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segunda-feira, 2 de julho de 2007

Nadir

O senhor Nadir tem quase 90 anos e um cara de menino, de menino traquina, apesar da barbinha que ostenta. Ele que me perdoe se a afirmação não é um elogio. Mas aqueles olhitos e a cara miúda falam-me dum catraio extasiado com uma tarde de Verão, sem escola e passeada (ou saltada, ou saltibancada) ao ar livre.
É a segunda ou terceira vez que ouço falar dele. A primeira foi num documentário do Canal 2 em que vi uma tela muito enigmática e geométrica que afinal, depois de lhe ser sobreposta uma fotografia, mais não era que uma praça de Lisboa.
Fiquei curioso com o homem.
Agora está na Galeria do Jornal de Notícias e talvez eu passe por lá. Talvez para decifrar a sua pintura tivesse que conhecer a sua geografia e a peregrinação da sua vida. Mas irei só para ver pedaços de cidades que o não são, que são simples telas. Embora mais que telas pintadas, claro.
No JN de 29 de Junho vinha uma entrevista sua. Retiro duas coisas: uma, o nome Nadir foi sugerido ao pai — que ia a caminho do Registo Civil; outros tempos! Outros tempos! — por um amigo cigano. Duas, a sua pintura não é tanto de inspiração mas fruto do trabalho persistente, aturado, sujo, reclamado, insistido, cuidado. Nã, nada disso. Os pintores não pintam de smoking. «Rebolam muito pelo chão», até deveriam ter um espaço «onde poderiam ir agonizando» à espera de melhores dias, de melhores soluções. Diz ele.
O homem leva esta coisa do trabalho tão a peito que, considera, jamais um quadro está terminado.
Eu estou mesmo a vê-lo com formigas nos dedos, quando vê o quadro antigo seu. A vê-lo cheio de imperfeições a exigirem um retoque, uma melhoria, um aperfeiçoamento. Sim, estou mesmo a ver o ciganito — que me perdoe o mestre! — reguila, atrevido, irrequieto, entrando pela casa dum amigo e logo preso a um quadro seu. E a dizer: «Humm! Estas linhas deveriam ser prolongadas, estes contrastes avivados». E, então, fazendo juz à viveza do raciocínio e do olhar juvenil, ele rapa da algibeira um pincel sempre pronto e conclui por ora — só por ora, claro! — a tela inacabada. Que inacabada fica.
Espantosa ideia a do mestre inacabado. Como deve sofrer só por que tem que vender coisas inacabadas, que lhe fogem do alcance e do remate final.
Sim. Pego agora na ideia e viro-a para mim. E dou comigo a ler-me os pensamentos. É isto mesmo que somos, telas inacabadas pelo Criador. Histórias sem fim à vista. Histórias com fim previsto e escrito, mas prolongando-se sempre para mais além do além que nos tocou viver.
É bem verdade. Somos inacabados, nada é ainda perfeito em nós. Ai de nós se a Graça do Mestre Ciganito — perdoe-se-me a ousadia, meu Deus! — não nos for trabalhando, completando, aperfeiçoando. Sim, meu Deus. É bem verdade. As tuas mãos não param desde o início da criação. Não param de me moldar, de moldar o meu barro tosco, o meu barro seco, áspero, resistente, bruto.
Visita-me, Senhor. Entra, por favor em minha casa. Contempla a minha vida, vê o quadro das minhas imperfeições e inacabamentos, repara como estropiei o que me entregaste. Traz um pouco de água que amacie o meu barro, que inunde as minhas resistências, que afogue os meus defeitos. Que afague as minhas feridas. Afaga-me com os teus dedos, completa-me um pouco mais.
Não te canses, Senhor.

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