Coração
(Não
queria falar da crise. Por que muito se fala dela a propósito e a despropósito.
E isso faz-me frio, um frio de descrença a que nós não estávamos habituados.
Mas não falar dela torna-a ainda mais presente. Por isso falarei da lareira
onde a crise se derrete: o coração!)
Que
o coração é de carne todos o sabemos, mas é carne-músculo, o que por si só
indicia que deve ser enrijecida. Mas haverá músculo e músculo, rigidez e
rigidez, esclerose e esclerose.
Dou por mim a pensar em
corações. O de Paulo de Tarso deve ter sido bem rijo, atlético e até guerreiro,
não é só por ter anunciado o Evangelho em muitas asperezas, mas pela maneira
como o fez: ardente, combatente, irresignado, em constante labuta apologética,
em permanente estado febril.
O de Bartolomeu de las
Casas foi igualmente imenso e amplo, ardente como um tempestade de fogo e com
um arco-íris, inquieto mas justo, digno, livre e paterno, persuasivo e exigente
e inflexível se necessário.
O de Martinho de Porres
foi pequenino e dócil e piedoso, atento e escravo, paciente e humilde,
desapegado, piedoso e com espaço para uma vassoura, uma bacia de água e
ligaduras.
O de João da Cruz foi sereno, suave
e puro, decidido, austero e terno, forte, doce e amigo, nele cabiam frades e
passarinhos, primaveras, santos e anjos, profetas, pobres e poesia, e tinha de
certeza uma mangedoura e um calvário!
Os das mulheres, de que
aqui não falei, são iguais, mas talvez ainda mais fortes, mais valentes, mais
ternos, mais decididos.
Já tenho descansado em
corações e corações. Já tenho tropeçado e encalhado neles. E até levado por
eles como em carroças aos solavancos. Nada de mal, nada de mais. Assim é com
todos. Corações há por aqui e ali, por onde vou, cuja solicitude e meiguice é
um descanso, um refrigério, uma praia amena com areia quente e ondas suaves.
Também há os que esperam
algo de mim, muito de mim: serenidade e paz na confissão, fortaleza e unção na
Eucaristia, silêncio e ternura nas voltas pelo claustro, compreensão e perdão
num locutório, atenção e ouvido no inesperado dum sobressalto qualquer, sorriso
e bênção pelos carminhos. Direi apenas que se faz o que se pode, que nem sempre
o coração chega a todas as cambiantes. E há outros que esperam que me deponha
nas mãos deles e eu com tanto medo das duras tenazes de ferreiro!
Estamos em início de ano.
Chegamos aqui tão cansados, que cansados havemos de por uma e outra vez os pés
ao caminho.
Num dos acasos típicos
destes tempos dei de frente com uma canção. Poderia transcrevê-la toda aqui, que
valeria a pena. Mas tenho dificuldade em traduzi-la na sua simplicidade. É
espanhola e chama-se Gente. Os intérpretes, Presuntos Implicados, é um nome
que, julgo, supõe trocadilhos que eu não alcanço. Fui procurar a canção deles.
Fala ela de gente banal, de pessoas simples, muito simples. De pessoas anónimas
que vão fazendo milagres que se coam na tecedura do tempo. Gente em quem não
reparamos, mas em quem eu quero reparar neste início do ano. Não governam
empresas, não gastam salários estapafúrdios, não realizam milagres financeiros
na Bolsa. São gente simples de sacos plásticos na mão, com dores de cabeça e
artroses como os demais. É gente assim que precisamos, que vamos precisar de valorizar
mais e mais. Gente sem preço, a quem peço que não desista. Gente que não põe
preço no que faz, a quem de quando em vez nos esquecemos de sorrir, de
agradecer. São heróis, os meus heróis de coração que não encolhe em tempo de
crise. Só não movem o mundo, mas sem eles o mundo fica mais perro. São gente
assim que aquece o mundo, que espanta o frio ao nos trazerem para junto de nós
o suave latido do coração.
Há tanta gente que
encurta as horas dos cansados, que faz sonhar desanimados; gente que reza junto
dos altares, que acredita, infunde e traz a paz. Gente forte de olhar seguro
que leva gente aos hospitais, que visita lares e esparze a solidão de tantos
apartamentos que parecem túmulos. Gente bem lembrada que não pensa em si, cujo
tempo estica, estica, estica, e junto de quem duas horas parecem dois dias
soalheiros. Gente que adivinha o tempo, que tem sempre tempo para dar. E nenhum
preço para cobrar. Há gente de olhar que não olha, não fere, não inquire. Gente
como anjos, como anjos serenos que beijam o sulco das lágrimas.
Estamos cada vez mais
frios, mais separados, mais ausentes uns dos outros, mais incapazes de nos
levantarmos do chão porque há tesouros que ignoramos, valores que começamos a
esquecer, que preferimos não ver, não imitar, não aprender, não agradecer. E
assim a malha vai ficando mais larga mais larga e o calor esvaindo-se por aí
expõe-nos ao gelo da crise.
Bom ano, bom coração.
Máxima
«Jesus vive perpetuamente
para interceder por nós.» (Hebreus 7:25)
Mínima
«Deus visita-nos, mas, a maior parte do tempo, nós
não estamos em
casa.» (Joseph Roux )
[11 de Fevereiro de 2007]
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