Este não será um texto sobre reis magos, mas sobre rainhas que até são bem plebeias. Plebeias, mas sábias. Daquelas cujo coração é imenso e com muitas janelas por onde a luz da Estrela do Natal possa entrar.
Rufina
Chama-se leão ou tigre, já não lembro bem. Consta por aí que ninguém na selva da cidade o atura. Já não há alcatraz que o encerre, jaula que o detenha. A estatura impõe respeito, a brutalidade medo. Tem por companheiras duas raparigas, a heroína e uma navalha. Conhece bem todos os seus direitos sociais, que faz valer e ouvir ou com urros ou com rugidos bem para lá da outra margem do rio. Sobe ou acede a todos os palcos onde possa fazê-los valer. Na verdade, parece que já não tem direitos. Ainda que tenha, como humano que é. Mas como só arroga direitos, quem lhos pode creditar quando não vela nem cuida de nenhum dos seus deveres?
Chama-se leão ou tigre, já não lembro bem. Se não há selva ele trata que exista porque assim reina melhor. Se não há ordem, ele não a quer porque assim se amanha melhor. Por alguma razão leva nome de predador. E tem de fazer jus ao nome. E faz. A preceito e com mérito.
Até as sentinelas fogem dele ou o ignoram ou viram a cara como se não quisessem testemunhar as travessuras de miúdo traquina. Como é ou foi declarado inimputável passam por ele como se ele não passasse por ali. Sempre que pode — e pode sempre! — atazana Rufina, a técnica social que o atende. Atazana? Atazana é favor. Assusta, persegue, chantageia e ameaça. É eficaz nas ameaças. A primeira e sempre renovada consta da seguinte declaração: — Cuidadinho, que eu sei qual é a escola da tua filha!
É preciso ser-se rainha, corajosa, ainda que de mãos vazias, para todos os dias cruzar a selva e franquear a porta onde à socapa acabará por entrar o leão ou o tigre não sei bem, que volta e meia ele entra sorrateiro como qual quer felídeo de porte que se acerca do bebedouro para intimidar a arraia miúda. Rufina anda com o coração nas mãos, uma depressão castradora e lágrimas que esconde em duas represas.
É a minha primeira rainha que eu vou colocar no presépio, com a filha ao colo, bem juntinho de Jesus menino.
Judite
Chama-se filho, simplesmente filho. Recuso-me a dizer o nome dele. Filho é sempre filho, porque não há entranhas de mãe que esqueçam a criatura que nelas ganhou corpo e alma. Judite é velha e cheira mal. É velha e escura. Tão escura de tão indefesa. De tão solitária. O filho que as entranhas exangues já não renegam visita-a pontualmente, tão pontual que as visitas saberiam a manteiga e marmelada se fosse um filho a visitar uma mãe. Roído pela droga o Filho espia a mãe e sempre que ela recebe o vale da pensão aparece para o recolher. É selectivo nas visitas. A casa foi plantada no cimo dum morro com muitas escadas para descer e outras tantas para subir, pelo que quando o filho chega a mãe não tem nem tempo nem fôlego para esconder o dinheiro. E ainda que o escondesse ele moía-lhe o corpo como uma mó mói o milho. Ela sabe disso, porque conheceu bem as antigas ribeiras do Minho e os seus moinhos.
O filho chega sempre a horas certas, como se fora um relógio suíço. E com irónica delicadeza extorque o contributo mensal que a mãe não nega. E depois conclui a obra com uma assinatura de truz: despeja o bacio na cabeça da mãe.
Para o mês que inaugura o ano ela já tem uma faca. A faca é para cortar. Ela cortará ou as goelas dele ou o ventre dela. Mas eu vou levá-la ao presépio como se fora uma rainha para eu e o Menino lavarmos o bacio.
Soledade
Soledade é castelhana. Um velho roble castelhano. Quase bíblico. É a última do clã. É rija. Sempre foi rija. Parece promessa de Deus ser tão velha e a última a morrer. Morrerá em terra estrangeira por muito que se diga que somos hermanos. Não somos. Ela diz que há um risco que nos separa e algumas veias que nos unem. Mas isso não chega para fazer irmãos, confirma o roble.
Ela é velha, estrangeira, a última. Só. Solitária. Como um altivo carvalho no meio da meseta imensa de neve.
Soledade sabe que já se imprimiu a agenda onde se há-de assinalar o dia em que a impiedosa e fria tempestade finalmente derrubará sem custo o carcomido tronco. Mas não é isso que lhe dói, não é disso que se queixa. O seu queixume é dum gume afiado que ela diz, gelado, na primeira pessoa. Assim: Meu pai morreu nos meus braços e no berço dos meus braços morreu minha mãe. Chorei como corresponde a uma filha chorar a morte dos pais.
(Mas nada se compara à morte fria do filho único que aceitou gerar. Por causa da dureza da morte prematura o corpo não lhe gerou mais nenhum, nem podia porque ela embalou o bébé até que a carne fria do filho se recusou a aquecer-se colada à sua.)
Em terra estranha e em meus braços morreu minha irmã, mais velha e mordida pela demência, que a visitou acolitada por Parkinson e Alzheimer. E a meus braços, qual batel, regressou das imensas lonjuras do mar meu luso marido, para morrer em calmo porto de abrigo.
Sabe o que me dói, pergunta-me desamparada? Dói-me que já não restem braços onde no fim, depois da tempestade, acomode a cabeça ao morrer. Lá terá de ser na neve fria.
Sim, também eu levarei Soledade, a nobre rainha castelhana, ao presépio. Estou certo que ali, ao menos ali, não lhe faltarão uns bracinhos.
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