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domingo, 1 de dezembro de 2013

Notas de Roda-pé


O pó do chão!


Acabaram os Jogos Olímpicos. Foi há pouco, mas parece ter sido há mais de um ano. Impossível não admirar o espírito olímpico pelo menos enquanto esforço de superação à procura do citius, fortius, altius. Quer dizer, em busca do mais rápido, do mais alto e do mais forte.
Tocaram-me seis estórias olímpicas. Estórias de (quase) fracasso. Hamadou, do Níger, de 35 anos, só aprendeu a remar há três meses. Ainda assim participou sem medo de ser o último. Julius, do Quénia, competiu na prova do lançamento do dardo. Aprendeu a técnica vendo vídeos do Youtube porque o seu país não tem treinadores: ficou em 12º lugar! Moussambani, da Guiné Equatorial, foi o último a chegar na sua prova. Isso não é notícia; o que é notícia é que quase tiveram de se atirar à piscina para que não se afogasse!
Existem outras muitas estórias: Estes foram os primeiros Jogos em que todos os países apresentaram mulheres à competição. Uma delas, Nur Moahamed, encontrava-se grávida de oito meses, e como competia na prova de tiro – prova de precisão! – lá foi conversando com o filho para que se acalmasse e colaborasse. Óscar Pistorius foi o primeiro biamputado a competir nos Jogos. K. LedecKy e R. Meilutyte, ambas de 15 anos, venceram as suas provas como gente grande e saíram medalhadas a ouro. O cavaleiro japonês Hiroshi Hoketsu, de 71 anos, foi o competidor mais velho; só não participará nos próximos Jogos por que já não tem tempo para treinar outro cavalo!
Entre tantas histórias dos Jogos surpreenderam-me as três próximas: Liu Xiang, chinês, corria mais uma vez a prova dos 110 metros barreiras. Em Pequim lesionara-se durante a corrida. Nestes Jogos lesionou-se de novo, na primeira barreira. Seguiu coxeando, aproximou-se da última e beijou-a. Abandonou a pista em cadeira de rodas!
Durante um jogo de hóquei em campo, Kate Walsh, capitã da equipa inglesa, levou com o stique duma adversária no queixo. Fractura, muito sangue, tragédia. A atleta retirou-se, submeteu-se a uma cirurgia e voltou a entrar em campo para vencer a medalha de bronze!
Mitchell Manteo cumpriu os seus 400 metros de corrida e entregou ao colega seguinte o testemunho da prova. Os USA qualificaram-se para a final, mas perderam um dos seus melhores atletas, Manteo, que correra a sua prova com a perna esquerda fracturada!
Sim, existem mais estórias, mas registam-se apenas estas, embora caiba aqui também a menção feliz para o facto de povos desavindos correrem e competirem lado a lado, e subirem, quando foi o caso, sem pejo, para comungarem os degraus do pódio, e se abraçarem conciliadoramente nas bancadas dos estádios.
O que vi nos Jogos lembrou-me algo mais. Lembrou-me a beleza do desporto quando jogado sem golpes baixos, nem violências ou doping. Lembrou-me a beleza do corpo humano criado por Deus, ou, por outra, talvez permanentemente moldado por Deus e em constante superação. Lembrou-me o contributo do jogo para o crescimento e integração da pessoa humana, quer a nível pessoal quer social. Lembrou-me a eficácia do desporto na criação e desenvolvimento de valores como a disciplina e a responsabilidade, o espírito de grupo e a entreajuda, a lealdade, honestidade e perseverança. Lembrou-me o encanto do arco-íris das nações e o encontro de culturas e tradições díspares mas reunidas para festejar a fraternidade. Lembrou-me a grandeza do sacrifício que exponencia o espírito humano e o projecta para grandes realizações.
Paro aqui para me lembrar novamente dos nomes de Liu Xiang, Kate Walsh e Mitchell Manteo. Nenhum deles ficou em primeiro, mas treinaram afincadamente como os demais e até talvez o merecessem mais que os outros. Nenhum deles ganhou a medalha de ouro, mas encontraram no treino o encanto do esforço por se superarem. Nenhum deles foi laureado, mas todos se esforçaram por merecer participar, todos se sacrificaram e sacrificaram as suas famílias por causa da vontade de vencer, transcendendo e transfigurando limitações e fragilidades. A nenhum deles nasceram asas, mas disseram-nos que quando caímos temos no mínimo um pedaço de chão que nos acolhe e abraça, e de novo nos liberta para novos voos.
Razão tinha São Paulo, também ele muito atento ao que se passava nos estádios e à volta deles, quando nos recorda que ali todos correm mas só um vence. E que vencendo apenas um, todos deveríamos treinar intensamente para vencer, todos deveríamos abster-nos do excessivo e supérfluo para alcançar a glória. A Glória que não morre nem esmoece. Enfim, a mim os Jogos Olímpicos mandaram-me os olhos para lá da cortina, para o país dos dias cinzentos de treino intenso, de dureza e abnegação, de entrega cega a uma profissão que raramente traz a frescura da glória. Pelo menos de forma duradoira. Sim, gostei dos Jogos, mas, sobretudo, eles tocaram-me pelo enorme continente escondido que revelam. Cada prova e cada competição, seja para as estrelas doiradas ou os atletas anónimos mais próximos de nós, falaram-me dum mundo de esforço escondido, de treino denodado, de suor e trabalho duro e exigente, de disciplina e combate à indolência.

Para mim, o mais belo dos Jogos Olímpicos esteve antes. Esteve antes e ficou escondido. Pelo esforço tamanho muitos lograram beber a glória por uma taça. Mas não foi menor a vitória daqueles que mesmo não ganhando, alcançaram erguer-se do pó do chão, tantas vezes acima das melhores expectativas deles próprios.

[4 de Setembro de 2012]

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