Passos no Verão
Era o primeiro
dia de Verão a sério. Sério descia eu a suave ladeira do Hospital – E só agora
reparo que o colocaram no mais alto da cidade, como quem nos mostra o Calvário
quotidiano de tantos! Descia, dizia, a suave ladeira do Hospital e a meu lado
uma mulher que ali limpa escadas e corredores caiu na passadeira com as três
sacas do supermercado, a bolsa e a esfregona que também levava. A mulher tem
três filhos, mas foram outros que a levantaram sem conseguir evitar-lhe um olho
negro que vai inchar, um galo na testa e escoriações nos braços e nas mãos, e mais
fundas nos joelhos. Queixava-se muito dum pulso, mas como precisa muito dele
para cuidar da casa e da casa de dois velhotes e da casa duma viúva acamada e passar
a esfregona pelos longos corredores do Calvário nem se atrevia muito a falar
disso.
(Ó Santa Mãe
da dor, – Gravai no meu coração as chagas do Redentor.)
Em sentido
contrário o passeio subia. Subia ligeiro. Ninguém apressava o passo, talvez
mais por causa do calor. Na paragem dos autocarros saíram três passageiras.
Duas eram novas e teriam os seus dramas, que as dores a todos tocam. Falavam
inglês e desapareceram como gazelas ligeiras e frescas pelas sombras do
jardinzinho. A terceira, uma velhinha de negro, dum luto cerrado que parecia levado
por muitos, talvez por marido e filhos, desceu a custo o último degrau. Só
podia ir para o Calvário com a sua malinha preta cheia de exames e credenciais.
Dava saltinhos, caminhava a impulsos. Não dava passos, arrastava-se num tremer
que não sei explicar mas a fazia andar. Nas fontes os cabelos brancos bailaricavam,
única nota que me pareceu de alguma alegria no engelho daquele corpo. Pensei
que se ia para o Calvário demoraria a chegar naqueles passinhos tão curtos. Mas
se para o Calvário não ia, para que outro calvário iria, pensei. Passei,
cruzei-me com o seu rosto resignado e firme, como quem vai em missão. Como quem
vai determinada em missão.
(Meu Jesus,
por vosso passos, – recebei em vossos braços este pobre pecador.)
Na escadaria
que ali há junto daquelas duas igrejas, uma das quais vai amolecendo e ruindo
silenciosamente por dentro como um cancro, um conhecido e público farrapo de
mulher curtido a garrafas de vinho, partilhava migalhas de não sei quê com as
pombas. As pombas gostavam do que lhes dava, tal o atropelo de asas e bicos que
ali se assistia. As pombas não nos falam, mas ainda assim, ou talvez por isso, são
mais pacíficas que muitos humanos e devem perceber muito da nossa solidão.
Tanto que algumas trepavam-lhe para o regaço e para os ombros. E comiam-lhe à
mão. E beijavam-lhe a cara. A velha sorria contente por ter três dentes a mais
que as pombas e pelo afago das unhas que lhe subiam pela blusa acima. Algumas das
que lhe comiam à mão ela as afagava, as que ficavam no chão davam saltos como
quem luta pelo melhor quinhão. Não vi na velha coisa que fosse bela, nem o
sorriso que ia demolhando em dois pacotes de vinho. A velha escura e negra de
pele teria – quem sabe – uma alma branca e até bem mais branca que a de tantos
que são de branca comunhão diária. E meditei no drama ou revolução que a tinha
despojado quase inteiramente de humanidade e a levava a consolar-se na
fraternidade com as pombas.
(Ó pai Eterno
eu vos ofereço as chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, – para curar as chagas
das nossas almas.)
As eras
galgaram as paredes das casas do Bairro dos Ferroviários e já há muito entram
por debaixo das telhas. Entram e passeiam-se pelo forro das casas, porque
precisam de respirar e dentro delas não há luz. O mato cresceu e cobriu três ou
quatro carcaças de carros perdidos da memória dos donos. As janelas e as portas
foram prudentemente tamponadas a tijolos de cimento, mas ainda assim vive ali
alguém. Uma comunidade de zombies fugidios, pelo menos. Que eu saiba não se dão
muito a conhecer, nem incomodam cidadãos. Creio também que não querem ser vistos
e notados. (Terão ido lá as meninas do Census?, penso eu dubitando
justificadamente.) Não sei como vivem que lá não me atrevo a entrar, mas não
vivem bem concerteza. Dão passos melancólicos que só servem para afastar-se
mostrando-nos as costas enquanto vão indo, indo, indo como quem acaba de
reentrar numa nova trip. Para eles não tenho mais discurso que um pensamento
estupidamente incapaz e humanamente vazio e talvez covarde.
(Kyrie eleison; Christe eleison; Kyrie
eleison.)
Na
porta da minha igreja, que tantas vezes eu digo ser o centro do jardim da
comunidade que somos, espera-me um casal. Entramos para a clemência da sombra
do átrio. Ali podemos falar e eu ouvi-los contar por que estão ambos
embrulhados em ligaduras nas mãos e nos pés. As das mãos são visíveis e reais,
pois se vêem bem. As dos pés não são visíveis mas são reais, porque pudessem
eles e fugiam daqui. Mas são muitos os grilhões que os prendem e a história e
tradições que os impedem de aproveitar as correntes de ar e voar daqui.
Ontem à
noite podia ter sido uma tragédia em minha casa. E por causa da droga. O nosso único
filho bateu-nos aos dois. Esperávamos amparo e consolo na velhice e só temos
amargura para beber. Já estávamos conformados que não viesse à Igreja nem
quisesse rezar o Terço connosco, que fizesse a vida dele, desde que não nos
incomodasse. Mas caiu no poço da droga e já não tenho forças para de lá o
tirar. Ontem bateu-nos porque não tínhamos dinheiro para a dose. Foi muito
feio. Nunca pensei levar dum filho, eu e a minha mulher. Magoamo-nos os três
nos vidros que se partiram a nossos pés!
O
Santíssimo que se encontrava lá em cima e também no meio de nós foi testemunha
do que ouvi. O sangue dos três misturou-se abundantemente como se fora uma
única flagelação – a flagelação duma família que outrora foi boa e modelar.
Hoje estão todos cosidos a pontos que unem as carnes mas não a alma e coração.
Entrámos
por fim na Igreja para rezarmos os três à Senhora da Agonia.
(Meu
Jesus, perdão e misericórdia, – Pelos méritos das vossas santas chagas.)
[27 de Julho de 2011]
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