Um par velhinho
Eu lia ao fundo da sala. Em espera. Lia
sobre um padre amigo caído em desgraça num jornal nacional. Eu sei que a
história não é nada assim e sei que se contada como devesse não teria piada
nenhuma, e o jornal não a publicaria porque não venderia. Algo divertido e
distraído lia eu, pois, o jornal.
A sala não é grande, mas dá para dizer que
tem uns fundos ao fundo, no oposto da porta, e que ali uns sofás acomodam a
espera. Era ali que eu lia. E desde ali vi chegar uma velhinha. Ocorreu-me que
se enganara, pois o salão é de barbeiro. Mas não, não se enganara. Deu para
ouvir a meias a conversa com o dono da tesoura. Juntei a meia conversa com alguma
outra que trazia sem saber no armário da memória. E pela resposta do barbeiro
deu para perceber que ainda havia tempo.
Eu terminei a leitura e pousei o jornal. E
entretanto ali chegou a senhora velhinha, talvez octogenária, trazendo pelo
braço o trôpego marido, não muito mais velho que ela e ainda amparado por uma bengala.
Levantei-me do sofá. Eu tinha menos quarenta anos e percebi que vinha cansado e
nem cem bengalas o segurariam de pé!
O barbeiro ainda se demorou. O velhinho,
trôpego de pernas e sôfrego de companhia, começara a falar com o rapaz da mesma
geração que restara sentado. Entretanto, a esposa saíra leda para dar ainda
umas voltas antes do almoço. Ponderei ceder a minha vez, mas quando ouvi que a
mulher ainda tinha voltas a dar… Subi então para a cadeira e fiquei a escutar a
conversa, que, afinal, era para toda aquela assembleia reunida naquela outonal
Segunda-feira de manhã. Eu estava entre o curioso e o entretido, porque,
afinal, já não era a primeira vez que via tão vetusto par entrar na barbearia.
E a conversa foi correndo.
O velhinho de cara redonda e bigode branco
e vaidoso foi desfiando as contas do seu rosário. Não eram bem os mistérios
dolorosos, porque pelas suas palavras perpassaram todos os mistérios da vida. E
havia nele muita gratidão também. Fazia a barba de duas em duas semanas e
aparava sempre o bigode. Eram carícias que lhe sabiam melhor depois que velho e
trôpego caiu em
isolamento. (Sondei o espelho e vi que o barbeiro anuía.)
Aquele ritual dava-lhe muita satisfação. Não podia estar mais agradecido à
mulher que o amparava escadas abaixo e ali o trazia. Via-se bem que o velhinho
de bigode branco e matreiro procurava gozar o momento, fazendo-me lembrar os
gatos que colhem o sol de inverno como quem, à tarde, carrega baterias.
Tinham mais de sessenta anos de casados!
Ela sempre fora boa mulher! Esposa, quereria ele dizer. Mas ele não, nem sempre
soubera retribuir. Fora tantas vezes infiel e ingrato. Agora arrependia-se, mas
quando novo nicles. Praticamente fora ela a criar os filhos, a governar a casa,
cuidar da vida como quem cuida de um jardim. Ele entregava algum ordenado, não
todo, apenas migalhas. Ela bordara, lavara e passara roupa. Os três filhos são
agora doutores, mais por mérito dela que dele.
Que grande mulher era aquela esposa
velhinha com a sua malinha castanha no antebraço!
Tudo lhe perdoara, até mesmo quando ele
fugiu com uma actriz – mais figurante que actriz, reconhece – duma companhia de
teatro que visitara o verão da província. Voltou a casa mais perdido que
encontrado, humilhado e rendido. O lugar manteve-se o mesmo. Os filhos já não eram
novos e foi a mãe quem impôs o respeito devido ao pai.
Hoje talvez não fosse assim.
Hoje o corpo já não se mexe para nada. Não
desce à rua sozinho. Não se deita nem se levanta pelas suas forças ou vontade.
Não toma banho e é ela quem, baixinha, a seus pés, lhe apara as unhas e lhe
trata os calos.
(Aqui já ele chorava e nós quase.)
A velhinha magrinha mais próxima de fada
madrinha que sogra má ficou sempre do lado do seu homem. Aturou-lhe tudo. Perdoou-lhe.
Aceitou-o. Era seu. Dedicou-se, devotou-se-lhe. Se era seu cuidou dele como
seu, mesmo quando o recebia de pantanas e em frangalhos, mais filho pródigo que
amante galante. Era isso que agora o perturbava. Era isso que ele agradecia.
Que depois de tantos desprezos ela ainda o amasse e não se poupasse a esforços
para que ele estivesse bem. À noite é ela quem, de novo ajoelhada, lhe lava os
pés e lhos enxuga. Ora esse é o papel de Nosso Senhor, e ele chora ao
recordar-se disso.
[6 de Dezembro de 2012]
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