Amo-te
Ao passar pelo país profundo dei de
caras com uma mensagem que me pareceu deslocada para o local. Um ano depois
volto a passar pelo mesmo local e o cartaz continuava lá. Julguei nunca mais
passar por aquele local, mas passei. Já tinha esquecido a mensagem mas, um ano
depois, depois da mesma volta do caminho lá estava ela. A mensagem diz: «Amo-te
carpe diem». Assim mesmo, sem mais. Há na frase um erro, senão erro. Creio que
entre o predicado e o complemento directo deveria haver uma vírgula. Mas não há,
o que deve ser, concerteza, um erro.
Da primeira vez pareceu-me desajustada a
mensagem em relação ao local (totalmente desértico, totalmente montanhoso). Da
segunda vez não pude evitar pensar que para além do erro deve existir ali uma
contradição. E se existir uma contradição, decididamente a mensagem não diz o
que quereria dizer.
Vejamos. Um apaixonado aproveitou para
se declarar. E fá-lo publicamente. Alguém ama alguém e não quer que isso fique
apenas entre os dois. Até aí tudo certo. O erro (para além da falta da vírgula)
vem depois. A expressão latina – carpe diem – é contraditória com a declaração
de amor. Só o amor tem expressão de eternidade. Nada mais existe com tal força
declarativa. Dizer a alguém ‘amo-te’ é dizer-lhe que ‘para mim tu nunca morrerás’.
É certo que existem muitos morreres, mas nenhum mata o amor. E se matar é
porque a declaração era falsa. Estamos, pois, em que a declaração de amor tem
algo e tudo de definitividade, é para sempre. Como e só o amor é.
Já dizer (ou aconselhar, ou pedir, ou
convidar) a alguém ‘carpe diem’ é dizer-lhe ‘goza o momento’, ‘gozemos agora
porque logo é tarde’, ‘Aproveitemos o instante’.
Sem querer, creio que sem querer, a
declaração contradiz-se e anula-se. Declara o definitivo, o absoluto, o único
que não morre, e, simultaneamente, afirma que tudo morre, que tudo acaba, que é
preciso aproveitar antes que tudo termine... porque a vida é só um momento. No
fim de contas, quem ama só pode amar para sempre nunca a prazo!
Pensando bem, talvez a mensagem nem
queira dizer nada disto. Talvez queira dizer uma terceira coisa. Pode querer
dizer algo que os passantes não alcançam. E eu talvez não tenha alcança, e
talvez a mensagem nem seja para mim (embora também seja para mim por que é
pública). Eu que lá passei e a li tenho direito a interpretá-la como eu quiser,
e ao interpretá-la ela não fez sentido.
Lá diz o poeta brasileiro que tudo é
eterno enquanto dura. O que vem dar ao mesmo. Como não abrangemos a ideia de
eternidade – sem princípio e sem fim –
encarcerá-mo-la em prisões temporais demasiado pequenas, em instantes e
momentos que se possa gozar e consumir já, no imediato.
Eis, pois, o nosso tempo. A eternidade
termina hoje, nada se constrói para além de amanhã. Tudo fica aquém, nada vai
para além. Já não há universo, há apenas o horizonte onde se encerra o jardim
da minha casa – se tenho casa e se a minha casa tiver jardim! Já não há amor,
há gozar. Porque tudo passa e nada é eterno! Ou só é eterno enquanto dure.
Nada
Só a simplicidade faz caminho, só a
simplicidade perdura. Há um poema que diz:
Nada te perturbe
Nada te espante.
Quem a Deus tem
Nada lhe falta
Nada te perturbe
Nada te espante
Só Deus basta.
O poema é de Santa Teresa de Jesus.
Quando eu li a mensagem do carpe diem ia a caminho dum encontro com ela. Inevitavelmente
tive de me recordar dela enquanto lia a tal mensagem. E inevitavelmente fiz
comparações.
Por um lado, nada dura para além do
horizonte que enxergamos – e como enxergamos pouco!; por outro lado só Deus
basta. Por um lado, devemos procurar gozar tudo quanto antes; por outro lado
nada falta a quem tem a Deus. Por um lado nega-se a eternidade; por outro lado,
S. Teresa de Jesus ensina que nada nos deve perturbar – mesmo que a eternidade
não exista. Embora exista!
