A prateleira mais
alta
(Ideia bem comprada!)
À medida que os dias de Páscoa vão
avançando vai esmorecendo a força do fogo novo que inopinadamente rebentou ainda
a noite de Páscoa estava negra. Não é fácil manter acesa a chama da fé! E assim
como um fogo, assim a fé. Arde o fogo e resta a cinza que se acumula sobre as
brasas. Há cinza. E com sorte haverá brasas por debaixo! À medida que os dias
da Páscoa crescem parece que o fogo que emergiu das cinzas pretéritas e com as
quais antes nos ungíramos se vai acalmando, apagando.
À medida que os dias de Páscoa crescem
murcham as flores e rebentam frutos pequeninos como amêndoas pequeninas, e
então os pregadores pregam-nos urgências para mantermos pura a renovada
juventude da alma. E assim, à medida que murcha o calor do fogo e esmoece o
viço das flores, urge invocar o Espírito Santo de Deus, para que, irrompa
poderoso como um fogo caindo do alto em cachoeira sobre nós!
Passam as semanas. A dúvida instala-se.
Poucos são já os que se dão ao trabalho de ir mar adentro, impelidos pelo vento
da notícia da Ressurreição. Passadas quase sete semanas, quem ainda se sente
barco impelido ou testemunha arrebatada pelo inaudito?
Não é fácil manter acesa a chama da fé!
(É aqui que compro a ideia ao P. Leal!)
Como estava atrasado no meu artigo o meu
amigo sussurrou-me em linha e meia um conto, que eu contarei mais pelo
exercício de adivinhar que o de ouvir. Ora, era uma vez…
O supermercado das religiões. Pois é,
segundo aquele conto bendito existem supermercados das religiões. E são muitas
as religiões! (Quero crer que as embalagens mais bonitas e de excelência de
grafismo nem sempre são as que embalam o melhor produto; digo, a melhor
religião!) De resto, todos sabemos que existem três coisas que nem Deus sabe.
Uma delas é o número de religiões! Se acrescentarmos alguns sucedâneos a que
basta juntar água à maneira de baptismo, então, fiuuuuu! Fiuuuuuuuuuu, mesmo!
São tantas as religiões existentes que dão para encher quilómetros e
quilómetros de prateleiras, que como sabemos possuem vários níveis ou andares.
Ora, segundo este conto que começou era
uma vez, existe um supermercado das religiões, onde se apresentam as diferentes
religiões. Logo à entrada estão uns pacotinhos bonitinhos. Quem comprar tem
direito a dois pauzinhos de incenso produzido em Alverca, mas directamente
importados de uns inalcançáveis monges do Tibete! Um pouco ao lado, os
pacotinhos são maiorzinhos, em tons azuis, e afirmam conter água do rio Jordão;
quem comprar e beber vai sentir-se limpo e renovado. A verdade é que a
prateleira é enorme o que nos deixa a leve suspeita que se toda aquela água
fosse do rio Jordão ele será – digo será, porque nunca o vi! – da dimensão do
Oceano Índico! Outra prateleira ostenta umas caixinhas cor de terra, que
prometem ser biodegradáveis. Ler são poucos os que lêem aqueles caracteres
orientais, mas todos acabam percebendo que levando levarão para casa uma
réplica da malga de Buda, aquela mesma pela qual ele bebeu da água do rio antes
de alcançar a iluminação!
E as prateleiras sucedem-se e sucedem-se e
sucedem-se. As pessoas como é comum ver-se nos supermercados habituais circulam
por aqui e por ali. Há famílias, gente jovem, adolescentes, velhos, muitos
velhos e sobretudo maduros de meia-idade. Uns depenicam aqui, outros acolá. Uns
vão direitos ao lugar do costume porque só consomem daquela marca! Outros
rondam, rondam indecisos. E é assim que uns entram e saem logo. Outros não. A
maioria, porém, lê as instruções, faz imensas perguntas, procura inteirar-se das
propriedades curativas e dos efeitos secundários. África e Ásia são as origens
mais procuradas, mas mais as segundas que as primeiras. E se a embalagem
prometer peace ou love – ou melhor ainda, peace and love! – a saída em larga
escala está garantida. Mesmo que seja proveniente de regiões que nunca conheceram
a paz, nem saibam o que é o amor! Uma coisa é certa: estão ali todas as
religiões do mundo. E entre elas não são poucas as que prometem saber tudo
sobre o outro! Estas são muito procuradas, quanto mais não seja pelo GPS made in Taiwan cuja voz angelical garante
conhecer o Trilho do Céu!
Existem ainda estantes estranhas e outras
horripilantes. Existe por exemplo a Estante do Manuseio da Cobra, que atrai
homens e mulheres religiosos e muito puritanos, praticantes do manuseio de
cascavéis como prova de pureza. (Apre! e se a cobra não souber contar as
três sílabas da palavra impuro?)
Existe um erro de marketing em que nunca se
incorre no supermercado das religiões: antes que se publicite em larguíssima
escala uma nova religião, já ela está nas prateleiras pronta a consumir e a
repor em caso de repetição do dia 1 de Maio!
Pude reparar que são raros os grupos e
mais rara a frequência de famílias. Então, as compostas por mais de duas
gerações são raríssimas! Porém, elas existem e por vezes frequentam variadas
prateleiras. Quando assim é, nem atendem às incompatibilidades anunciadas nas
bulas.
Lá ao fundo, discreta e um pouco na sombra
por causa de uma lâmpada que nenhum trabalhador do supermercado conserta, existe
uma prateleira onde poucos ousam ir. A distância é enorme e o ambiente parece
mal frequentado. Umas velhinhas distribuem chã, mantas e bolachas a desdentados
pouco recomendáveis. A custo se acede ao perímetro daquela religião e quando lá
se chega tem de evitar-se os projécteis das pombas e vê-se que as mesmas
velhinhas são quem no culto lêem as leituras das Escrituras. (E que o sacristão
é quase sempre um coxo, ou um meio cego, ou um meio casmurro qualquer e de
primeira apanha!) Têm peregrinações a que poucos ligam, um mandamento da
caridade que já quase só os arrumadores de carros apreciam. Os seus ministros
andam sonolentos e pastosos nas prédicas. Apesar de o serem do Deus vivo! Rara
é a estante que não possui uma cruz enorme e frequentemente 14 catorze quadros
encimados por mais uma cruz!
Não é fácil chegar ali. Aquela prateleira algo
desengonçada e tão alta, quase sempre vazia, obriga um longo esforço de
aproximação. E tantas vezes aquele vazio meio sombrio sabe mais a frio que a
calor apetecido! Quantas vezes para se lá chegar é necessário abandonar pesos e
contrapesos, suspeitas ingénuas e construções preconceituosas que carregamos ao
longo da vida! Quantas vezes…
Talvez não seja o lugar mais bonito do
supermercado. Mas é ali que muitos vão ao desengano e tantos muitos porque já
não têm outra esperança. Mas é provável vir-se de lá renovado pelo Gratuito,
esse que prometeu enviar-nos o Espírito que ensinaria toda a verdade.
[20 de Maio de 2012]
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