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sábado, 15 de novembro de 2008

Talvez um dia o gelo degele!

Evocação feliz (e nostálgica) do meu Seminário em tempos de tremor por causa do frio. Ensinaram-me que juridicamente na Igreja uma instituição só morre cem anos depois de ter desaparecido o último a vestir-lhe o hábito. Talvez seja, que para tudo tem de existir regras que assinalem o caminho por onde trilhar o entendimento das coisas. Enfim, morrer cem anos depois de morrer o último é um tempo suficientemente longo para provar que se não morre exactamente quando se morre!
Posto a rezar a semana dos Seminários, isto é, convocado que fui, que fomos, para orar intensamente durante uma semana pelas vocações sacerdotais, ou melhor dito ainda, para rezar pelo Seminário, coração da Diocese, dei por mim a pensar que há corações e corações!
Que o Seminário é o coração da Diocese é uma maneira de dizer que sem ele, ou com ele enfermo e engelhado, não existe vida, calor e continuidade.
Dei, pois, por mim a pensar que há corações fortes e corações fracos. Os corações fortes são bons, generosos, saudáveis, atléticos, capazes, audazes. Os corações engelhados são fracos, débeis, sem energia, sem capacidade de explosão, sem ánima, desvitalizados, acantonados, com os pés ao sol do Inverno.
Onde estamos, onde está, como está a Igreja portuguesa?
Estamos mal, estamos acabrunhados, encolhidos e sem chispa, sem fogo no coração. Como o sangue já não chega às extremidades agradecemos ao Inverno que se compadeça de nós e nos aqueça com fogachos de promessas e nos traga umas réstias de esperança que nos vão aquecendo os corpos que já mal mexem.
Ah, meu Deus que mal andamos e como nos sentimos serenos e consolados! Que eu saiba só um Seminário em Portugal é uma fornalha ardente de promessas. Os outros são braseiros latentes sob uma dura capa de cinza fria. Alguns acabaram de morrer e o calor ainda está nas paredes do corpo. Outros já nem isso, estão frios. Há gelo na suas salas, gelo nos recreios, gelo nos refeitórios, gabinetes, dormitórios, nas capelas. Tanto gelo assim até ajuda a conservar, mas todos sabemos que não há nada como a comida fresca, na hora!
Falo do (pouco) que sei.
Sei que em 1980 cheguei com minha mãe à Estação de Viana com duas malas. Sei que passei a ponte, de pé, na carruagem, com o nariz no vidro, virado para o lado onde sabia que apareceria o Seminário. Depois, quando dentro do táxi pedi para me levarem ao Seminário levaram-me para outro. (Para a minha mãe era igual, mas eu sabia que era este e não outro!) Ao instalar-me aqui aos 12 anos e a 200 km de casa, dei-me conta que não estava sozinho: éramos uns 70! Sim, uns setenta rapazes mas seguramente mais de cinquenta! Aquilo era uma festa! O Seminário era uma festa!
Foi aqui que eu cresci durante quatro anos. As calças rasguei-as todas por causa do futebol, mas frio jamais tive!
Quando em Maio deste ano me foram buscar sabia para onde vinha, porque ainda guardo nos ouvidos os gritos e os pulos de índios e cóbois que dávamos. Agora, porém, já não há mais gritos, já não há mais corridas! Os matraquilhos foram despromovidos para as masmorras do fundo! A sala de estudo chama-se agora sala 48! (48? Raio de nome. É que nem existe a 47 nem a 49!) Ainda há mobiliário do tempo do Seminário, mas já não damos saltos para distribuir pelos cacifos mais altos as cuecas e as camisas, as toalhas e os lençóis!
Ah! Seminário Missionário Carmelitano, que morreste!
Quem nos espantará o frio que já nos tolhe?
Quem nos aquecerá os ossos que começam a ser roídos pelas implacáveis artroses?
(Acaba de me ligar o Tomás, de Penafiel — tem no nome as mesmas iniciais que eu! Soube que estou aqui e quer passar por cá. Pergunta-me como está o Seminário. Está frio, digo-lhe. Não tem meninos. Ah, mas eu tenho um, contesta-me alegre. Deviam ser três, levou como resposta. Um para ti e dois para Deus, para que quanto mais o coração batesse tanto menos se morresse de frio.)
Um dia os Seminários acabarão. Falta saber se por excesso de frio, se de calor. Entretanto rezemos.
Talvez o gelo degele!