Memória
São demasiadas as cenas de horror que
nos habitam depois do 11 de Setembro de 2001. Na memória guardo, porém, alguns
ícones de esperança.
Guardo a fotografia dos colegas do Padre
Mychal Judge trazendo-o morto (a mim parece-me ressuscitado!). Trazem-no do
túmulo para nos mostrar que a morte por oblação é vida!
Guardo a fotografia duma pomba negra
olhando incrédula do alto de um prédio para o local onde restavam os sinais do
ódio dos humanos. Dizem que em tempo de guerra as pombas não voam. Deve ser verdade.
Acredito mesmo que não consigam. Ficam parvas só de olhar para a estupidez
humana!
Guardo a fotografia das Torres de luz
elevando-se dos escombros para iluminar as noites do horror e do ódio, da
estupidez e do fanatismo, do desprezo e do orgulho. Vós sois o sal da terra,
vós sois a luz do mundo, disse o Mestre. Quando o sal não é sal e a luz não é
luz cai a noite. Felizmente alguém tem ainda forças para acender uma luz e
colocá-la sobre o candelabro que a loucura não consumiu!
Guardo a fotografia dum frade benzendo
uma cruz gigante no Ground Zero. A Cruz é feita de duas enormes colunas de
ferro saído da estrutura das Torres. E recordo-me que alguém perguntou um dia a
Gaudí: «porque coloca aí esse empecilho?» E o arquitecto respondeu: «Não é um
empecilho é uma cruz, minha senhora.». Ali, onde morreram homens de todas as
raças e cores, de todas as religiões e sem ela, não é empecilho nenhum que se
eleve o sinal da vitória do Ressuscitado. Quem olhar para Ele será salvo e
viverá!
Guardo a memória do som que não ouvi.
Sabendo que ia morrer num dos aviões transformados em bomba, um homem ligou
para uma operadora dos telemóveis e perguntou: «Sabe rezar? Reze comigo por que
vou morrer.» E rezaram em nome de Jesus e Jesus com eles, porque onde dois ou
três se reunirem em meu Nome eu estou no meio deles!
Guardo a história do menino Amin. Porque
os abismos se atraem, depois que caíram as Torres caíram bombas sobre o
Afeganistão. Aqui a miséria multiplicou-se por mais miséria, por ódios, por
fome, por vinganças, por guerra... Depois dos bombardeamentos Amin ficou sem
aldeia, sem pais, irmãos, familiares, amigos. Errou sozinho durante doze dias
até à fronteira. Foi ali, num campo de refugiados, que Hussana ouviu um vozita
trazida pelo vento carregado de pó da tempestade implorando: «Khali [tia] pode
aceitar-me como filho?». E Hussana que já tinha muitos filhos respondeu: «E por
que não? Tu és afinal criatura de Deus!»
Enquanto houver quem reconheça a
presença do amanhecer de Deus nos dias humanos a esperança brilhará na noite.
Carmo
Uma das últimas noites de Agosto
reservou uma singular surpresa para quem andava atento em Faro. Na igreja de
Nossa Senhora do Carmo cantaram-se salmos e suras. A Bíblia e o Corão deram as
mãos e cantaram-se a uma só voz os louvores do Criador, porque o que foi
sonhado pelo Seu coração e, saiu das suas mãos, é belo e irmão.
Em Faro, numa quente noite de Agosto, as
vozes cantaram a fé. E a fé mostrou que as fronteiras podem ser ultrapassadas
(que se o não forem podem esganar-nos). Como um jardim o Carmo mostrou que é
local de encontro e de fé, de comunhão de diferenças e celebração de bênção até
com (para com) aqueles que estão ausentes.
Eu não ouvi nem os cânticos cristãos nem
os hinos muçulmanos, mas rejubilei quando soube que, em Faro, a fé cantou a
abundância do coração. Era noite e na noite rebrilhou a luz da fé cantada.
Não sei como, não sei quando. Não sei se
no intervalo ou se no fim. Sei que os presentes foram convidados a abrir as
carteiras e a fazer partilha de bens em favor dos famintos, dos deserdados da
fortuna. (A entrada era livre, e o meter e tirar a mão da carteira também.)
Dizem que as religiões por onde passam
criam fronteiras. Talvez seja verdade. Mas quem teve os ouvidos abertos em
Faro, pôde ver de noite que as fés também sabem (convidar a) dar as mãos. É que
a fome não tem fé nem fronteiras, mas mãos abertas.
Lixo
Quiseram maquilhar o maltrapilho, mas
ele não quis. Quiseram dar-lhe um fato de fino recorte italiano, e ele não
aceitou. Que ia entrar em directo num programa de prime time, mas nem isso o
demoveu. Era assim e pronto, porque haveria de mudar? Entraria como estava
vestido, como sempre se vestia, ou não entraria. Foi assim que reagiu Abbé
Pierre — personalidade quase desconhecida em Portugal, quase idolatrado em
França — quando um dia o quiseram ‘retocar’ minutos antes de entrar em directo
num programa de grande audiência da televisão francesa. O maltrapilho recusou
sempre porque, embora tivesse chegado a ser deputado da Republica Francesa, a
única obra de que se orgulha é a de ter fundado os Farrapeiros de Emaús (e por
isso vivia e vestia como tal). Foi em 1949 que se deu o «encontro entre um
homem desesperado (que se queria suicidar, creio eu) e um homem inspirado (ele
próprio). Do encontro nasceram as comunidades dos Trapeiros de Emaús. Hoje são
mais de quatrocentas em 58 países. Vivem como comunidades de espírito e vida,
de abertura e acolhimento, de trabalho e partilha, de compromisso social e
político.
O homem que veio do lixo chama-se Abbé
Pierre e no dia 5 de Agosto cumpriu noventa anos. Aos noventa anos ainda
recolhe e recicla lixo para provar «que andamos a desbaratar os recursos do
mundo». Quem disser que já não há profetas engana-se, por que há um. Pelo menos
um. Vive a fraternidade como profecia no meio do lixo!
1’ de sabedoria
Ele era um escritor religioso,
interessado nas opiniões do Mestre. Por isso, perguntou-lhe certo dia: «Como se
faz a descoberta de Deus?».
O Mestre respondeu: «Tornando o coração
branco por dentro, através do silêncio e da meditação; em vez de escurecer o
papel com dissertações religiosas.»
Depois, voltando-se para os seus
discípulos, acrescentou com certa ponta de ironia: «... ou em vez de tornar
pesado o ar com conversas eruditas.»
[27 de Setembro de 2002]
Sem comentários:
Enviar um comentário