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segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A mulher do saco de compras


Saí para a rua; tinha uma reunião lá no fim. Primeiro foi a Rua da Bandeira, depois a Praça da República e depois a Manuel Espregueira. Pelo meio fui aos Correios.
Saí para a rua, em direcção a uma reunião, porque, no fim de contas, não somos apenas nós a existir pelo que é necessário no cultivo da existência em que nos encruzilhamos pautarmos os caminhos comuns.
Saí para a rua convencido que no fim teria um texto escrito de que tanto precisava, que Deus falaria. As ruas tinham abundância de gente apressada e interessada a comentar o regresso das férias e a crise que, entretanto, tinham esquecido. Nos Correios a menina foi tão europeia e profissional que nem o recibo me deu e eu, de tão encandilado, nem o pedi. Os cafés, vazios, denunciam o quê? Hora de trabalho ou ausência de um eurito no bolso?
Fui caminhando e fui vendo. Vi um pobre e Deus estava concerteza no pobre. Mas eu só vi o pobre.
Vi um bêbado já bêbado às nove da manhã; dava uns inclinados bons dias a toda a gente e toda a gente desviava o caminho e o olhar para não colidir com aquele petroleiro adornado para bombordo. Deus estava ali, mas o bafio e o cheiro a álcool também O incomodam muito.
Vi uma pedinte sentada com muitas sacas em redor. Não sei se seriam dela, nem se dela seriam as pombas aos molhos que lhe brincavam no regaço, nas mãos e na cabeça. Pensei: tem concerteza milho nas mãos e é assim que atrai as pombas. Discretamente procurei o milho que não havia, nem nas mãos nem no regaço. Conclui que a velha pedinte ou tinha magia ou era o Senhor das pombas brancas ali postado num andor feito de sacas. Mas nem ali escrevi o meu artigo.
Vi vendedeiras ambulantes que anunciavam meias de inverno, fruta fresca, sardinhas vivas e pensos rápidos. Qualquer uma me poderia falar de Deus, mas eu não levava dinheiro para comprar.
Vi uma loja de coisas bonitas e úteis, estava em liquidação total. Ninguém estava na loja para além dum homem que lia sofregamente o jornal ao balcão. Procurava emprego na página dos classificados, ou seria Deus informando-se retardadamente do andar do mundo?
Vi uma impressionante fila de gente pela rua fora. Este quadro surpreendeu-me verdadeiramente porque era muito inesperado: era gente jovem entre o aborrecido da espera e o esperançoso do lançamento dos alicerces. Pensei: que fazem aqui? E reparei então que era uma livraria e que alguns deles consultavam listas. Apesar de ser dia de trabalho estavam ali para a compra dos manuais escolares. Ainda bem que o tempo estava bom e não chovia. Segui. O futuro era além.
Vi depois um cego com um bastão branco com uma bola branca rolante na ponta. O cego ia calmamente no centro liso da desimpedida rua pedonal. O bastão palpava o chão para a direita e para esquerda como que varrendo obstáculos ou sondado o segredo de não tropeçar. Sim o cego falou-me muito. Mas deixei o cego que via mais que muitos e segui em frente.
Faltavam cinco minutos para a reunião e eu estava do fim da rua. Aquele fim é coroado com uma quase praceta e depois dela uma igreja ampla. Havia tempo e por que nada interessado em chegar antes da hora, entrei na igreja. Sosseguei quando a senti vazia de gente. Fiquei de pé como o orgulhoso fariseu da parábola. E por fim descortinei lá ao fundo um leve tic-tic que saía das tesouras duma zeladora que asseava o altar-mor. Rodei o olhar e os santos estavam tão circunspectos que nem deram por mim. (Talvez lá do Céu, pensei.) Vi também o Menino Jesus de Praga e a Santa dele. Nem uma nem outro me disseram nada. Os outros igual. Tinha passado quase a eternidade toda num minuto só, quando entrou uma senhora com dois sacos de compras. Era mercearia, verduras e detergentes para a máquina de lavar a louça. Pousou-os ao lado do último banco esquerdo, ajoelhou-se e benzeu-se.
(Pausa amorosamente silenciosa.)
Depois sentou-se e foi a uma bolsa buscar um terço. E continuou a rezar. Era talvez reformada, ou melhor com idade de reforma porque uma mãe nunca se reforma de ser mãe. Teria os filhos onde? Longe, enfrentando as surpresas do mar?, ou espalhados pela terra, correndo-a de lés-a-lés? Tinha acabado de levar os netos ao infantário e regressava a casa para lhes fazer o almoço?, ou teria o marido doente e viera comprar uns legumes frescos para uma sopa fresca que lhe chegasse ao estômago?
Não sei. Não sei nada.
(Mas acredito que a oração ajuda a fazer sopa de legumes.)
Sei que fiquei ali agradecido a vê-la rezar, como quem vê uma santa a rezar e rezando ensina a rezar.
Cheguei à reunião com um atraso de quinze minutos. Porque me dediquei a ficar ali a rezar e aprender a rezar com aquela mulher do saco de compras, que no meio dos afazeres e tribulações da meia idade da vida encontra ainda tempo para rezar, como se fora uma oblação agradável ao Senhor, como se fora um descanso ou um intervalo compensador. Enquanto ela rezava no silêncio daquela igreja ampla, com aquela luzinha tremeluzente ao fundo e uma zeladora que levemente fazia tic-tic, pensei naquela outra mulher com um outro saco de compras que ajudou a converter a doutora Edith Stein na Irmã Teresa Benedita da Cruz. Sim, se uma mulher simples abandona o bulício do dia para saudar o Senhor dos senhores recluído no Sacrário, aí havemos de ver uma tão eloquente lição quanto ela tem de serena confiança e humildade.
Antes que a mulher deitasse mãos às sacas, se virasse e me visse — mas será que me veria? — genuflecti e saí. Deus estivera ali e eu que já tinha rezado Laudes e celebrado Missa encontrei-me com Ele e converti-me um pouco. Não fiz milagres nem subi rapidamente quaisquer degrau do mais pequeno caminho. Apenas ergui talvez um pésito, talvez tenha sido agradável ao Senhor tanto quanto o pode ser um olhar ou um consentir de coração, ou um aspirar da alma.
Regressei a correr a casa porque a reunião não era ali onde crera que era. Era na outra margem e havia que lá chegar. A correr. É para lá que nos leva a oração.