A missão
Despertou sobressaltado e ficou
à escuta. Silêncio. Era noite e ter-se-ia enganado, julgou. Ou sonhara, que os
tempos não andavam nada bons. Quem é que a altas horas se haveria de lembrar de
o chamar? Escorregou para dentro dos lençóis, elevou o pensamento para o Eterno
e adormeceu de novo.
– Marcielo, Marcielo,
chamou de novo a voz. Não se recordava de nos últimos séculos ter escutado o
seu nome tão insistentemente. Mais desperto ergueu-se e perscrutou o silêncio.
E nada. Não via vivalma. E novamente pensou em afogar-se nos lençóis e
deixar-se de vozes que se fazem ouvir na noite. Alisou as asas e já se começava
a enroscar no leito quando sentiu novo sobressalto: o Eterno que sempre é cheio
de glória encontrava-se ali mesmo. Poça, pensou de um salto! Donde sou digno
que o Eterno venha à minha morada? Porque é que a Sua glória enche de esplendor
este humilde recanto?
Não sabia o que dizia, nem
sabia que pensar. Tinham passado tantos séculos desejando ver a majestade do
Eterno que não podia crê-l’O ali. Eu, eu – pensava em forma de gaguejos – eu
não passo dum pobre e obscuro Anjo. E de facto era. À sua frente sempre estavam
os nove solenes coros de angélicos. A si correspondia-lhe sempre o último
lugar, ao jeito dos seguranças de entrada que zelam pelo recinto, mas nunca
assistem ao concerto. – Meu Deus, pensou assustado, que terei feito eu? É que a
Marcielo jamais lhe fora dado contemplar toda a bondade e a glória do Eterno em
todo o seu esplendor. O mais que alguma vez enxergara fora um pequeno raio dum distante
resplendor que lhe chegara coado pelo júbilo dos Serafins e dos Querubins e do
agitar de imensas asas. Vira muito pouco, portanto. E agora Ele ali.
O que não sabia é que o
Altíssimo lia as palavras ainda antes de lhe chegarem ao pensamento. E disse-lhe:
– Não temas, Marcielo. Sei bem que te julgas um incapaz, que te satisfaz o
último lugar. Mas tenho para ti uma missão.
- Uma missão?, tremeu o Anjo, pensando que
jamais ousara querer algo mais elevado que apanhar papéis do chão.
– Sim, uma missão,
prosseguiu o Eterno. Olha, começaram os ensaios do Gloria in excelsis Deo com o
qual o Céu anuncia à Terra o Nascimento de meu Filho segundo a carne. Marcielo,
ainda nenhum desses famosos tenores angélicos sabe, mas eu já escolhi. Este ano
foste tu o eleito para cantá-lo!
Quase desmaiou, pois não
sabia cantar. Ele, o Anjo-apanha-papéis iria anunciar aos homens a feliz notícia?
Ergueu-se naquele momento uma daquelas rabanadas de vento que sempre espalham
os papéis para longe e lhe complicam a vida aumentando-lhe as horas de trabalho.
Uma poderosa comporta abrira-se repentinamente algures. Instintivamente o Anjo
levantou-se no ar, bateu descoordenadamente as asas, e depois dum espasmo
aterrou aos pés do Eterno.
– Sim, é verdade que não
sabes cantar. Porém, acaba de entrar o Santo Espírito que cuidará que aprendas
como convém.
Já que no Céu não há como
opor-se à Altíssima vontade, chegou por fim a bendita hora. Marcielo cruzou ledo
e ágil os sete espaços celestiais. E por cada imenso corredor que cruzava ia
sentindo admiração e surpresa. Afinal, era ele; mas quem era ele? Nunca o seu
nome aparecera em folha de serviço alguma, jamais cantara diante da Glória
divina, nem para nenhuma das dignidades periodicamente chegadas e logo surpreendidas
com um concerto angélico. Sem o esconder havia nele uma minúscula pontinha de
orgulho por ter sido o eleito para anunciar aos humanos o Santo Nascimento. E abandonou
o Céu. Percorreu por fim a enorme alameda e mal os altíssimos portões se
fecharam foi colhido por uma rajada de ar gélido que lhe entorpeceu as asas, pelo
que deu uma desajeitada pirueta no ar e pela segunda vez em poucos dias aterrou
de papo. Ainda a voz não lhe chegara à garganta para executar o MI sumido e já
ele estava por terra. Sentiu uma picada numa das asas e só então deu de si reparando
que estava sujo de lama e óleo escuro. Era noite. Ficara desorientado. Atrasara-se.
Talvez tivesse perdido os sentidos e a noção do tempo. Estranhamente sentiu
frio, mas não sabia se alegrar-se se condoer-se. Encontrava-se à saída dum
viaduto urbano. Ergueu-se como preparando-se para dar às asas. Passaram carros,
mais carros, mais carros mais velozes. Ficou tonto, o tempo escorria, a missão
urgia. Apelou a todas as suas forças, à do dever também, e ignorando a dor da
asa esquerda elevou-se imprudentemente no ar e ficou sem tempo para evitar o
choque com o último autocarro da noite. O experiente condutor não pode evitar o
atropelamento, mas ao ver penas a esvoaçar julgou que alguma pomba tonta, ou
talvez duas, terminara ingloriamente a sua existência. E prosseguiu, que a
noite era de consoada e prometera à família não atrasá-la.
Acordou muito dorido. Ferido,
perdera a asa esquerda. Viu-a um pouco além. Um rato passou-lhe por cima
farejando-a. Não teve medo, pois não sabia o que era um rato. A custo ergueu-se.
Era impossível um voo de uma asa só, como aprendera nas aulas dos voos
angélicos com o instrutor celestial. Era noite. Havia uma luz ao fundo. Pela
primeira vez teve medo, mas a luz fixa era promessa de calor. Sacudiu-se,
recolheu a asa solta e encaminhou-se. Era uma barraca. Havia mais barracas.
Entrou porque a porta se abriu sem surpresas. O espaço era pequeno e sujo, sujo
chegava ele também. Ninguém notou nada senão que repentinamente havia mais luz
em casa, que se viam melhor os pedaços de pizza frios sobre a mesa e as latas
de coca cola há muito abertas. Não disse que era um Anjo nem ninguém perguntou.
Todos conheciam o código e ninguém invadia histórias alheias. Havia uma menina
que lhe sorriu. Deveria ser bonita como todas as crianças, mas a sujeira da cara
não permitia ver muito. O Anjo sorriu-lhe. Foi um momento celestial no meio de
tanto negrume escuro. Ofereceram-lhe pizza que ele aceitou e levou à boca sem
se lembrar que não tinha boca, que jamais comera, que apenas viera para cantar!
– Como te chamas,
perguntou-lhe a menina?
– Marcielo.
– Tens nome de anjo
confirmou ela.
Deve
ter sido aqui que definitivamente adormeceu. Cobriram-no. Quando acordou era
manhã e tinha nevado, não havia luzes ou luzinhas. Atrasara-se imperdoavelmente
e já não chegaria para a Festa que nesse dia pontualmente o Pai celebra no Céu
e que ele nunca perdera. Sentiu ao fundo um carro que vencia lentamente o manto
de neve. Era o substituto do Pároco que vinha celebrar a Missa de Natal ao
bairro. Julgando-o um freguês abriu-lhe a porta do pendura.
[30 de Novembro de 2010]