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domingo, 14 de abril de 2013

Notas de Roda-pé



Montanhas
O ano de 2002 foi consagrado como o ano das Montanhas e do Ecoturismo. É intenção primeira promover o contacto com a natureza. E defendê-la também. Penso que é uma excelente ideia. Uns promoverão, estou certo disso, o contacto com a montanha; outros chamarão a atenção para as agressões de que ela é vítima. Creio que as duas acções são legítimas e necessárias. Pela minha parte devo dizer que da minha janela vêem-se montanhas. Mas as montanhas que vejo já não são as mesmas que eu via antes. Estão a mudar muito as montanhas. Agora rebentam lá bombas e pouco a pouco vão aparecendo feridas. Grandes feridas. É o que vejo. Onde antes via verdura e água transluzindo como prata sob o sol de Inverno hoje vejo restos escuros de pedra. E só podem ser grandes esses restos, por que a distância a que os vejo também é grande...
É a febre do ouro em Marco de Canaveses! Não é bem a do ouro, mas a da pedra. Claro que compreendo que se tenha de trabalhar para “ganhar a vida”. E também compreendo que também aqui deve existir a oportunidade de se ser rico. Mas o que já não compreendo bem é que a nós, cá debaixo, só nos reste a possibilidade de contemplar os restos das entranhas da montanha de Rosém...

Oração
Canta um poeta que quando a terra quis rezar surgiram as montanhas. E tem razão. Só as montanhas sentiriam o apelo de se elevar (e nos elevar) para o alto. São as montanhas como braços que a natureza elevou para louvar o Autor da criação. Digno de todo o louvor é quem criou a criação! E não podendo cantar com hinos nem com trinos a natureza inventou as montanhas que se elevam para Deus. É o seu jeito de louvar, elevando-se...
Sensível à beleza da criação S. João da Cruz canta assim: «Ó bosques e espessuras, / plantados pela mão do meu Amado, / dizei-me se por vós terá passado»... Há na natureza algo da beleza de Deus. E quem passa pela natureza como que passa a caminho dAquele que por ela primeiro passou vestindo-a de formosura, Deus! A natureza é assim espelho da Sua beleza e possibilidade de bem nos caminharmos para Ele. Daí que menos se percebam as agressões de que ela é vítima...

Retiro
O primeiro domingo da Quaresma fala do retiro de Jesus antes da sua vida pública. Foram quarenta dias e quarenta noites de deserto, de solidão! É extraordinário como o retiro está de novo na moda! Novos e velhos não resistem ao apelo e retiram-se do bulício do dia a dia, e às vezes do de fim de semana que não é menor. Os retiros dos velhos não são como os dos novos. Os primeiros são mais certinhos, mais calmos, mais ponderados, mais atentos, mais sintonizados. Os segundos são também interessantes, levantam mais interrogações, explodem em energia, convicções e generosidade. Não prefiro uns ou outros, ambos têm a sua beleza.
Porém, outro tipo de retiros começa a ganhar terreno. São os retiros de silêncio. Durante um fim de semana desligam-se os telemóveis, os televisores e telefonias, a internet e os jornais... Não se fala, ouve-se. Não se comenta, silencia-se. Não se aprende, abre-se o coração.
A Laurinda Alves, na última Xis fala disso. Diz que são retiros que roçam a poesia e que curam! Ajudam a ouvir-nos e a entender-nos; separam o principal do acessório e são de uma força tremenda! Afinal de contas, é nos retiros de silêncio que ela tem encontrado as respostas para os maiores mistérios da vida!

Quaresma
Há quem não goste da Quaresma. Lá têm as suas razões. Acabamos de celebrar o segundo domingo quaresmal, o da Transfiguração. A Trindade Santíssima revelou-se como o Deus fiel que cumpre a sua palavra. Ficamos a saber que o futuro do homem fiel não é nem a ruína nem a cruz, mas a glória. Que não estamos ameaçados de morte, mas de transfiguração. E embora isto não elimine a sombra e a tentação, dá, contudo, sentido ao nosso caminho ainda que caminhemos (quase só) de noite.

Domitília
É portuguesa, de Faro. Tem 46 anos, é solteira e vive há 33 anos nos EUA. Primeiro lavou a roupa de emigrantes e deu explicações de matemática, e à noite estudou com os pés metidos numa bacia de água fria porque era preciso tirar vintes. Hoje gere fortunas, vive num apartamento pequeno e as horas vagas oferece-as como voluntária. O mundo de Wall Street,  do Carnegie Hall e do Metropolitan, e os sub-mundos da fome e do horror da Etiópia, Haiti, Angola, Guiné não lhe são estranhos.
Chama-se Domitília dos Santos, deu uma entrevista a Adelino Gomes publicada na Pública e diz coisas assim:
«[Quando fui trabalhar como voluntária para a Etiópia] entrava no meu quarto às nove da noite e só podia sair dele às cinco da manhã. Pedi uma tábua para dormir no chão, tinha ratos na cama»;
«Para se ter sorte é preciso trabalhar muito e bem»;
«Um homem ou uma mulher só vencem com trabalho, trabalho, trabalho»;
«Há pessoas cuja vocação é dar aulas a crianças. A minha é ajudar crianças e velhos a morrerem com dignidade»;
«[Quando olho para o mundo ocidental, penso:] Você está a discutir por cinco dólares, a discutir porque não lhe deram não sei quê? É irrelevante. Na Etiópia as pessoas não têm nada, pão, açucar, nada para comer»;
«Desejo ir à missa todos os dias. Fico mal disposta quando não vou»;
«A pessoa rica é aquela que consegue ser feliz gerindo o seu dinheiro»;
«O meu ídolo é Jesus Cristo. E depois a Madre Teresa de Calcutá, Nelson Mandela, Martin Luther King, Gandi»;
«O meu lema é ‘faz o teu melhor, e não te preocupes com o resto»;
«Actualmente quero aumentar o negócio e ganhar menos. Para distribuir mais pelas pessoas à minha volta»;
«Rezo e conto em português».
Felizmente ainda existem pessoas interessantes! Alguma destas coisas poderá ser afirmada logo à noite por algum dos candidatos a Primeiro Ministro?

1’ de sabedoria
O Mestre parecia que frequentemente desencorajava os seus discípulos a viver dependendo sempre dele. É que o Mestre sabia que caso isso acontecesse eles jamais conseguiriam entrar em contacto com a Fonte interior.
Por isso, um dia, disse-lhes o Mestre:
-- Existem três coisas que, estando perto de mais são nocivas; e estando longe de mais são inúteis. Devem, portanto, ser mantidas a uma distância média. São elas o fogo, o governo e o director espiritual.

[26 de Fevereiro de 2002]

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