Albertina
Na rádio há Um Lugar ao Sul. Não sei
onde fica Um Lugar ao Sul, mas sei que fica algures entre o Alentejo e o
Algarve embora entre bem no Algarve. Rafael Correia anda com um microfone às
costas e com ele faz um programa simples. Dá voz ao outro lado da cultura,
daquela que habitualmente tem audiências, subsídios, palmas, palcos,
exposições. É aos sábados, pela manhã. Rafael surpreende o povo ora num
estendal de roupa ora numa carpintaria, ora a cavar terra ora a pastorear o
gado, e o povo fala. E de que fala o povo quando lhe põem o microfone diante –
que, no final de contas é como se lá não estivesse? O povo fala de dores e
maleitas, de alegrias e surpresas, de fé e de Deus, de trabalhos e sonhos, de
tradições e mudanças. Mas Rafael Correia põe o povo a dizer isso em verso e a cantar.
Cantam fados e modinhas, declamam poemas quase sempre deles e do Aleixo também.
Enfim, o povo fala do que lhe vai na alma. E tanta coisa habita a alma do povo
que vive em Um Lugar ao Sul!
Um destes dias Um Lugar ao Sul era
algures em Alportel. Rafael Correia estava com uma poetisa popular. O nome da
poetisa era Albertina. Ela tem passarinhos que a visitam, um cão Fiel, e uma
filha na Universidade. De resto vive só, num monte. O povo – digo, a poetisa
Albertina – daquele dia não se queria calar. E ele que só tem uma hora para
deixar a poesia falar queria terminar o programa (que é pré-gravado). «Mas como
é que o senhor me descobriu aqui?», prolongava ela a conversa. «Foram os poemas
contesta ele. Diga só um, diga o último dos últimos». E ela disse. Eu ia de
carro para um qualquer lugar ao norte e logo me senti num outro qualquer lugar,
Um Lugar ao Sul, junto duma velhinha que mata a solidão com poemas. Deviam
deixar o povo falar mais. Num qualquer lugar...
Dinis
Conheci Dinis Faísca em Roma, em Agosto
de 2000. O P. Dinis Faísca é magrinho, muito moreno, muito calado. Calado não,
sereno. Eram os dias do jubileu dos jovens em Roma e Dinis tinha peregrinado a
Roma em cima duma bicicleta com mais nove cicloperegrinos. Eu fora de autocarro
e estava todo partido. Ele não. Não falamos muito, o suficiente para saber que
tudo correra bem, que não fizera turismo mas peregrinação, que viera em oração
e não em galhofa. Aliás, como nós, como os três milhões de jovens que ali nos
encontrávamos.
No dia 10 leio num jornal que o P. Dinis
Faísca, pároco de Alcantarilha, em Albufeira, preside a nova peregrinação de
cicloperegrinos. Agora são 400 e vão a Fátima. São 424 quilómetros em quatro
etapas percorridos por crianças e adultos, amadores das bicicletas e até
federados. Numa fotografia lá estão eles em frente da matriz de Albufeira onde
receberam a bênção dos peregrinos. Vêem-se bicicletas e ciclistas aperaltados a
preceito, violas, sorrisos e fé qb. É a fé em movimento, a caminho.
Por estes dias cumpriram-se quarenta anos
do Vaticano II. Foi oportunidade para fazer balanços e comparações. Há
comunidades e pastores a inovar, a cativar, a convocar. Falta saber se chega
fazê-lo à força de pedais.
1’ de sabedoria
Disse o Mestre a um certo grupo de
discípulos dispostos a fazer uma peregrinação:
– Levem esta erva amarga convosco e
mergulhem-na em todos os rios sagrados que encontrarem no caminho; levem-na
também a todos os santuários que pretendem visitar.
Quando os peregrinos voltaram, a erva
foi cozida e servida como alimento sacramental.
– É estranho, comentou o Mestre depois
de ter provado a verdura, é estranho... As águas sagradas e os santuários todos
não conseguiram tirar o amargor desta erva.
[19 de Outubro de 2002]
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