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sexta-feira, 19 de julho de 2013

Notas de Roda-pé

Duas pessoas

Eu não conheço Beth Ditto. Em boa verdade nunca me foi apresentada, como diria o outro. Sei que é cantora. Não sei, porém, o que canta. Creio que as suas canções não frequentam a estação de rádio por onde por vezes me perco. Sei que defende valores que não são os meus, com os quais eu não sintonizo. É por isso que conhecê-la ou não (ou à sua música) me é igual. Indiferente, quero eu dizer. O mesmo será para ela.
Mas, pronto. A imprensa fala dela e eu sei que a senhora existe, que é uma mulher ácida, daquelas que morde a mão que lhe dá o pão. É isso. É uma mulher tão crítica (ou revoltada?) que não se inibe de criticar o seu público, aquele que lhe compra os discos e que vai aos seus concertos. Dizem que ela é uma jovem mulher que sabe quem é. (E que sempre o soube). Ela não muda, o mundo à sua volta é que muda ou tem de mudar. Por isso quando actua em concertos está tão segura de si que não se preocupa que não gostem da sua música e da sua performance. É descarada, a mulher: «Não me incomoda assim tanto que as pessoas pareçam entediadas. Toco para as duas pessoas na multidão que estão a divertir-se e a prestar atenção.»
Ora aí está uma mulher de convicções. E até de fugas, talvez. Se houver duas pessoas que gostem, ela canta para elas. Se os restantes a desprezarem, serão desprezados por ela. Mais, ela confia que existam pelo menos duas que gostem da sua música. É isso que a move. É pelo menos por isso que ela canta.
Viremos isto como me convém. Pergunto-me quantos de nós, na nossa banda, temos uma disponibilidade e um carinho assim pelo nosso público para continuar tocando apenas para esses dois que permanecem atentos, que mostram interesse, que parecem ir dar fruto. Confesso que desanimo face ao tédio, ao desinteresse, à falta de garra do público. E em boa verdade, costumo ter mais que dois ou três animados e interessados. Mas até apenas aqueles dois que se deixam abater pelo fastio me desanimam.
Se alguma vez miss Ditto me for apresentada eu agradecer-lhe-ei esta lição de vida. Afinal de contas eu tenho melhor mensagem que a dela, mas por vezes não tenho a garra e o convencimento dela.
Embora prometa que vá aprender.

Nadir

O senhor Nadir tem quase 90 anos e um cara de menino, de menino traquina, apesar da barbinha que ostenta. Ele que me perdoe se a afirmação não é um elogio. Mas aqueles olhitos e a cara miúda falam-me dum catraio extasiado com uma tarde de Verão, sem escola e passeada (ou saltada, ou saltibancada) ao ar livre.
É a segunda ou terceira vez que ouço falar dele. A primeira foi num documentário do Canal 2 em que vi uma tela muito enigmática e geométrica que afinal, depois de lhe ser sobreposta uma fotografia, mais não era que uma praça de Lisboa.
Fiquei curioso com o homem.
Agora está no Porto, na Galeria do Jornal de Notícias e talvez eu passe por lá. Para decifrar a sua pintura talvez tivesse que conhecer a sua geografia e a peregrinação da sua vida. Mas irei só para ver pedaços de cidades que o não são, que são simples telas. Embora mais que telas pintadas, claro. São linhas muito puras, quase matemática. São mapas de vidas que permanentemente se reencontram na paleta e brotam dos pincéis do pintor.
No JN de 29 de Junho, p.p., vinha uma entrevista sua. Retiro dela duas coisas: uma, o nome Nadir foi sugerido ao pai — que ia pachorramente a caminho do Registo Civil; outros tempos!, outros tempos! — por um amigo cigano. Duas, a sua pintura não é tanto de inspiração mas fruto do trabalho persistente, aturado, sujo, reclamado, insistido, cuidado. Nã, nada disso. Os pintores não pintam de smoking. «Rebolam muito pelo chão», até deveriam ter um espaço «onde pudessem ir agonizando» à espera de melhores dias, de melhores horas, de melhores soluções. Diz ele. De melhores linhas. Digo eu.
O homem leva esta coisa do trabalho tão a peito, que, considera, um quadro jamais é uma tarefa terminada. Concluída. Encerrada.
Estou mesmo a vê-lo a ver um quadro antigo seu e a ficar com formigas nos dedos. A vê-lo cheio de imperfeições a exigirem um retoque, um repinte, uma melhoria, um aperfeiçoamento. Sim, estou mesmo a ver o ciganito — que me perdoe o mestre! — reguila, atrevido, irrequieto, entrando pela casa dum amigo e logo preso a um quadro seu. E a dizer: «Hummmm! Estas linhas deveriam ter sido prolongadas, estes contrastes avivados. Sim, não está mal. Mas poderia ficar melhor.» E, então, fazendo juz à viveza do raciocínio e do olhar juvenil, à perspicácia que só o autor pode ter, ele vai à algibeira e saca dum pincel sempre pronto e conclui por ora — só por ora, claro! — a tela inacabada. Que inacabada fica. Como é óbvio.
Espantosa ideia a do Mestre Inacabado. Como deve sofrer só por que tem que vender coisas inacabadas, que lhe fogem do alcance e do penúltimo remate final.
Sim. Pego agora na ideia e viro-a para mim. E dou comigo a ler-me os pensamentos. É isto mesmo que somos, telas (ou esculturas) inacabadas pelo Criador. Histórias sem fim à vista. Histórias com fim previsto e escrito, mas prolongando-se sempre para mais além do além que nos tocou viver. Para mais além do que conseguimos aperfeiçoar, concluir.
É bem verdade. Somos inacabados, nada é ainda perfeito em nós. Ai de nós se a Graça do Mestre Ciganito — perdoe-se-me a ousadia, meu Deus! — não nos for trabalhando, limando, retocando, completando, aperfeiçoando. Sim, meu Deus. É bem verdade. As tuas mãos não param desde o início da criação. Não param de me moldar, de moldar o meu barro tosco, o meu barro seco, o meu barro áspero, resistente, bruto. Que não parem, pois. Que não parem, nunca. Que não parem, jamais. Jamais.
Visita-me, Senhor. Entra, por favor em minha casa. Contempla a minha vida, vê o quadro das minhas imperfeições e inacabamentos, repara como estropiei o que me entregaste. Traz um pouco de água que amacie o meu barro, um pouco de Espírito Santo que me sacie por dentro, que inunde as minhas resistências, que afogue os meus defeitos. Que afague as minhas feridas e inexistências. Afaga-me com os teus dedos, completa-me um pouco mais.
Não te canses, Senhor.

Máxima

Nós semeamos as sementes que um dia crescerão. Semeamos as sementes e regamos as sementes, porque sabemos que elas guardam o futuro como promessa. Pode acontecer que não vejamos os frutos. [...] Pode acontecer que jamais vejamos os resultados finais, mas há uma diferença entre o mestre de obras e o operário. Nós somos operários, não mestre de obras. Nós apenas somos ministros dos Messias (Mons. Oscar Romero).

Mínima

O Carmo é uma ordem de Maria, sob a protecção de Maria, que propaga o culto a Maria (S. Rafael Kalinowski).


[8 de Julho de 2007]

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