...

sábado, 19 de outubro de 2013

Notas de Roda-pé


A missão

Despertou sobressaltado e ficou à escuta. Silêncio. Era noite e ter-se-ia enganado, julgou. Ou sonhara, que os tempos não andavam nada bons. Quem é que a altas horas se haveria de lembrar de o chamar? Escorregou para dentro dos lençóis, elevou o pensamento para o Eterno e adormeceu de novo.
– Marcielo, Marcielo, chamou de novo a voz. Não se recordava de nos últimos séculos ter escutado o seu nome tão insistentemente. Mais desperto ergueu-se e perscrutou o silêncio. E nada. Não via vivalma. E novamente pensou em afogar-se nos lençóis e deixar-se de vozes que se fazem ouvir na noite. Alisou as asas e já se começava a enroscar no leito quando sentiu novo sobressalto: o Eterno que sempre é cheio de glória encontrava-se ali mesmo. Poça, pensou de um salto! Donde sou digno que o Eterno venha à minha morada? Porque é que a Sua glória enche de esplendor este humilde recanto?
Não sabia o que dizia, nem sabia que pensar. Tinham passado tantos séculos desejando ver a majestade do Eterno que não podia crê-l’O ali. Eu, eu – pensava em forma de gaguejos – eu não passo dum pobre e obscuro Anjo. E de facto era. À sua frente sempre estavam os nove solenes coros de angélicos. A si correspondia-lhe sempre o último lugar, ao jeito dos seguranças de entrada que zelam pelo recinto, mas nunca assistem ao concerto. – Meu Deus, pensou assustado, que terei feito eu? É que a Marcielo jamais lhe fora dado contemplar toda a bondade e a glória do Eterno em todo o seu esplendor. O mais que alguma vez enxergara fora um pequeno raio dum distante resplendor que lhe chegara coado pelo júbilo dos Serafins e dos Querubins e do agitar de imensas asas. Vira muito pouco, portanto. E agora Ele ali.
O que não sabia é que o Altíssimo lia as palavras ainda antes de lhe chegarem ao pensamento. E disse-lhe: – Não temas, Marcielo. Sei bem que te julgas um incapaz, que te satisfaz o último lugar. Mas tenho para ti uma missão.
 - Uma missão?, tremeu o Anjo, pensando que jamais ousara querer algo mais elevado que apanhar papéis do chão.
– Sim, uma missão, prosseguiu o Eterno. Olha, começaram os ensaios do Gloria in excelsis Deo com o qual o Céu anuncia à Terra o Nascimento de meu Filho segundo a carne. Marcielo, ainda nenhum desses famosos tenores angélicos sabe, mas eu já escolhi. Este ano foste tu o eleito para cantá-lo!
Quase desmaiou, pois não sabia cantar. Ele, o Anjo-apanha-papéis iria anunciar aos homens a feliz notícia? Ergueu-se naquele momento uma daquelas rabanadas de vento que sempre espalham os papéis para longe e lhe complicam a vida aumentando-lhe as horas de trabalho. Uma poderosa comporta abrira-se repentinamente algures. Instintivamente o Anjo levantou-se no ar, bateu descoordenadamente as asas, e depois dum espasmo aterrou aos pés do Eterno.
– Sim, é verdade que não sabes cantar. Porém, acaba de entrar o Santo Espírito que cuidará que aprendas como convém.
Já que no Céu não há como opor-se à Altíssima vontade, chegou por fim a bendita hora. Marcielo cruzou ledo e ágil os sete espaços celestiais. E por cada imenso corredor que cruzava ia sentindo admiração e surpresa. Afinal, era ele; mas quem era ele? Nunca o seu nome aparecera em folha de serviço alguma, jamais cantara diante da Glória divina, nem para nenhuma das dignidades periodicamente chegadas e logo surpreendidas com um concerto angélico. Sem o esconder havia nele uma minúscula pontinha de orgulho por ter sido o eleito para anunciar aos humanos o Santo Nascimento. E abandonou o Céu. Percorreu por fim a enorme alameda e mal os altíssimos portões se fecharam foi colhido por uma rajada de ar gélido que lhe entorpeceu as asas, pelo que deu uma desajeitada pirueta no ar e pela segunda vez em poucos dias aterrou de papo. Ainda a voz não lhe chegara à garganta para executar o MI sumido e já ele estava por terra. Sentiu uma picada numa das asas e só então deu de si reparando que estava sujo de lama e óleo escuro. Era noite. Ficara desorientado. Atrasara-se. Talvez tivesse perdido os sentidos e a noção do tempo. Estranhamente sentiu frio, mas não sabia se alegrar-se se condoer-se. Encontrava-se à saída dum viaduto urbano. Ergueu-se como preparando-se para dar às asas. Passaram carros, mais carros, mais carros mais velozes. Ficou tonto, o tempo escorria, a missão urgia. Apelou a todas as suas forças, à do dever também, e ignorando a dor da asa esquerda elevou-se imprudentemente no ar e ficou sem tempo para evitar o choque com o último autocarro da noite. O experiente condutor não pode evitar o atropelamento, mas ao ver penas a esvoaçar julgou que alguma pomba tonta, ou talvez duas, terminara ingloriamente a sua existência. E prosseguiu, que a noite era de consoada e prometera à família não atrasá-la.
Acordou muito dorido. Ferido, perdera a asa esquerda. Viu-a um pouco além. Um rato passou-lhe por cima farejando-a. Não teve medo, pois não sabia o que era um rato. A custo ergueu-se. Era impossível um voo de uma asa só, como aprendera nas aulas dos voos angélicos com o instrutor celestial. Era noite. Havia uma luz ao fundo. Pela primeira vez teve medo, mas a luz fixa era promessa de calor. Sacudiu-se, recolheu a asa solta e encaminhou-se. Era uma barraca. Havia mais barracas. Entrou porque a porta se abriu sem surpresas. O espaço era pequeno e sujo, sujo chegava ele também. Ninguém notou nada senão que repentinamente havia mais luz em casa, que se viam melhor os pedaços de pizza frios sobre a mesa e as latas de coca cola há muito abertas. Não disse que era um Anjo nem ninguém perguntou. Todos conheciam o código e ninguém invadia histórias alheias. Havia uma menina que lhe sorriu. Deveria ser bonita como todas as crianças, mas a sujeira da cara não permitia ver muito. O Anjo sorriu-lhe. Foi um momento celestial no meio de tanto negrume escuro. Ofereceram-lhe pizza que ele aceitou e levou à boca sem se lembrar que não tinha boca, que jamais comera, que apenas viera para cantar!
– Como te chamas, perguntou-lhe a menina?
– Marcielo.
– Tens nome de anjo confirmou ela.

Deve ter sido aqui que definitivamente adormeceu. Cobriram-no. Quando acordou era manhã e tinha nevado, não havia luzes ou luzinhas. Atrasara-se imperdoavelmente e já não chegaria para a Festa que nesse dia pontualmente o Pai celebra no Céu e que ele nunca perdera. Sentiu ao fundo um carro que vencia lentamente o manto de neve. Era o substituto do Pároco que vinha celebrar a Missa de Natal ao bairro. Julgando-o um freguês abriu-lhe a porta do pendura.

[30 de Novembro de 2010]

Sem comentários: