Continente de Missão
A Banda Mais
Bonita da Cidade não é de cá. E de lá, do Brasil. Parece de facto bonita. Canta
uma canção muito simples que se chama Oração. São uns vinte jovens a cantá-la.
Numa noite de
verão caiu-me suave na alma como a chuva duma última oração. Diz o refrão:
«Coração não é tão simples/quanto pensa,/nele cabe o que não cabe/na despensa.»
Impelido por esta última oração desembrulho alguns restos e indícios que trago
guardados sobre a missão.
Ninguém
anda confortável. Os antigos, porque tudo mudou e já nada é como dantes. Os
novos, porque tudo é tão parado e assim não dá. Já nada é como dantes. A
transmissão da fé também não. Ambas gerações cuidam coabitar a dura faixa da
terra de ninguém. Porque a sociedade já não é cristã terminou o tempo em que a
fé se transmitia escorreitamente por continuidade. Agora que os tempos são de
pluralidade resta-nos o firme dever de anunciar Jesus e a sua mensagem em
diálogo com os demais. E não estamos habituados a isso.
Não
podemos impor, apenas propor. Ou não aceitarão o que temos para dizer.
A
juventude é uma questão de hoje, porque só agora há juventude: antes saltava-se
sem mais da infância para a adultez. Hoje, porém, os jovens são-no durante
vinte anos! Merecem toda a atenção. Se sempre questionaram o que a geração
anterior estimou e lhes legou, também é verdade que agora rejeitam mais
liminarmente a fé que vivemos e lhes é apresentada, mais a mais se a embrulhamos
em obrigações e incoerências.
Olhando a JMJ
Madrid 2011 consolidou-se em mim a convicção de que os jovens são hoje o novo continente
de missão. Esteve ali uma imensa minoria de 1 500 000 jovens. Óptimo! Mas acabo
a pensar que de todo não estiveram ali os mais significativos da nossa
sociedade ocidental e europeia.
(As JMJ serão
só para esses? E os outros tantos que não se revêem nesse modelo?)
A missão tem
de começar. Em razão dessa urgência dei ali pela falta: 1. Dos jovens que
acusam a Igreja de não ser nem transparente nem lugar de crescimento e comunicação
da fé; 2. Dos incomodados pelas incoerências dos que devemos testemunhar a adesão
a Jesus Cristo; 3. Dos jovens com questões absurdas e acusações inconsequentes,
mas ainda assim abertos a caminhar caminhos de transcendência sempre atentos
aos pés solidários que trilham o pó da terra; 4. Dos que anseiam viver a fé
doutra maneira, mas para quem o luto das celebrações os agride e a alegria da
fé tarda em alvorecer; 5. Dos desiludidos que nasceram cristãos e cuja relação de
comunhão com a Igreja se rompeu; 6. Dos jovens filhos de rupturas familiares e
sociais que hoje não sabem bem quem são, donde vêm, para onde vão.
Existe uma
multidão de jovens murchos e abandonados formando um continente novo como
aquela ilha do tamanho dos EUA (!) que voga pelo Pacífico, feita dos restos plásticos
da sociedade de consumo! Que fazemos deles e por eles? Como (re)acender a chama
da fé nesse imenso continente juvenil?
Facto: Depois
da JMJ caiu-me no confessionário um rapaz, A.,
da juventude do Papa. Confessou-se como se confessam quase todos os jovens
portugueses. Não sei como mas acabámos demorando-nos pelo trivial da fé. Ou nem
isso. Havia, porém, ali, busca, inquietude: talvez seja sacerdote um dia, quem
sabe? Não me recordo por que se viera confessar! E ele não sabia se eu era
padre, porque tinha túnica, porque me pendia uma estola roxa dos ombros, nem
porque se ajoelhara em vez de sentar-se! Não distinguia padres de frades,
evangelistas de apóstolos! Não sabia o Acto de Contrição, desistira da
catequese, da Missa, dos Sacramentos! Sabia o Pai Nosso e o nome da Igreja: do
Carmo.
Fora às JMJ
Madrid 2011!
Achou oportuno
falar com alguém sobre elas. Perdido, de férias em casa não encontrara
interlocutor. Por entre as brumas duma sociedade que deixou de ser cristã
descobriu uma igreja, entrou, tacteou e ajoelhou-se. Eu estava ali. Preocupado,
estava ali. Preocupam-me estas questões da transmissão da fé. Preocupam-me os
jovens atravessando um mar cultural plural sem saber centrar o seu coração e
vida na vida e coração de Jesus. Preocupam-me as nossas infidelidades ao
Evangelho que a todos ferem – e a eles mais! –, e as infidelidades aos
problemas reais das pessoas; umas e outras atiram os jovens para fora da barca
e causticam o futuro da fé.
Antes, num
antigamente mais antigo, não havia alternativa à fé: nascia-se cristão e ali se
medrava, definhava e por fim era ainda ali que se ouvia a Última Encomendação.
Ao longo do rio da vida as soluções, as ofertas e possibilidades irrompiam esparzidas
com água benta. Não assim hoje. A Igreja perdeu naturalmente esse poder. No
ocidente o cristianismo já não pode apresentar-se como religião natural, onde
se entra porque é assim, porque é natural que se entre.
(Não li eu o
Bispo do Porto durante as JMJ dizer que o Cristianismo vive a sua pior crise de
sempre e que só se salva refundando-se? – sim, creio que li, mas como era num
jornal laico…)
Entrámos numa
nova era da sementeira da Palavra. O campo é vastíssimo: um continente inteiro
e diferenciado! Cabe-nos semear a Palavra em cálidas experiências de comunhão
com Jesus, homem e Deus aberto a todos os homens e mulheres. Creio que o futuro
exige quem saiba dizer e testemunhar o encontro e o diálogo com Jesus e o
compromisso que implica a entrega de vida aos demais. É isso que venho
pressentindo quando me pedem palavras de fé verdadeira, caminho com afectos,
diálogo de comunhão, compromisso radical.
Não saberei
dizer donde surgirão os homens e mulheres com força interior para avançar para
o novo continente de missão. Mas sei que ainda não é tempo de depreciar, porquanto
nos diz o Apóstolo João: «Escrevo-vos, jovens, porque vencestes. Porque sois
fortes. Porque a Palavra de Deus está em vós.»
Encerradas as
JMJ restaram 250 000 jovens em Madrid. Dum palco alguém clamou então por vinte
mil jovens sacerdotes para evangelizar a China. Subiram ao palco cinco mil
rapazes e 2.300 raparigas. Não creio que todos sejam ordenados, mas o caminho
de evangelização daquele país-continente parece estar recomeçado. É hora de
nascer o dia do novo continente de missão: os jovens. Quem se lhe dedicará?
Quantos corações serão necessários para o percorrer?
(Declaração de
interesses: Participei em três JMJ: Santiago de Compostela, Paris e Roma.
Indirectamente em
Colónia e Madrid. )
[14 de Setembro de 2011]
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