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terça-feira, 20 de maio de 2008

Uma palmeira, pardais e meninos

Reclamaram comigo porque trago o blog abandonado. Foi a primeira vez que resmungaram, nunca tal tinha acontecido. Porque há quem leia e não quero que se sinta desprezado, pobre, triste e abandonado, aqui vai.
Confessarei então o meu pecado e penitenciar-me-ei dos meus erros. Sim, penitenciar-me-ei, apesar do blog se chamar DEPOIS DA HORA, o que pretende indicar que depois da hora tudo pode acontecer, até ganharmos o jogo num penalti inexistente.
Isto às vezes é tão depois da hora que pode nunca chegar a ser blogado. Nem tudo é blogado, obviamente. Não é porque o pão está cozido que se abre o forno. Nunca se abre logo o forno. Por isso, podemos sempre esperar que depois da hora nada haja.
Mas confessar-me-ei, como disse.
A meus pés correm agora as águas dum rio calmo. Não me beijam logo os pés porque entre as águas e os pés está um oceano de crianças aos gritos de hora a hora. Gritam tanto as crianças, agora!, ou sou eu que estou a ficar velho? Mãe, eu gritava assim, antigamente? Ou são os novos heróis que são mais belicosos e em mim adormeceram os antigos e a ferrugem que corrói as suas armaduras não os deixa mexer-se muito?
Entre as crianças e a minha cela há ainda uma palmeira enorme que me entra pela janela e enche quatro quintos do quarto que está num alto primeiro andar! Por essa razão eu quase nem vejo as crianças, apenas os gritos. E o rio apenas sei que corre ali, já ali.
E depois há aquela palmeira enorme. É uma palmeira da Judeia, julgo eu, embora aqui se alimente melhor que acolá. Quase sempre que ergo o olhar vejo a palmeira a espreitar e digo-lhe: - Olá, palmeira da Judeia! E ela que gosta que fale com ela, agita os braços mais altos, que os debaixo são tão velhos e secos que já nem caem nem se mexem.
Na palmeira da Judeia há uma colónia de pardais ou verdelhões. Brincam tanto e tanto cantam que já nem sei se são os pardais que estão no recreio, se são os meninos da Judeia que treparam à palmeira e dali saúdam com ramos e cânticos Aquele que vem em nome do Senhor!
Sei, sim, que os meninos e os pardais, onde quer que estejam, estão ali, mesmo à beirinha da minha janela. E eu a vê-los, e eu a ouvi-los. E por testemunha a palmeira da Judeia.
De manhã e também há noite há uma porta de vidro que se abre. E por ela entram pessoas e saem pessoas. Entram comboios que saem ronceiros da Ponte Eiffel e saem comboios que entram ronronantes na ponte sobre o rio que quase banha os meus pés. E entram camiões e carros, turistas e devotos. E tantos outros, e tantos muitos. E tantos sem rumo e muitos buscando um porto de abrigo.
Antes que a noite chegue conto os camiões vazios que dão saltos no trapézio duma tampa do saneamento que está no trilho deles, um pouco ao lado da palmeira da Judeia.
E depois que desce a noite voam gaivotas em torno da torre sineira, até que se afastam ou até que adormeçam.
E ao sair do carro que me trouxe, a primeira coisa que vi foi uma pomba, um juvenil, que andava ali, esperava-nos por ali, aguardando que lhe déssemos migalhas e não saiu de junto de nós enquanto não repartimos com ele meio biscoito.
E tendo-me confessado, julgando nada ter esquecido, submeto a esta confissão os pecados da minha vida passada, e a vós peço penitência e absolvição!

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