Um sorvo
Era um encontro de jovens,
em Agosto, em Segóvia, no convento de S. João da Cruz. Ali os dias são
quentíssimos, a paisagem é de restolho ressequido; os corvos grasnam o dia todo
por cima da Igreja da Senhora de la Fuencisla. São tantos e tão insistentes que
quando se calam, nos sentimos melhor. Em chegada a noite também ficamos melhor,
porque a temperatura amaina.
Nesse dia de que quero falar saímos enquanto o sol era meigo.
Calcorreamos caminhos de pó por entre restos de searas e de campos enormes.
Parámos bem antes do meio-dia, bem antes do sol queimar. Parámos sob as únicas
árvores que se viam por ali. Mas antes de merecermos almoçar, reunimo-nos à
volta dos textos de S. João da Cruz. E como é diferente lê-los naquela terra
quase só terra, quase só céu!
Passámos ali a tarde. Chegámos por fim a casa cansados e suados, com os
corpos a suspirar por um banho. Antes da ceia, porém, estava prevista uma hora
de oração. No meio da frescura da capela depuseram uma vela no chão e uma tina
de água.
Quero lembrar que entre nós havia um catalão, de 17 anos, que ninguém
sabia ao que viera. Estava ali tão deslocado como um peixe a apanhar banhos de
sol. Não sabia nada daquilo. Não sabia nem rezar nem o que era um convento nem
porque tínhamos de nos juntar a horas certas e fazer tudo junto. O nome, julgo,
era Rufo. Apesar de destoar Rufo era simpático, embora quase só falasse de
bebedeiras de vinho!
Foi também à oração, que começou e foi decorrendo junto ao Poço de Jacob,
onde Jesus se encontrou com a Samaritana e lhe pediu de beber; onde Jesus foi
remoçando o coração ressequido daquela mulher, acabando ela a pedir-Lhe: —
Dá-me, Senhor, dessa água!
Era assim entre cânticos, o Evangelho e os apelos da Santa Madre, que ia
decorrendo a oração. Ali, se traçava o itinerário de fé que cada um de nós deve
percorrer: Jesus aproxima-se. Depois é reconhecido e acolhido como a única água
que pode matar a nossa sede.
A certa altura, foi cada um de nós até junto da água e só tinha que fazer
aquilo que quisesse fazer: mirar, tocar, santiguar-se... Havia um cântico: — Dá-me,
Senhor, dessa água. O cântico ia correndo e a fila andando, e à medida que
cada um se aproximava da água cumpria o ritual. E regressava ao seu lugar.
Rufo foi o último. Todos vimos como se tardou diante da
água. E nós cantando. Ficou ali, imóvel, impressionado, resoluto. Depois,
ajoelhou e deu um grande sorvo antes de lavar a cara. O cântico parou mas ali
deve ter nascido um santo, pois no restante do encontro o rapaz já não foi mais
igual!
(Ignoro o que posteriormente se passou com
a vida de Rufo; se ficou a gostar mais de vinho ou de água. Mas o que é certo é
que se naquela tarde não foi tocado pela sede de Deus, fomo-lo nós perante o
seu gesto tão inesperado.)
Desaparecida
Encontrei algures uma notícia e fiquei olhar para ela.
Como quem vê um boi a olhar para um palácio. Um boi não sabe distinguir uma
janela duma porta, o frontispício do telhado, uma estátua duma floreira. Para o
boi aquilo é um palácio ou lá o que é, mas como não se come não é nada. Fiquei
mais ou menos assim quando li uma notícia sobre o roubo duma ponte. Uma notícia
assim não parece o que é, e deixa-nos incrédulos. Eu fiquei. Olhava para as
letras e via-as juntas e ordenadas, formavam um texto que era uma notícia, ou
brincadeira. Dei por mim a pensar: é daquelas notícias papa-tolos, bem escritas
mas sem sentido! Seja. Mas seja o que seja vou trazê-la para aqui.
Os
conteúdos eram estes: Na República Checa, entre os inícios de Dezembro e meados
de Janeiro deste ano roubaram uma ponte. Era uma ponte de aço, ali disposta
para unir duas cidades. Não era um viaduto qualquer, era mesmo uma ponte e
pesava 4 toneladas. (Um carro pesa uma e meia!)
As pontes
são para mim das construções mais interessantes. São como as vitórias, juntam o
que andava separado, vencem abismos, unem as margens que porque o são andam
sempre desavindas, fazem comunhão, fortalecem comunidades. São causa de alegria
e de júbilo, facilitam a vida e antecipam os encontros. É porque provocam união que as pontes me
seduzem. Para além de me ser incompreensível como foi possível roubar uma ponte
e ficar mais de um mês sem saber que fora roubada, passo a enumerar os meus
outros espantos por causa desta notícia: Não foi o David Coperfield porque ele
encena ilusões, não muda a substância da realidade!; Como é que duas cidades
ficaram tanto tempo sem se aperceberem que estavam separadas?; Era mesmo uma
ponte, ponte?, uma ponte que fazia falta? Era mesmo uma ponte que servia para o
que serve uma ponte: unir?; O mais certo é ter sorrateiramente acabado na casa
dum socateiro qualquer: mas poderá uma ponte de um só homem ser verdadeiramente
uma ponte?
Máxima
Eu não
vim por mim. (João 7:28)
Mínima
Narrei-me
à sombra e não me achei sentido
hoje
sei-me o deserto onde Deus teve
outrora a
sua capital de olvido.
(Fernando
Pessoa)
[4 de Março de 2008]
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