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segunda-feira, 20 de maio de 2013

Notas de Roda-pé


Memória
São demasiadas as cenas de horror que nos habitam depois do 11 de Setembro de 2001. Na memória guardo, porém, alguns ícones de esperança.
Guardo a fotografia dos colegas do Padre Mychal Judge trazendo-o morto (a mim parece-me ressuscitado!). Trazem-no do túmulo para nos mostrar que a morte por oblação é vida!
Guardo a fotografia duma pomba negra olhando incrédula do alto de um prédio para o local onde restavam os sinais do ódio dos humanos. Dizem que em tempo de guerra as pombas não voam. Deve ser verdade. Acredito mesmo que não consigam. Ficam parvas só de olhar para a estupidez humana!
Guardo a fotografia das Torres de luz elevando-se dos escombros para iluminar as noites do horror e do ódio, da estupidez e do fanatismo, do desprezo e do orgulho. Vós sois o sal da terra, vós sois a luz do mundo, disse o Mestre. Quando o sal não é sal e a luz não é luz cai a noite. Felizmente alguém tem ainda forças para acender uma luz e colocá-la sobre o candelabro que a loucura não consumiu!
Guardo a fotografia dum frade benzendo uma cruz gigante no Ground Zero. A Cruz é feita de duas enormes colunas de ferro saído da estrutura das Torres. E recordo-me que alguém perguntou um dia a Gaudí: «porque coloca aí esse empecilho?» E o arquitecto respondeu: «Não é um empecilho é uma cruz, minha senhora.». Ali, onde morreram homens de todas as raças e cores, de todas as religiões e sem ela, não é empecilho nenhum que se eleve o sinal da vitória do Ressuscitado. Quem olhar para Ele será salvo e viverá!
Guardo a memória do som que não ouvi. Sabendo que ia morrer num dos aviões transformados em bomba, um homem ligou para uma operadora dos telemóveis e perguntou: «Sabe rezar? Reze comigo por que vou morrer.» E rezaram em nome de Jesus e Jesus com eles, porque onde dois ou três se reunirem em meu Nome eu estou no meio deles!
Guardo a história do menino Amin. Porque os abismos se atraem, depois que caíram as Torres caíram bombas sobre o Afeganistão. Aqui a miséria multiplicou-se por mais miséria, por ódios, por fome, por vinganças, por guerra... Depois dos bombardeamentos Amin ficou sem aldeia, sem pais, irmãos, familiares, amigos. Errou sozinho durante doze dias até à fronteira. Foi ali, num campo de refugiados, que Hussana ouviu um vozita trazida pelo vento carregado de pó da tempestade implorando: «Khali [tia] pode aceitar-me como filho?». E Hussana que já tinha muitos filhos respondeu: «E por que não? Tu és afinal criatura de Deus!»
Enquanto houver quem reconheça a presença do amanhecer de Deus nos dias humanos a esperança brilhará na noite.

Carmo
Uma das últimas noites de Agosto reservou uma singular surpresa para quem andava atento em Faro. Na igreja de Nossa Senhora do Carmo cantaram-se salmos e suras. A Bíblia e o Corão deram as mãos e cantaram-se a uma só voz os louvores do Criador, porque o que foi sonhado pelo Seu coração e, saiu das suas mãos, é belo e irmão.
Em Faro, numa quente noite de Agosto, as vozes cantaram a fé. E a fé mostrou que as fronteiras podem ser ultrapassadas (que se o não forem podem esganar-nos). Como um jardim o Carmo mostrou que é local de encontro e de fé, de comunhão de diferenças e celebração de bênção até com (para com) aqueles que estão ausentes.
Eu não ouvi nem os cânticos cristãos nem os hinos muçulmanos, mas rejubilei quando soube que, em Faro, a fé cantou a abundância do coração. Era noite e na noite rebrilhou a luz da fé cantada.
Não sei como, não sei quando. Não sei se no intervalo ou se no fim. Sei que os presentes foram convidados a abrir as carteiras e a fazer partilha de bens em favor dos famintos, dos deserdados da fortuna. (A entrada era livre, e o meter e tirar a mão da carteira também.)
Dizem que as religiões por onde passam criam fronteiras. Talvez seja verdade. Mas quem teve os ouvidos abertos em Faro, pôde ver de noite que as fés também sabem (convidar a) dar as mãos. É que a fome não tem fé nem fronteiras, mas mãos abertas.

Lixo
Quiseram maquilhar o maltrapilho, mas ele não quis. Quiseram dar-lhe um fato de fino recorte italiano, e ele não aceitou. Que ia entrar em directo num programa de prime time, mas nem isso o demoveu. Era assim e pronto, porque haveria de mudar? Entraria como estava vestido, como sempre se vestia, ou não entraria. Foi assim que reagiu Abbé Pierre — personalidade quase desconhecida em Portugal, quase idolatrado em França — quando um dia o quiseram ‘retocar’ minutos antes de entrar em directo num programa de grande audiência da televisão francesa. O maltrapilho recusou sempre porque, embora tivesse chegado a ser deputado da Republica Francesa, a única obra de que se orgulha é a de ter fundado os Farrapeiros de Emaús (e por isso vivia e vestia como tal). Foi em 1949 que se deu o «encontro entre um homem desesperado (que se queria suicidar, creio eu) e um homem inspirado (ele próprio). Do encontro nasceram as comunidades dos Trapeiros de Emaús. Hoje são mais de quatrocentas em 58 países. Vivem como comunidades de espírito e vida, de abertura e acolhimento, de trabalho e partilha, de compromisso social e político.
O homem que veio do lixo chama-se Abbé Pierre e no dia 5 de Agosto cumpriu noventa anos. Aos noventa anos ainda recolhe e recicla lixo para provar «que andamos a desbaratar os recursos do mundo». Quem disser que já não há profetas engana-se, por que há um. Pelo menos um. Vive a fraternidade como profecia no meio do lixo!

1’ de sabedoria
Ele era um escritor religioso, interessado nas opiniões do Mestre. Por isso, perguntou-lhe certo dia: «Como se faz a descoberta de Deus?».
O Mestre respondeu: «Tornando o coração branco por dentro, através do silêncio e da meditação; em vez de escurecer o papel com dissertações religiosas.»
Depois, voltando-se para os seus discípulos, acrescentou com certa ponta de ironia: «... ou em vez de tornar pesado o ar com conversas eruditas.»

[27 de Setembro de 2002]

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