A raposa
Todos falhamos, eu também. Intimamente propus-me no
início do Ano Pastoral publicitar em tempo útil os pequenos oásis espirituais
que, em tempo de férias estivais, brotam aqui e ali, à sombra de mosteiros ou
santuários, como pequenas elevações de meditação e reflexão que a tantos renovam
e convidam a subir. São recantos vários de tonalidades várias que por esse
pequenino Portugal fora vão vivificando comunidades e gentes com a água viva do
Espírito de Deus. São oásis, pronto. Pequenos remansos que purificam a seiva de
comunidades, famílias e fiéis, sacerdotes e consagrados. Existem para todos os
gostos, quero dizer, formatos, e são normalmente bem dirigidos e de substância
consistente e nutritiva.
Seriam coisas do género Semanas de Espiritualidade,
Jornadas de Oração, Encontros de Amigos de Orar – actividades promovidas pelo
Centro de Espiritualidade de S. Teresa, adossado ao Santuário do Menino Jesus
de Praga. São momentos fortes pensados para pessoas que chegam em família ou em
grupo e até individualmente para regenerar o corpo, descansar o espírito e
rezar.
Propus-me, dizia, publicitar esses pequenos oásis.
Não o fiz e penitencio-me. Mas por que não o fiz, pergunto-me? Porque perdi
essa oportunidade de conduzir alguém para esses quase secretos recolhimentos?
Não o fiz por desorganização. É certo que não tenho nem muito espaço nem muitos
meios, mas a disponibilidade de que disponho poderia ter sido usada para
divulgar tanto bem que brota silencioso, tanta fonte generosa que por aí corre discreta.
E não o fiz porque o ruído me caiu em cima, me dispersou, forçando-me ao
lufa-lufa que cansa e distrai, obrigando-me a correr e a esquecer que é mais
importante a atenção à beleza interior que a da fachada.
Falhei, está dito. Quero agora reorientar-me.
Falarei por isso de raposas e de cães.
Conta-se num conto, talvez inglês, quem sabe, que
numa caçada à raposa alguém se pôs a observar os cães. E que verificou?
Verificou que numa dessas célebres caçadas os tempos são distintos e para resolver
com naturalidade. Assim, há o tempo da espera, da perseguição e o fim. Enquanto
se espera parece que nada passa, mas passa. Os senhores vão chegando com as
suas matilhas trazidas por criados e servos. Chegam em suas jaulas, não por
serem ferozes mas para os transportar seguros. À chegada a maioria dormita,
parece desinteressada, mas na realidade não dispersam forças, e latem para
sinalizar a presença e trocar pequenas mensagens, como quem diz: pensavam que eu
não vinha?
Depois dá-se a largada e ao que parece um ligeira
vantagem à raposa, que é hábil e ladina como se sabe. Logo de seguida largam-se
matilhas enormes de cães que são seguidos pelos seus senhores a cavalo. Aqui
vem o interessante da história. Depois que se dá a largada da cãozoada aquilo torna-se
latir infernal. Todo o cão que por ali há, de tão excitado que se encontra,
grita e esganifa-se na sua linguagem canina, e persegue o mais que pode a pobre
raposa. Diz quem viu que a chinfrineira é infernal. Todo o cão berra, todo o
cão late, todo o cão ladra no limiar da excitação. Correm como loucos, saltam
valas e valados, vencem outeiros, ribeiros e muros. Tudo vale para se animarem
a correr, para perseguir a prima raposa que lhes largaram à desfilada mesmo à
frente do focinho.
Diz quem viu que alguns cães acabam por abandonar a
perseguição. Não, não é que não saibam do ofício. O certo é que muito antes do
fim alguns canídeos o abandonam. No entanto, a maioria prossegue a demanda. Mas
logo outros, mais à frente, se vão deixando ficar. Também não é por se terem
cansado, que alguns certamente se cansam mais rapidamente que outros. A verdade
é que ainda muitos animam outros muitos. E todos correm e os senhores lordes
também. Creio que a caçada ainda não vai a meio e mais de metade da matilha já
se deixou ficar!
Creiam que é verdade, quem viu foi quem me contou.
Aquilo é desporto de senhores, mas não dispensa as mais ágeis destrezas dos
fiéis amigos dos humanos. Quando, falta um pouco menos dum terço são já
pouquíssimos os cães dedicados a sinalizar a espantada raposa fuginte. E serão
cada vez menos até serem poucos e raros.
Algumas vezes a raposa não é alcançada. Quando assim
é merece o prémio da liberdade. Outras vezes é. Mas a pergunta que aqui conta e
a que quero chegar é: por que tantos cães desistem da perseguição? Só sei o que
me disseram: a grandíssima maioria desiste. Porque será? A resposta não é óbvia
e de fácil alcance, por isso a adianto: os perseguidores vão desistindo porque
vão deixando de ver a perseguida! À medida que a vão deixando de ver abandonam
a correria louca e param! Enfim, alguma vantagem a raposa há-de ter sobre os
primos. Eis o interessante: o ver é fundamental para manter vivo o interesse da
perseguição. Não ver leva ao desânimo e à desistência. Na verdade parece que
estas caçadas já não se realizam. Porém, a moral da história mantém-se.
Vertida a metáfora para a pastoral cristã, também
por aí, creio, se pode justificar o porquê de tantos baptizados abandonarem os
seus compromissos, o seu testemunho. Enfim, uns após outros, e muitos depois de
muitos, vão deixando-se ficar e deixam de seguir o Senhor que caminha bem lá à
frente de todos!
Creio que é bem plausível a hipótese. E é por essa
razão que me penitencio. Enfim, neste Verão, terei contribuído para que alguns
deixassem de ver a raposa? E esfriassem a sua fé e confiança no Senhor que
chama a segui-Lo? Não sei. Mas sei que gostaria de não ter esta dúvida.
Máxima
«Quem quiser ser meu discípulo, tome a sua cruz e
siga-me.» (Lucas 9:23)
Mínima
«Onde é que
te escondeste, Amado, e me deixaste com gemido?
Como o cervo fugiste, havendo‑me ferido;
Saí, por ti clamando, e eras ido.» (S.João da Cruz )
[20 de maio de 2010]
Como o cervo fugiste, havendo‑me ferido;
Saí, por ti clamando, e eras ido.» (S.
[20 de maio de 2010]
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