Obrigado, Padre
Camilo!
Lembro-me bem. Foi no dia 8 de Setembro de
1991. Foi a única vez que li em público uma página em latim! Foi em Úbeda, no
lugar onde morreu São João da Cruz, numa Missa presidida pelo Padre Camilo
Maccise. Ali li a fórmula da Profissão Religiosa, renovando a minha vinculação à
família carmelitana, que mais uma vez me abria os braços.
Estranhamente lembro-me bem, logo eu que
não lembro quase nada. Lembro-me de ter dormido uma semana no chão duma escola
pública, lembro-me de ter trepado de Beas de Segura ao lugar onde outrora fora
o Convento dos Mártires – o percurso de São
João da Cruz para vir atender as Carmelitas de Beas. Lembro-me de muitas coisas
mais, da Missa, da homilia… Enfim, e do P. Camilo, pequenino, sereno e sempre a
sorrir.
Hei-de recordá-lo sempre.
Por estes dias o P. Camilo Maccise morreu.
Foi no dia 16 de Março. A notícia era esperada, mas surpreende sempre.
Há laços que nos laçam a pessoas que nem
sabemos bem porquê. Eu era miúdo, ele Geral da Ordem. Sei que falámos e até tenho
uma foto. É do estilo circunstancial, como a dos jogadores de futebol à saída do
treino. Mas para mim é mais que isso. Ele era ali meu pai, porque Prior Geral
da Ordem!
Apesar de pequenino era um homem grande,
que dispensou sempre pôr-se em bicos de pés. E assim ficava maior ainda. Depois
de Úbeda nunca mais nos vimos e ele nem saberia que eu existia – apesar da sua
mastodôntica memória. Eu, porém, fui acompanhando-o de longe com o coração mais
que com o olhar.
Agora que morreu quero declarar que a sua
vida me tocou. E Deus me tocou através dela
Podem ver o vídeo que os Carmelitas do
México tornaram público e perceberão porquê. É um testemunho simples, mas tem a
força de sempre, apesar de retratar um homem marcado por doença grave. O P.
Camilo é ali um homem ferido e cansado, mas sereno e cheio de confiança. O que
ali mais me marca é o tom de familiaridade: parece que fala para mim, e fala,
mas fala também para outros muitos irmãos, em muitíssimos e diferentíssimos
lugares. Eu senti-me especialmente tocado e envolvido pelo testemunho da sua
voz cheia de paz, convocando a nossa família para o redor do seu olhar de patriarca,
a fim de confiar-nos a secreta alegria de ter sido chamado por Deus para uma
Ordem de fraternidade, de amor e de paz.
Nestes tempos tão sombrios, que nos
mostram duramente como o decurso da existência é sempre um rumo incerto por
desvelar, tocou-me ainda a serenidade com que nos confiava, que também ele
descobrira que o segredo da vida é ser-se guiado por Deus, deixar-se levar pela
sua mão, por caminhos tantas vezes desconhecidos. Porque, afinal, os caminhos
de Deus não são os nossos caminhos, as nossas ideias não são as Suas ideias; e
quanta sabedoria há em descobri-lo e aceitá-lo! Enfim, gostamos todos tanto de
levar o volante nas mãos, que, surpreendentemente, nos estranhamos que Deus nos
dê a sua e nos guie!
Escutei o seu textemunho como quem escuta
um testamento. Nele é como se nos dissesse sou um homem de Deus!; eu, por pura
gratuidade de Deus, vi a Deus nos caminhos mais improváveis da vida! Sabemos
que sim. Tinham por isso mais brilho aquelas palavras finais que nos dirigiu
desde o seu leito. Apreciei ouvi-lo unir Bíblia e tradição, Palavra de Deus e
palavra de nossos Santos. Sim, todos nós aprendemos a caminhar caminhando, mas,
sobretudo, vendo os mais velhos caminhar. As referências que fez a uma e a
outra palavras guardá-las-ei para sempre. E a memória da sua vida também,
porque é memória de amizade com Deus.
O Padre Camilo era mexicano de ascendência
libanesa. Veio à luz no barco em que a sua família fugia do Líbano para o
México, em busca de melhores dias. Talvez isso tenha feito dele um homem de luz
em todos os caminhos, como São João da Cruz e Santa Teresa de Jesus, nuestros
padres, que ele sempre recordava juntos. Talvez isso o constitua um novo Moisés
que mais além havemos de reconhecer melhor, que mais além havemos de contemplar
melhor, para melhor perceber que os caminhos de Deus são sempre misericórdia e
fidelidade. Nascido em alto mar era homem de voz delicada e firme, afoita e sem
medo, porque, afinal, tudo concorre para o bem dos que amam a Deus, «até mesmo
o pecado»! Filho de Nossa Senhora do Carmo, A Estrela do Mar, soube até ao fim fazer
o percurso da verdade, porque «o que não está nos nossos planos encontra-se nos
planos de Deus»!
Ah, como era ele um farol de luz ténue e
firme, por entre os nevoeiros de tantas vidas!
Obrigado, P. Camilo, mais uma vez, pela
tua voz cansada e agradecida. Sinceramente agradecida, como quem recebeu em seu
regaço a medida abastada, calcada e cheia. Descansa agora em paz, tu, que, como
alguém disse, nunca deixaste que junto de ti alguém ficasse pequenino.
Descansa em paz, amém!
[26 de Março de 2012]
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