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domingo, 1 de dezembro de 2013

Notas de Roda-pé

Obrigado, Padre Camilo!

Lembro-me bem. Foi no dia 8 de Setembro de 1991. Foi a única vez que li em público uma página em latim! Foi em Úbeda, no lugar onde morreu São João da Cruz, numa Missa presidida pelo Padre Camilo Maccise. Ali li a fórmula da Profissão Religiosa, renovando a minha vinculação à família carmelitana, que mais uma vez me abria os braços.
Estranhamente lembro-me bem, logo eu que não lembro quase nada. Lembro-me de ter dormido uma semana no chão duma escola pública, lembro-me de ter trepado de Beas de Segura ao lugar onde outrora fora o Convento dos Mártires o percurso de São João da Cruz para vir atender as Carmelitas de Beas. Lembro-me de muitas coisas mais, da Missa, da homilia… Enfim, e do P. Camilo, pequenino, sereno e sempre a sorrir.
Hei-de recordá-lo sempre.
Por estes dias o P. Camilo Maccise morreu. Foi no dia 16 de Março. A notícia era esperada, mas surpreende sempre.
Há laços que nos laçam a pessoas que nem sabemos bem porquê. Eu era miúdo, ele Geral da Ordem. Sei que falámos e até tenho uma foto. É do estilo circunstancial, como a dos jogadores de futebol à saída do treino. Mas para mim é mais que isso. Ele era ali meu pai, porque Prior Geral da Ordem!
Apesar de pequenino era um homem grande, que dispensou sempre pôr-se em bicos de pés. E assim ficava maior ainda. Depois de Úbeda nunca mais nos vimos e ele nem saberia que eu existia – apesar da sua mastodôntica memória. Eu, porém, fui acompanhando-o de longe com o coração mais que com o olhar.
Agora que morreu quero declarar que a sua vida me tocou. E Deus me tocou através dela
Podem ver o vídeo que os Carmelitas do México tornaram público e perceberão porquê. É um testemunho simples, mas tem a força de sempre, apesar de retratar um homem marcado por doença grave. O P. Camilo é ali um homem ferido e cansado, mas sereno e cheio de confiança. O que ali mais me marca é o tom de familiaridade: parece que fala para mim, e fala, mas fala também para outros muitos irmãos, em muitíssimos e diferentíssimos lugares. Eu senti-me especialmente tocado e envolvido pelo testemunho da sua voz cheia de paz, convocando a nossa família para o redor do seu olhar de patriarca, a fim de confiar-nos a secreta alegria de ter sido chamado por Deus para uma Ordem de fraternidade, de amor e de paz.
Nestes tempos tão sombrios, que nos mostram duramente como o decurso da existência é sempre um rumo incerto por desvelar, tocou-me ainda a serenidade com que nos confiava, que também ele descobrira que o segredo da vida é ser-se guiado por Deus, deixar-se levar pela sua mão, por caminhos tantas vezes desconhecidos. Porque, afinal, os caminhos de Deus não são os nossos caminhos, as nossas ideias não são as Suas ideias; e quanta sabedoria há em descobri-lo e aceitá-lo! Enfim, gostamos todos tanto de levar o volante nas mãos, que, surpreendentemente, nos estranhamos que Deus nos dê a sua e nos guie!
Escutei o seu textemunho como quem escuta um testamento. Nele é como se nos dissesse sou um homem de Deus!; eu, por pura gratuidade de Deus, vi a Deus nos caminhos mais improváveis da vida! Sabemos que sim. Tinham por isso mais brilho aquelas palavras finais que nos dirigiu desde o seu leito. Apreciei ouvi-lo unir Bíblia e tradição, Palavra de Deus e palavra de nossos Santos. Sim, todos nós aprendemos a caminhar caminhando, mas, sobretudo, vendo os mais velhos caminhar. As referências que fez a uma e a outra palavras guardá-las-ei para sempre. E a memória da sua vida também, porque é memória de amizade com Deus.
O Padre Camilo era mexicano de ascendência libanesa. Veio à luz no barco em que a sua família fugia do Líbano para o México, em busca de melhores dias. Talvez isso tenha feito dele um homem de luz em todos os caminhos, como São João da Cruz e Santa Teresa de Jesus, nuestros padres, que ele sempre recordava juntos. Talvez isso o constitua um novo Moisés que mais além havemos de reconhecer melhor, que mais além havemos de contemplar melhor, para melhor perceber que os caminhos de Deus são sempre misericórdia e fidelidade. Nascido em alto mar era homem de voz delicada e firme, afoita e sem medo, porque, afinal, tudo concorre para o bem dos que amam a Deus, «até mesmo o pecado»! Filho de Nossa Senhora do Carmo, A Estrela do Mar, soube até ao fim fazer o percurso da verdade, porque «o que não está nos nossos planos encontra-se nos planos de Deus»!
Ah, como era ele um farol de luz ténue e firme, por entre os nevoeiros de tantas vidas!
Obrigado, P. Camilo, mais uma vez, pela tua voz cansada e agradecida. Sinceramente agradecida, como quem recebeu em seu regaço a medida abastada, calcada e cheia. Descansa agora em paz, tu, que, como alguém disse, nunca deixaste que junto de ti alguém ficasse pequenino.
Descansa em paz, amém!


 [26 de Março de 2012]

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