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terça-feira, 3 de setembro de 2013

Notas de Roda-pé




Coração

(Não queria falar da crise. Por que muito se fala dela a propósito e a despropósito. E isso faz-me frio, um frio de descrença a que nós não estávamos habituados. Mas não falar dela torna-a ainda mais presente. Por isso falarei da lareira onde a crise se derrete: o coração!)
Que o coração é de carne todos o sabemos, mas é carne-músculo, o que por si só indicia que deve ser enrijecida. Mas haverá músculo e músculo, rigidez e rigidez, esclerose e esclerose.
Dou por mim a pensar em corações. O de Paulo de Tarso deve ter sido bem rijo, atlético e até guerreiro, não é só por ter anunciado o Evangelho em muitas asperezas, mas pela maneira como o fez: ardente, combatente, irresignado, em constante labuta apologética, em permanente estado febril.
O de Bartolomeu de las Casas foi igualmente imenso e amplo, ardente como um tempestade de fogo e com um arco-íris, inquieto mas justo, digno, livre e paterno, persuasivo e exigente e inflexível se necessário.
O de Martinho de Porres foi pequenino e dócil e piedoso, atento e escravo, paciente e humilde, desapegado, piedoso e com espaço para uma vassoura, uma bacia de água e ligaduras.
O de João da Cruz foi sereno, suave e puro, decidido, austero e terno, forte, doce e amigo, nele cabiam frades e passarinhos, primaveras, santos e anjos, profetas, pobres e poesia, e tinha de certeza uma mangedoura e um calvário!
Os das mulheres, de que aqui não falei, são iguais, mas talvez ainda mais fortes, mais valentes, mais ternos, mais decididos.
Já tenho descansado em corações e corações. Já tenho tropeçado e encalhado neles. E até levado por eles como em carroças aos solavancos. Nada de mal, nada de mais. Assim é com todos. Corações há por aqui e ali, por onde vou, cuja solicitude e meiguice é um descanso, um refrigério, uma praia amena com areia quente e ondas suaves.
Também há os que esperam algo de mim, muito de mim: serenidade e paz na confissão, fortaleza e unção na Eucaristia, silêncio e ternura nas voltas pelo claustro, compreensão e perdão num locutório, atenção e ouvido no inesperado dum sobressalto qualquer, sorriso e bênção pelos carminhos. Direi apenas que se faz o que se pode, que nem sempre o coração chega a todas as cambiantes. E há outros que esperam que me deponha nas mãos deles e eu com tanto medo das duras tenazes de ferreiro!
Estamos em início de ano. Chegamos aqui tão cansados, que cansados havemos de por uma e outra vez os pés ao caminho.
Num dos acasos típicos destes tempos dei de frente com uma canção. Poderia transcrevê-la toda aqui, que valeria a pena. Mas tenho dificuldade em traduzi-la na sua simplicidade. É espanhola e chama-se Gente. Os intérpretes, Presuntos Implicados, é um nome que, julgo, supõe trocadilhos que eu não alcanço. Fui procurar a canção deles. Fala ela de gente banal, de pessoas simples, muito simples. De pessoas anónimas que vão fazendo milagres que se coam na tecedura do tempo. Gente em quem não reparamos, mas em quem eu quero reparar neste início do ano. Não governam empresas, não gastam salários estapafúrdios, não realizam milagres financeiros na Bolsa. São gente simples de sacos plásticos na mão, com dores de cabeça e artroses como os demais. É gente assim que precisamos, que vamos precisar de valorizar mais e mais. Gente sem preço, a quem peço que não desista. Gente que não põe preço no que faz, a quem de quando em vez nos esquecemos de sorrir, de agradecer. São heróis, os meus heróis de coração que não encolhe em tempo de crise. Só não movem o mundo, mas sem eles o mundo fica mais perro. São gente assim que aquece o mundo, que espanta o frio ao nos trazerem para junto de nós o suave latido do coração.
Há tanta gente que encurta as horas dos cansados, que faz sonhar desanimados; gente que reza junto dos altares, que acredita, infunde e traz a paz. Gente forte de olhar seguro que leva gente aos hospitais, que visita lares e esparze a solidão de tantos apartamentos que parecem túmulos. Gente bem lembrada que não pensa em si, cujo tempo estica, estica, estica, e junto de quem duas horas parecem dois dias soalheiros. Gente que adivinha o tempo, que tem sempre tempo para dar. E nenhum preço para cobrar. Há gente de olhar que não olha, não fere, não inquire. Gente como anjos, como anjos serenos que beijam o sulco das lágrimas.
Estamos cada vez mais frios, mais separados, mais ausentes uns dos outros, mais incapazes de nos levantarmos do chão porque há tesouros que ignoramos, valores que começamos a esquecer, que preferimos não ver, não imitar, não aprender, não agradecer. E assim a malha vai ficando mais larga mais larga e o calor esvaindo-se por aí expõe-nos ao gelo da crise.
Bom ano, bom coração.

Máxima
«Jesus vive perpetuamente para interceder por nós.» (Hebreus 7:25)

Mínima

«Deus visita-nos, mas, a maior parte do tempo, nós não estamos em casa.» (Joseph Roux)

[11 de Fevereiro de 2007]

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