma e vai pedir o meu testemunho («O que é que o senhor pensa de...»), e aí eu já tenho uma arma porque ninguém gosta de dizer que não pensa nada sobre qualquer coisa. E aí ele ficará à espera. À minha espera. Emboscado. E eu estou a imaginar-me a tentar protelar... E estou a vê-lo a apontar-me a carabina e a dizer-me: «vai disparar ou não para a câmara?...». E eu ainda não sei se vou.
Pois, pode ser ameaçador; posso ser maçador. Mas o homem da fotografia do filme parece-me o cóbói que sabe tudo e que vai ganhar o duelo. Sinceramente, apetece-me deixá-lo ganhar, não ter opinião nenhuma para dar.

Reportagens
Há um tiroteio?, chamam-se as televisões. Há um desconforto com a professora da escola do bairro?, chamam-se as televisões. Apareceram três pombas mortas, um grilo e uma doninha?, chamam-se as televisões. Os drogados chateiam, traficam e a polícia não faz nada?, chamam-se as prisões. As claques dos clubes assaltam áreas de serviço na auto-estrada?, chamam-se as televisões. O padre da freguesia não aceita as imposições duma comissão que não vai à missa com o pároco?, chamam-se as televisões. Os ucranianos beberam os copos a mais e andaram à navalhada?, chamam-se as televisões.
É impressionante! Se não houver televisão parece que não existimos. Porque se existimos é impossível não nos verem na televisão.
E lá aparece o cóbói de Columbine («Apanhei-vos, não?»).

Jornalistas
Tinha eu escrito isto quando M. Sousa Tavares escreveu no PÚBLICO de 9 de Abril de Abril sobre os novos jornalistas. O título era «O massacre do jornalismo». Como fala do que sabe, do que conhece por dentro eu deixo-o falar. Há apenas uma diferença entre o que escrevi e os jovens jornalistas de que fala M. Sousa Tavares: afinal quem parece deter as armas (a câmara e a carabina) não são eles mas os interesses económicos que aparecem disfarçados sob rostos de proprietários de jornais e televisões.
Agora o cóbói é outro, mas a ameaça é a mesma («Apanhei-vos, não?»).

Por favor
Nem de propósito. No sábado, dia 10, as televisões mostraram uma louca a apontar uma arma à cabeça duma criança, sua filha. A coisa passou-se nos Estados Unidos e foi filmada durante horas. Nós vimos a arma apontada à cabeça do menino; vimos o chefe dos polícias explicar porque deram um tiro na cabeça da mãe sem ferirem o menino; e vimos o polícia (parece-me o que deu o tiro na mulher) com o menino no colo tirando-o do lugar da tragédia; e vimos o polícia ajoelhar, ceder à pressão, e implorar que os jornalistas se afastassem e não o ameaçassem com as suas armas letais, as câmaras.
Definitivamente esta guerra civil está complicada. Não podemos viver sem ela, e vendo-a impassíveis e sem critérios estamos a alimentar o monstro!
Por momentos o cóbói foi o polícia, mas depois o jornalista foi outra vez cóbói e atirou-se ao polícia e ao menino («Apanhei-vos, não?»).

1’ de sabedoria
Havia regras no mosteiro,
mas o Mestre vivia prevenindo os seus discípulos
a que estivessem atentos
contra a tirania das leis!

A obediência observa e guarda as regras, dizia ele,
e, acrescentava logo depois:
mas só o amor sabe quando se deve quebrá-las.

[20 de Maio de 2003]

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