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domingo, 1 de dezembro de 2013

Notas de Roda-pé

Um par velhinho

Eu lia ao fundo da sala. Em espera. Lia sobre um padre amigo caído em desgraça num jornal nacional. Eu sei que a história não é nada assim e sei que se contada como devesse não teria piada nenhuma, e o jornal não a publicaria porque não venderia. Algo divertido e distraído lia eu, pois, o jornal.
A sala não é grande, mas dá para dizer que tem uns fundos ao fundo, no oposto da porta, e que ali uns sofás acomodam a espera. Era ali que eu lia. E desde ali vi chegar uma velhinha. Ocorreu-me que se enganara, pois o salão é de barbeiro. Mas não, não se enganara. Deu para ouvir a meias a conversa com o dono da tesoura. Juntei a meia conversa com alguma outra que trazia sem saber no armário da memória. E pela resposta do barbeiro deu para perceber que ainda havia tempo.
Eu terminei a leitura e pousei o jornal. E entretanto ali chegou a senhora velhinha, talvez octogenária, trazendo pelo braço o trôpego marido, não muito mais velho que ela e ainda amparado por uma bengala. Levantei-me do sofá. Eu tinha menos quarenta anos e percebi que vinha cansado e nem cem bengalas o segurariam de pé!
O barbeiro ainda se demorou. O velhinho, trôpego de pernas e sôfrego de companhia, começara a falar com o rapaz da mesma geração que restara sentado. Entretanto, a esposa saíra leda para dar ainda umas voltas antes do almoço. Ponderei ceder a minha vez, mas quando ouvi que a mulher ainda tinha voltas a dar… Subi então para a cadeira e fiquei a escutar a conversa, que, afinal, era para toda aquela assembleia reunida naquela outonal Segunda-feira de manhã. Eu estava entre o curioso e o entretido, porque, afinal, já não era a primeira vez que via tão vetusto par entrar na barbearia.
E a conversa foi correndo.
O velhinho de cara redonda e bigode branco e vaidoso foi desfiando as contas do seu rosário. Não eram bem os mistérios dolorosos, porque pelas suas palavras perpassaram todos os mistérios da vida. E havia nele muita gratidão também. Fazia a barba de duas em duas semanas e aparava sempre o bigode. Eram carícias que lhe sabiam melhor depois que velho e trôpego caiu em isolamento. (Sondei o espelho e vi que o barbeiro anuía.) Aquele ritual dava-lhe muita satisfação. Não podia estar mais agradecido à mulher que o amparava escadas abaixo e ali o trazia. Via-se bem que o velhinho de bigode branco e matreiro procurava gozar o momento, fazendo-me lembrar os gatos que colhem o sol de inverno como quem, à tarde, carrega baterias.
Tinham mais de sessenta anos de casados! Ela sempre fora boa mulher! Esposa, quereria ele dizer. Mas ele não, nem sempre soubera retribuir. Fora tantas vezes infiel e ingrato. Agora arrependia-se, mas quando novo nicles. Praticamente fora ela a criar os filhos, a governar a casa, cuidar da vida como quem cuida de um jardim. Ele entregava algum ordenado, não todo, apenas migalhas. Ela bordara, lavara e passara roupa. Os três filhos são agora doutores, mais por mérito dela que dele.
Que grande mulher era aquela esposa velhinha com a sua malinha castanha no antebraço!
Tudo lhe perdoara, até mesmo quando ele fugiu com uma actriz – mais figurante que actriz, reconhece – duma companhia de teatro que visitara o verão da província. Voltou a casa mais perdido que encontrado, humilhado e rendido. O lugar manteve-se o mesmo. Os filhos já não eram novos e foi a mãe quem impôs o respeito devido ao pai.
Hoje talvez não fosse assim.
Hoje o corpo já não se mexe para nada. Não desce à rua sozinho. Não se deita nem se levanta pelas suas forças ou vontade. Não toma banho e é ela quem, baixinha, a seus pés, lhe apara as unhas e lhe trata os calos.
(Aqui já ele chorava e nós quase.)

A velhinha magrinha mais próxima de fada madrinha que sogra má ficou sempre do lado do seu homem. Aturou-lhe tudo. Perdoou-lhe. Aceitou-o. Era seu. Dedicou-se, devotou-se-lhe. Se era seu cuidou dele como seu, mesmo quando o recebia de pantanas e em frangalhos, mais filho pródigo que amante galante. Era isso que agora o perturbava. Era isso que ele agradecia. Que depois de tantos desprezos ela ainda o amasse e não se poupasse a esforços para que ele estivesse bem. À noite é ela quem, de novo ajoelhada, lhe lava os pés e lhos enxuga. Ora esse é o papel de Nosso Senhor, e ele chora ao recordar-se disso.

[6 de Dezembro de 2012]

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